A percepção do governo João Goulart, na época, era muito negativa. Eu mesmo, que que não sou uma pessoa mal informada, vim a ler depois sobre Jango e ele era o oposto do que a imagem dele dizia. Jango era um político preparado, não um bobão despreparado, um político preparado. As leituras de Jango, nem se imagina quais eram. Ninguém imagina. Ele lia filosofia. Durante a vida, não era o brucutu que a UDN pregou. Mesmo para quem era de esquerda e estava contra a UDN, a gente se surpreende. Ele era muito preparado. A imagem que ficou dele foi do estancieiro, gauchão, folgado. Não era nada disso. Mas a imagem que ele passava realmente era muito negativa. Não era fácil ter um adversário como o Carlos Lacerda. O Lacerda é difícil de imaginar hoje, porque também já não se faz política nem oposição como antigamente. Lacerda sabia que era um destruidor de reputações. Lacerda já fazia oposição a [Getúlio] Vargas, mas Vargas tirou de letra, tirou de letra até o último lance. Quer dizer, quando Vargas se suicida, Lacerda está dentro do Almirante Barroso, porque era o único lugar onde ele poderia ficar, se ele ficasse em qualquer outro lugar seria estraçalhado. A minha visão era a de alguém que morava no Nordeste, era funcionário público no Nordeste e fazia política (a pouca que eu fazia) no Nordeste. O PTB era forte em alguns locais, mas não ideologicamente. O PTB, como quase todos, era um partido de ocasião. Quer dizer, era um partido do poder. No Nordeste não era diferente. Então a imagem dele e do governo, para quem estava mais ou menos metido em política de alguma forma, era de um governo fraco e de uma personalidade que o encabeçava também fraca. Isso fazia um certo contraste, para nós de Pernambuco, com o [Miguel] Arraes. Não muito porque Arraes tampouco era um político incisivo, de declarações taxativas. Arraes, a gente dizia, era o mais mineiro dos políticos pernambucanos. Mas de qualquer forma, a imagem de Arraes não era a de Jango, era uma imagem de alguém popular e com algumas realizações, coisa que a Jango não se concedia. Aí pelos dias do golpe, a oposição a Jango era muito forte. Ele não deu uma de Vargas porque há os dados de personalidade, embora ambos estancieiros, eram bastante diferentes. Mas a oposição era muito intensa, muito forte. Não havia quase quem conseguisse ser a favor de Jango nos dias do golpe.
O próprio Celso Furtado, que era um alto funcionário federal, porque Celso era o superintendente da Sudene, criação dele, e também era Ministro do Planejamento, acumulava as duas funções, não era nem janguista nem antijanguista, era um verdadeiro enigma. Saímos do palácio do governo do Arraes, até então ele ainda era governador (no minuto seguinte ele não era mais), Celso e eu, e fomos ao gabinete do general Justino Alves Bastos, o comandante da Zona Militar, no próprio dia 31. Os comandantes militares do Nordeste eram os piores, ou porque eram desqualificados na própria arma, ou porque o Nordeste era um desterro para militares importantes. O Castelo Branco foi comandante lá, por desterro. O Justino foi comandante, mas aquilo era um castigo, pois ele era um general sem muita expressão. A gente saiu direto para o gabinete dele. No curto caminho entre o palácio do governo e o gabinete do Justino, não era muito longe entre o Palácio das Princesas e a Rua do Hospício, onde ficava o gabinete militar, o Celso olhou para mim e perguntou “O que você faria, Francisco?”. Eu disse: “Eu arribava daqui e ninguém me pegava”, mas imagine se o Celso seria capaz de fugir de alguma coisa. A gente foi para lá e o Justino quis passar um sabão no Celso, e disse “É, ministro, o senhor não fez muito esforço para nos ajudar…”, e o Celso, que era um homem muito discreto, não era discreto quando tinha que falar em público, mas era um homem muito discreto cujas opiniões pessoais mal se conheciam, deu um tal “esporro” no Justino que eu saí de lá pensando: “Hoje eu morro”. Ele disse: “General, os senhores depuseram um presidente legitimamente eleito, assumam a sua responsabilidade e não venham me pedir a minha opinião”. E eu pensei: “Daqui a gente sai direto para a cadeia”. Ele não saiu, mas eu saí.
Levaram mais seis dias para me prender. O Celso não, o Celso tinha muito prestígio no exército. Ele tinha sido “febiano” [integrante da FEB, Força Expedicionária Brasileira], e com uma qualidade a mais, ele fora voluntário.
