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SIBILA DEBATE 64: Marcos Napolitano

O GOLPE FOI A UM SÓ TEMPO PREVENTIVO E PROJETIVO (NO SENTIDO DE APONTAR PARA OUTRO PROJETO DE ESTADO E SOCIEDADE)

Marcos Napolitano é mestre e doutor em História Social pela USP, onde também se graduou em História. Foi professor no Departamento de História da UFP (Curitiba) e é atualmente professor de História do Brasil Independente na USP, além de professor visitante do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade de Paris III. Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar e história da cultura.

Sibila: Jacob Gorender enfatiza, segundo o historiador Carlos Fico, que, no pré-64, engendrou-se uma real “ameaça à classe dominante brasileira e ao imperialismo”: “O período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século [XX]. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contrarrevolucionário preventivo”. Segundo Fico, “Gorender consolidou, em traços gerais, duas das principais linhas de força interpretativas sobre as razões do golpe: o papel determinante do estágio em que se encontrava o capitalismo brasileiro e o caráter preventivo da ação, tendo em vista reais ameaças revolucionárias provindas da esquerda”. O senhor concorda com essa visão do golpe? Ela não tem algo de irrealista? Havia, de fato, ameaças reais ao poder e ao statu quo vindas da esquerda? A conjuntura externa, as grandes tensões da Guerra Fria, não foram uma lente que deformou as percepções políticas da época? Paradoxalmente, este não é o argumento central dos que justificam o golpe?

Napolitano: Em linhas gerais, eu concordo que havia um projeto alternativo real ao curso histórico de longa duração da sociedade brasileira. No começo dos anos 1960, esboçou-se uma combinação entre mobilização social e uma pauta reformista que vinha de uma elite renovada que ocupava o Estado, sob o governo João Goulart. Podemos dizer que havia certo redesenho da hegemonia política e cultural no Brasil, até então sob domínio de setores liberais-conservadores e autoritários de direita. Entretanto, acho que foi mais um projeto reformista, que não deve ser menosprezado, diga-se, do que uma “situação pré-revolucionária”. De qualquer forma, concordo com Gorender que havia um elemento de “luta de classes” fundamental na crise de 1964. O golpe, neste sentido, foi a um só tempo preventivo (contra qualquer perigo revolucionário que se avizinhasse) e projetivo, no