Então dali ele voltou para o apartamento dele, depois foi conduzido ao Rio por um general do exército. Eu fui para a minha casa. Seis dias depois eles chegaram, bateram na porta e me levaram. Mas o ambiente era de ódio de classe. Quer dizer, você quase pegava com as mãos. Naquele momento, como acontece sempre, os oportunistas pularam todos para o lado da reação, e quem era pró-Jango, pró-Arraes, estava em evidente minoria e acuado. O ambiente nos meses anteriores foi se acirrando de uma forma palpável.
Sem querer ser esquemático, a burguesia saltou toda para o outro lado. Eles já eram insignificantes em si mesmos, porque à medida que a economia brasileira se integrava, as regiões passaram a não apitar muito e a burguesia do Nordeste, que era sobretudo açucareira, era decadente, era decadente porque São Paulo avançava no setor do açúcar. Então, sob um conjunto de fatores que era muito difícil de se discernir, o ambiente era de ódio de classe, havia muito pouco terreno, conjuntura, onde se pudesse tentar a velha conciliação brasileira; não funcionou dessa vez. O exército era quem mais intervinha. Mas quem deu ordem de prisão ao Arraes foi o comandante da marinha do Recife. A marinha no Recife não tinha em si a menor importância, sua importância estava em ter um batalhão de fuzileiros navais, que é o que conta na marinha. Marinheiro não briga… Acho que é um pouco o modelo americano dos fuzileiros navais. Eles são, na verdade, os soldados da marinha. Então o comandante da marinha, eu me lembro bem, deu voz de prisão ao Arraes, mas eles não conheciam o terreno, foram avançando esperando encontrar resistência, e como não havia resistência, eles avançavam mais, até dar o xeque-mate.
O Recife era um mito, o Recife tinha sido quase sempre um lugar importante nas revoluções brasileiras. Era um mito por causa de 35: em 35 houve Recife, Natal e Rio, mais nada pelo Brasil. Então a resistência no Recife era um mito. Se houvesse uma liderança forte, talvez ela se concretizasse, mas Arraes não era uma liderança para impedir o golpe. Ele era, como eu falei, o mais mineiro dos pernambucanos. Aliás, ele era cearense. Sempre conciliador, covarde não; eu assisti de perto as coisas que se passaram, ele era muito corajoso, tanto que nessa resposta ao comandante da marinha que o prendeu, dizendo que ele a partir daquele momento passava a ser hóspede das Forças Armadas, ele respondeu com muita coragem, mas sem querer ofender, que “não podia ser hóspede dele mesmo, posto que o palácio do governo era sua casa”. O almirante disse alguma coisa como “Assim também é demais”. Mas ele não foi preso imediatamente, só o levaram para Fernando de Noronha, ele e Seixas Dória, seis dias depois. Enquanto isso ele ficou guardado pelo regimento de infantaria. Todas as cidades principais tinham um regimento de infantaria do exército, foi onde ele ficou nos primeiros dias. No que me concerne, terminou ali a entrevista com o general Justino, eu saí de lá “pê da vida” e voltei para a Sudene, que era meu local de trabalho, e seis dias depois do golpe foram me buscar.
Era tudo muito conturbado. A Sudene tinha uma quinta coluna dentro dela, não era uma quinta coluna propriamente, é que as Forças Armadas, o exército e a marinha, tinham quadros técnicos, os melhores do Brasil, porque eles precisavam de quadros técnicos. Eles tinham os melhores geólogos, geógrafos, engenheiros, mas sem utilidade na tropa, então a Sudene usava muitos deles. Requisitava-se. Tínhamos muitos coronéis, muitos majores, muitos capitães nos quadros da Sudene, realizando funções técnicas, de modo que, naquela conjuntura, o que eles fizeram foi apenas “virar”. Quer dizer, eles estavam lá dentro em funções técnicas, e com o golpe eles viraram militares de novo e ocuparam postos importantes da Sudene. Mas não houve maior resistência nos próprios quadros da Sudene, esses majores, coronéis, “mudaram a chave”, estava tudo sob controle. Onde houve alguma tentativa de resistência foi exatamente entre os fuzileiros navais, eles tinham um quartel no porto e, segundo dizem, tudo isso tem muito de lenda, quiseram levar o Arraes para o porto para liderar a resistência. Mas talvez seja mais folclore do que coisa real. O fato é que houve uma tentativa de resistência.
Quanto à Sudene, estava já sob controle dos militares que faziam parte dos quadros técnicos e logo depois sob controle direto do exército, mas apesar de estar em todo canto, o exército conhecia mal a Sudene. Então eles quiseram dar ao sucessor do Celso o mesmo estatuto do Celso, coisa que era difícil. Os quadros do estado não tinham dois Celsos. E trouxeram um sujeito que era secretário-geral da OEA, em Washington. Um tipo completamente anódino, o levaram para o Recife, e ele logo fez a sua grande realização: como não tinha o que fazer, comprou um prédio na Cidade Universitária, que então ainda era muito remota, e tinha um enorme prédio que o IAPI tinha construído mas não sabia o que fazer com ele, estava vazio, e o Celso antes de ser demitido conseguiu que esse prédio do IAPI fosse alugado simbolicamente à Sudene. Enfim, todo mundo se transferiu para lá, eu não porque eu estava gradeado. Mas a Sudene ficou por lá, até hoje, na Cidade Universitária.
A minha experiência na prisão é uma lenda. Não foi uma lenda para 99% dos que foram presos. Eu tive a sorte, como acontece na maior parte das “boas famílias”, de ter um irmão “milico”. Então fui preso “nas horas furta-cor”, que é quando eles prendem, e levado para o gabinete de um sujeito cuja fama era a de que arrancava unha de comunista. Era membro de uma família de policiais com tradição no Recife, isso quer dizer que eles arrancavam unhas mesmo. Aliás, tinha um sujeito lá que sempre foi dos quadros do Estado, João Roma, famoso por duas coisas: primeiro, por ter o cartório mais importante da cidade, segundo, por arrancar unhas. E eu fui levado para o gabinete do Álvaro da Costa Lima, espécie de sósia do João Roma. As técnicas de tortura são fantásticas, porque você pensa que vai diretamente para o pau de arara, mas às vezes não vai. Eu não fui. Ele me colocou no gabinete, sentado numa cadeira em que passei 24 horas. Ele não parava no gabinete, porque estava dirigindo a repressão, mas quando sentava ali, era na minha cara. Até que meu irmão soube, foi lá e me tirou. Esse Álvaro da Costa Lima espumava. Porque tinha perdido uma presa. Eu fui levado ao quartel da Polícia Militar, onde não me fizeram absolutamente nada. Fiquei lá 45 dias. Até engordei! Porque tudo era muito perto, a minha mulher levava meu almoço todos os dias, então eu comia a “boia da casa”, como se diz na gíria militar.
Fiquei lá junto com o João Guerra, que era o secretário de finanças do estado, um dos sujeitos mais inteligentes que já conheci, e só tinha o curso primário. Éramos presos de primeira classe, ficamos no gabinete do chefe do Estado-maior da Polícia Militar. Isso não quer dizer nada, porque o gabinete do chefe do Estado-maior era pior que aquele canto. Não fazíamos nada, a gente jogava firo o tempo todo, o João era melhor do que eu, sabia jogar xadrez, eu não sabia. Até que a ditadura não sabia mais o que fazer com a gente, que não tinha pegado em armas. Foi quando veio o [marechal Humberto de Alencar] Castelo Branco e pôs na chefia do aparato de repressão, na verdade, na coordenação, um general (nunca me esqueço dele porque foi meu colega na Cepal, o exército mandava oficiais fazerem curso na Cepal), Estevão Tauvino de Rezende. E um dia, não sei por qual circunstância, ele me encontrou, perguntou o que eu estava fazendo ali e eu respondi: “Estou preso, general”. Mas ele desconversou, não quis mais saber de nada. Ficamos 45 dias e nada, não aconteceu nada, absolutamente nada. Sequer um interrogatório. Na segunda vez em que eu fui preso, em 1974, houve um interrogatório, aliás meio fajuto, mas em 1964, nada. Então nos libertaram. Eu voltei para a Sudene e não me davam nem uma folha de papel, para eu não escrever nada. Grande ameaça! Então resolvi que não ia ficar ali, porque podia ser chamado a qualquer momento para interrogatório, mesmo que fosse banal. Depois o regime endureceu, mas era realmente era tudo mais ou menos isso, banal. O sucessor do Celso foi essa figura que trouxeram de Washington, e logo o exército se convenceu de que ele não era adequado, então nomearam um general para o lugar do Celso. Esse general era funcionário da Sudene, era daqueles requisitados, especialista em cartografia, portanto já conhecia a Sudene.
Nessa época a Cepal estava recrutando muita gente. Então fui para o Chile. O Chile era onde se coordenava a assistência técnica das Nações Unidas na América Latina, que a Cepal fazia. Fui para o Chile porque eu queria pegar carona… Eles, Fernando Henrique, Chico Weffort, estavam sendo contratados, e eu ia pegar uma carona ali. Mas não deu. Me ofereceram o Haiti e a Bolívia, e eu disse que preferia as prisões do marechal Castelo Branco, aí voltei para o Brasil. Em determinado momento, uns dois meses depois, me convidaram. Eu fui bater na Guatemala, país que a gente só conhecia pelos manuais de geografia. Ninguém nunca tinha ido lá, não sabia o que era. Aqueles países todos que a gente chamava da América Central eram completamente desconhecidos para nós, e eu fui para lá em uma missão das Nações Unidas. Foi ótimo, é um país lindo, aliás ele era conhecido como o “país da eterna primavera”, porque a temperatura média era de 18 graus o ano todo. Um país lindo, florido, uma cultura autóctone muito viva, muito forte, foi um ótimo período, passei um ano lá. Nesse um ano, um amigo meu, mexicano, que dirigia o Centro de Estudos Monetários no México [Centro de Estudios Monetarios Latinoamericanos – CEMLA] soube que eu andava por lá. Daí fui para o México, em 1966. Eu passei no México o fim de 1966, 1967 e um pedaço de 1968, nesse Centro de Estudos Monetários, onde eu era um estranho no ninho, porque eu não sou monetarista, mas o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] tinha um curso de desenvolvimento econômico que recrutava estudantes da América Latina, estudantes já de curso superior. Fiquei lá dois anos. O México para mim era uma maravilha! Ao fim de dois anos, o diretor do CEMLA, que era um velho republicano espanhol, uma figura extraordinária, me convidou para ser funcionário da OEA. Eu ainda tinha alguns rompantes de independência e disse: “Ser funcionário do Ministério das Colônias não me apetece”; pura bravata mesmo! Pura bravata! Daí eu rompi o contrato e vim para o Brasil, com uma mão na frente e outra atrás.
Fui para o Rio. Ninguém gostava de São Paulo, na verdade São Paulo era o destino dos operários nordestinos, mas intelectual não vinha para São Paulo, intelectual ia para o Rio. Intelectual ou assemelhado… O Rio fez a cabeça do Brasil. A nossa referência nacional, principalmente para as pessoas do Norte e do Nordeste, era o Rio, não São Paulo. Ninguém vinha para São Paulo.
Isto foi antes do AI-5. Com o AI-5, felizmente também não mexeram comigo. Mas não exageremos: eu não era perigo nenhum. De quê? Afinal de contas, nem a Sudene tinha feito nada demais. Era isso: a luta de classes estava muito acirrada. Dá para imaginar o Celso praticando subversão? É inimaginável! Ele era um homem de Estado por inteiro: de cima abaixo. Jamais… Em outro tempo talvez, poderia ser até um subversivo, mas naquela conjuntura não. Então a Sudene não fazia nada, a Sudene era um repositório do que de melhor o Estado brasileiro tinha no Nordeste. Porque era dirigido por Celso, e ele não fazia concessão. A gente se enfrentava com os governadores locais, era um horror. Eu, montado nas costas do gigante, estava de “baraço e cutelo”. O Aluízio Alves era um desses que mandavam no Rio Grande do Norte… Ele era um político de lá, e o mais arrogante que se possa imaginar. Tive vários atritos com ele, que dizia na minha cara: “Você é um comunista vagabundo”, porque, detalhe irônico e banal, ele queria levar o cheque de um convênio que a Sudene tinha, ela tinha convênio com todos os estados, mas não dava o dinheiro diretamente, passava por um certo “planejamento”, entre aspas. Não era nada, na verdade era uma instância que a gente aproveitava e tentava fazer uma correção. A Sudene distribuía dinheiro para o estado do Rio Grande do Norte comprar banana para o lanche escolar. Isso era função de planejamento? Pois é o que a gente fazia. E o jogo era pesado, no resto do Brasil eu não sei, mas no Nordeste era pesado. Eu tinha uns auditores que eram ossos duros de roer. Punha-os no encalço dos convênios e um desses topou no Rio Grande do Norte com o Aluízio Alves em uma viagem do Rio para Natal. E ele foi para cima de mim. “Seu comunista miserável que está prendendo o dinheiro do meu estado”. Não dá mais para imaginar como era, porque o Brasil hoje é uma maciez! Eu disse para ele com o dedo na cara, eu não era assim tão tranquilo não: “O senhor é um constituinte de 46 e devia saber que o governador não é o tesoureiro do estado, de modo que eu não pagarei nada diretamente ao governador, pagarei ao tesoureiro do estado! Se o senhor me trouxer o decreto dizendo que o senhor é o tesoureiro do estado do Rio Grande do Norte, está aqui o cheque, senão não tem”. Ele subiu pelas paredes! E se vingava, quando podia se vingava. Mandava um funcionário dele, que era funcionário da Sudene, e que depois levou para secretário de planejamento, o Geraldo Melo, para me “amaciar”. Aí eu mandei um recado: “Diga ao seu governador, que é um homem de bem: pouco mal se pode fazer. O máximo que vocês podem fazer é mandar me matar, mas aí terminou tudo”. “Você é maluco? Eu vou dar um recado desses ao governador?”. “Pois não dê!”. E estou aqui. O clima era esse, de guerra total, porque eles não eram de “fritar bolinho”. Quem me disse, quando eu fiz o curso na Cepal, que eu iria administrar bananas? Em geral os governadores eram dóceis, mas os que eram da UDN, como o Aloizio Alves e o Virgilio Távora, do Ceará…
No Rio eu mantive um vínculo com a Sudene, eu era funcionário. Mas estava trapaceando. Eu era vinculado, mas morando no Rio. Você tece relações que são extraoficiais… O meu chefe da administração, enquanto eu era da Sudene, na verdade era funcionário do Banco do Brasil, pois o banco tinha um dos melhores quadros do funcionalismo brasileiro. Os do Banco do Brasil e do Itamarati eram os melhores do Estado brasileiro. O Antonio Pinto era funcionário do Banco do Brasil cedido à Sudene. Então eu estava no Rio de araque, porque estava clandestino, mas todo mundo sabia. Ele ia lá e me contava: “Dr. Francisco, está se passando isso e isso, o que o senhor acha?”. Eu continuava a dar instruções, mas isso logo passou, eles reconstituíram tudo. Eu ficava lá, ainda tinha esse vínculo formal com a Sudene, eles não podiam me demitir, salvo por algum dos chamados capítulos, salvo se eu estivesse fazendo alguma coisa contra o Estado. Então eu continuava lá, eu era um feliz desocupado, não tinha a quem prestar contas e não tinha o que fazer. Um grande amigo meu, Zé Maria Aragão, que tinha servido à Sudene, tinha escritório no Rio, o Celso pediu e eu fiquei no escritório de Zé, pegávamos um ou outro projeto… Ele não, ele tinha o emprego dele no Banco do Brasil, eu não tinha nenhum. Então os projetos que ele pegava, projeto de indústria, nós fazíamos juntos.
O AI-5 só afetava quem fazia política. Eu não fazia nada, isso não me atingia porque as coisas no Brasil são assim: se você está fazendo política, você é afetado, senão passa normal, passa batido, como se não estivesse acontecendo nada. E olha que não acontecer nada no Rio era difícil, porque o Rio era o centro. Você não via alteração nas coisas. Como eu não estava em nada, fui muito pouco afetado. Fui afetado no sentido que não podia voltar para o Recife, se voltasse era cana. Eu não podia fazer trabalho nenhum para nenhuma repartição do Rio, então fiquei por ali, zanzando e fazendo coisas que o escritório do Aragão pegava.
Eu só vim para São Paulo algum tempo depois. Na verdade, primeiro fui para a Bahia, convidado pelo Roberto Santos, que veio a ser depois Ministro da Educação. Ele era reitor da Universidade da Bahia. Era da oligarquia. O pai dele, o velho Edgar Santos, foi reitor da Universidade da Bahia durante vinte anos. Tinham “feudos”. O Roberto Santos era filho dele e foi reitor também, e me contratou para o Instituto de Economia da Bahia. Era um instituto meio lá, meio cá, pertencia à universidade mas não era exatamente… Uma coisa ambígua. Ele me contratou através de um instituto que havia na universidade, fui para lá, tive uma entrevista com ele, era uma pessoa muito educada, e eu disse: “O senhor sabe que eu tenho problemas com o Estado…”, e ele mandou eu me calar. De uma forma elegante, ele disse “Dr. Francisco, eu já arrisquei muito mais. Eu já convidei até o Celso Furtado para trabalhar conosco”, e eu percebi que estava sendo besta. Fiquei em Salvador e estava muito infeliz, ser infeliz em Salvador é complicado, mas lá não tinha nada para fazer, porque esse instituto era uma ficção. Aí um amigo meu, Sebastião Simões, um velho amigo do Recife, que era “cria” da Coperbo [Companhia Pernambucana de Borracha], me convidou para vir para São Paulo, e eu vim trabalhar com ele aqui em São Paulo, em uma firma francesa chamada Ceret, que tinha uma filial brasileira dirigida por ele. Mas do jeito que você cria amigos, cria inimigos. E ali na Ceret eu encontrei Walter Rocha (ele não tem importância e já deve ter morrido), e quando o “Bastião” viajou para um seminário, o Walter aproveitou… Ele era o diretor-geral, o “Bastião” era diretor da SD, uma espécie de direção executiva; mandou chamar a mim e ao Gabriel Bolaffi, que tinha entrado lá também, e demitiu nós dois. “Você está demitido, você sabe por que está demitido?”. “Sei”. “Por quê?”. “Porque você é corrupto e eu não”. Tudo isso parece bravata, mas, com alguma fantasia, foi o que se passou. “Por que eu sou corrupto?”. “Porque você fajutou a concorrência da represa do Maranhão e eu vetei. Por isso você me tem ódio até agora. Então se vingue, me demita e acabou”. Foi o que ele fez.
Eu fui para o Cebrap convidado pelo Otavio Ianni. O Cebrap formou um grupo de estudos para executar um projeto para a Academia Brasileira de Ciências. Então havia um programa sobre planejamento geral, que ficou a cargo de Otávio, e ele me convidou para o planejamento regional. A gente tinha levado Otávio muitas vezes para dar curso no Nordeste. Demorou pouco tempo essa associação… Mas foi através do Otávio que eu me aproximei do Cebrap e acabei ficando lá por uma circunstância: a turma do Cebrap não tinha nenhuma experiência administrativa. Bom, eram todos acadêmicos. E eu tinha alguma, porque tinha trabalhado na Sudene e conhecia um pouco, não muito também. Daí se vê como o Estado brasileiro é frágil: qualquer aventureiro faz o que quer. Enfim, eu tinha alguma experiência, alguns macetes, e me entrosei. Era o Fernando Henrique, o Otávio, o Juarez [Brandão Lopes], o Rubens [Murillo Marques], e fui ficando por ali. Entrar no Cebrap era mergulhar na política. Às vezes não de forma relevante, mas no Cebrap se fazia política 24 horas por dia. Por quê? Porque Fernando foi se tornando uma pessoa importante no MDB. Gente do MDB frequentava o Cebrap, como Marcos Freire, Ulysses [Guimarães]… Foi havendo essa aproximação.
Aliás, acho que eu não tenho nenhum artigo científico desta época, devem ser todos “roçando” ou entrando direto em temas políticos. Mas era uma turma muito interessante. O Chico Weffort estava lá. O menos político era o Juarez, ele era mais sociólogo mesmo. Teve o Vinicius Caldeira Brant… Era um grupo muito interessante.
Por surpreendente que pareça, eu nunca entrei no MDB. Tinha o pé muito atrás, era preconceito, na verdade. Mas eu colaborava intensamente. A gente dava cursos, quer dizer, não o Cebrap, o Fernando sempre teve esse cuidado de não aparecer, porque era a ditadura ainda, a repressão poderia cair matando. Mas o Fernando, habilidade é o nome dele, sempre procurou contatos com a ala admitida pela ditadura (não quer dizer necessariamente que eram os colaboracionistas, de jeito nenhum): Ulysses Guimarães, Franco Montoro… Essa foi a ligação. Para mim era uma coisa importante. A gente fazia estudos que não tinham o nome do Cebrap, uma série de estudos que depois virou quase um manual do MDB. Éramos eu, Chico Weffort, Fernando Henrique, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Luís Werneck Vianna, uma turma muito boa… O Werneck nessa época estava em São Paulo, estava mal arrumado no Rio…
O Fernando, como eu disse, era o senhor habilidade, ele se relacionava com o Ulysses, se relacionava com o Franco Montoro, com [Paulo] Egydio Martins, que foi governador [de São Paulo]. Ele tratou de desfazer aquilo que a ditadura pensava que a gente era, um bando de comunistas disfarçados! Há poucas coisas menos verdadeiras do que isso. Na verdade o Cebrap tinha alguns marxistas, alguns! Essa é uma boa afirmação. Os outros já estavam querendo sair desse foco, o Fernando mesmo, ninguém podia dizer mais “trata-se de uma liderança marxista”. Ele era bastante discreto. A ditadura pensava que tudo era igual, isso facilitava o trabalho da repressão, mas ao mesmo tempo falhava, porque os grupos importantes no caso do Cebrap eram os grupos da religião, [Cândido] Procópio [Ferreira de Camargo], Antonio Flávio [Pierucci] e Reginaldo Prandi. Era o grupo mais consistente. Os outros não… Apenas durante certo tempo Chico Weffort coordenou o grupo de classe operária. Os outros, que eram talvez os melhores quadros do Cebrap, de marxista não tinham nada: Bolívar Lamounier e Wilmar Faria queriam ver o diabo mas não queriam ver Marx. Eles eram talvez os melhores quadros, do ponto de vista da sociologia, junto com o Juarez. Os outros eram mais ativistas do que sociólogos: eu, o Vinicius Caldeira Brant… Eu ia às atividades do MDB. Onde a gente ia, encontrava com ele. Era um grupo que, para quem tinha olho clínico, tinha vinculação, senão passava ao largo. Éramos eu, Chico Weffort, Maria Hermínia, Luiz Werneck… Eu achava que o caminho para a redemocratização era a revolução, depois fui aprendendo que revolução é um raio de sol no céu azul: não ocorre todo dia, felizmente. Eu não achava que o MPB era o caminho para a redemocratização, mas era com quem a gente tinha diálogo.
A história contada depois é mais fácil. Eu nunca achei que o Lula fosse o caminho da revolução, aliás, quem acertava em cheio no Lula era o Roberto Freire, o “partidão” nunca apostou no PT. Um pouco por ciumeira, porque o PT passou o trator. Um pouco porque, como se dizia antigamente, a boca “entronchada”, o “partidão” tinha uma teoria sobre o Brasil, coisa que o PT não tem e nunca teve, e nessa teoria sobre o Brasil o Lula não se encaixava bem. Eles nunca apoiaram o PT. Eu estava mais para o lado do “partidão”, embora nunca tivesse entrado no partido, achava o Lula um pouco farsante. Para mim era muito estranho que um líder operário não conhecesse a história operária. Ele não conhecia nada, nem conhece, na verdade ele foi empurrado para lá pelo irmão dele, que o povo chamava de frei Chico. Esse era militante. O Lula não.
Mas participei da fundação do PT. Ninguém fazia restrições ao Lula, eu estou dizendo isso mais em caráter pessoal. Mas todo mundo entrou. Na saída do Colégio Sion, onde se deu a famosa reunião de fundação do PT, foi surpreendente. As pessoas saíam alegres como crianças: José Arthur Giannotti, Leôncio Martins Rodrigues, eu… A gente saiu rindo, porque o Colégio Sion concretizava aquilo que a esquerda pensava que era o caminho, quer dizer, reunir intelectuais e trabalhadores. Saímos de lá em estado de graça. Mas o PT real não tinha nada disso. Também havia o Chico Weffort, que foi o primeiro secretário do partido. A história é bastante confusa. Fernando Henrique, se quisesse, o que informa essas decisões dificilmente se sabe, mas, se quisesse, teria fundado o PT.
Quem tinha discurso socialista eram algumas facções do PT, mas a que vinha pela Igreja não tinha, a dos sindicalistas não tinha, quem tinha um discurso mais socialista eram os mais propriamente políticos, os outros em geral não. Discurso socialista e sindicalista de São Paulo… O único que tinha de fato era Paulo Scromov, mas Paulo era escolado, era um quadro trotskista muito conhecido, ele não dava a linha do PT, mas era uma das facções. Terminou expurgado. Os outros não… Quer dizer, quem conhece a liderança sindical, poria fé nesse socialismo? Socialismo de Lula, de Djalma Dutra, de Rubão, me poupe! Eles faziam atividade sindical, mas não tinham nenhuma palavra de ordem socialista. Não entre eles. Tinha nas alas, fora do movimento sindical. Foi aí que a mosca caiu no mel: a esquerda pensava, fiando-se em Marx, que a vitória da classe operária seria tarefa da classe operária.
Direi uma coisa heterodoxa: quem menos liderou a redemocratização foi a classe operária. É que a gente, por causa do velho Marx, tem essa adulação. Quem derrotou a ditadura foi a classe média. Derrotou não como classe, derrotou entrando no MDB, derrotou fazendo todo tipo de política que era possível fazer, não foi a classe operária, isso é uma adulação boba, e já está na hora, não de desfazer qualquer coisa, mas de entender o movimento real da história que houve no Brasil. Você não tinha grandes movimentações. Quando chegou ao auge em que essa panela já borbulhava por fora, aí você tem o Comício de Vila Euclides, mas se você olhar antes o trajeto, peguem fotografias da época, quem está liderando as passeatas? Ulysses Guimarães, Fernando Henrique, são eles que estão lá na frente. Mesmo porque a visibilidade política dessa fração da classe média sempre foi maior. Mas nos momentos de auge, no famoso Comício da Vila Euclides, aí se projetam também outras imagens. Mas na maior parte dos casos, sem nenhum desdouro, as figuras eram da classe política.
Me lembro de uma entrevista que a gente foi ter com o Ulysses Guimarães. Não sei como Dona Amora se apaixonou por ele, ele era a antipaixão, nunca vi ninguém mais desengonçado, mais frio, todo formal. Ulysses nos recebeu, eu estava com Fernando Henrique nessa ocasião, a gente já era bastante calejado, já tinha feito política, já tinha entrado na esquerda, já tinha saído da esquerda, e nos disse: “Jovens, o mundo marcha para o socialismo”. O mundo estava indo na direção contrária… Como ele não tinha traquejo nisso, essa era a forma que ele encontrava de se aproximar da esquerda – que passou a ser a grande colaboradora dele. Um texto que a gente fez virou programa (eu, Chico Weffort, Maria Hermínia, Luiz Werneck, quem menos tocou nele foi Fernando Henrique), virou bíblia. A gente foi para Brasília discutir esse documento, a reunião em Brasília foi uma coisa antológica, nós fomos para o apartamento de ninguém menos que [Ernâni do] Amaral Peixoto. Amaral Peixoto, o famoso genro de Vargas, era tudo o que você podia pensar em oposição ao socialismo. Pois foi Amaral Peixoto quem nos recebeu no seu apartamento para um jantar. As figuras desse jantar são uma coleção brasileira sem igual. Ele era melhor do que a gente pensava. Enfim, havia o próprio Amaral Peixoto, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, uma outra figura que já morreu e que tinha tudo para se pensar contra, Thales Ramalho. Ele foi durante muito tempo, enquanto isso não tinha importância, o secretário geral do MDB. Era um político de Pernambuco, tinha sido líder estudantil, não era uma figura anódina; era daqueles que pensam o futuro. O futuro para ele foi casar-se (é verdade; é por aí que passa a história) com a filha de um grande empresário em Pernambuco. Esse empresário era simplesmente dono do cimento na metade do Brasil. Um detalhe, para ver como Thales Ramalho pensava: a mulher dele era negra. Não era o negro brasileiro clássico, era mais o moreno. O Thales Ramalho era loiro de olhos azuis, o que em Recife é uma façanha…
Isso ainda foi na ditadura, ela não tinha terminado. Fomos todos para Brasília para essa reunião. Alguém refazendo essa história hoje de trás para frente pode levar a sério um bando de mentecaptos? Estava-se fazendo política, porque quase qualquer coisa que você fizesse no Brasil era fazer política.
Os lugares mais quentes eram o Rio Grande do Sul e Pernambuco. Uma coisa fantástica, a liderança no Rio Grande do Sul era Pedro Simon! Quer dizer, Pedro Simon é um democrata, e era a liderança inconteste dos poucos que conseguiram fazer a travessia do PTB para o MDB. E era de verdade, não era oposição de mentirinha. A gente ia muitas vezes ao Rio Grande do Sul, porque era um dos estados onde a oposição à ditadura era mais consistente. Pedro era a figura principal, junto com André Forster.
O outro lugar era Pernambuco, pela liderança de Marcos Freire e Fernando Lyra. São Paulo mesmo era muito anódino. Quem era liderança de oposição naquele tempo? A gente já sumiu na poeira, os emedebistas de São Paulo. Depois é que veio o Montoro… Antes era o Lino de Melo, um senador por São Paulo sem a menor expressão.
O Ulysses tinha dificuldade para se eleger. Se elegia deputado federal ralando as costas, era difícil fazer campanha para Ulysses. A gente fez sua campanha na Zona Leste, imagine o que era tornar o Ulysses conhecido na Zona Leste de São Paulo. Era uma coisa ingrata. Ele teve 4% de votos… O que é uma enorme injustiça, porque ele era um grande político brasileiro, desses de articular… Igual não tinha. Engraçado, eles morreram juntos, ele e o Severo Gomes, que era da oposição, depois passou para o MDB e virou um mito. Como diz o hino brasileiro: “Já podeis da pátria filhos…”.
Este depoimento é parte do livro 1964 – do golpe à democracia, recém-lançado pela editora Hedra (https://www.hedra.com.br/livros/1964-do-golpe-a-democracia) em parceria com o Cebrap.
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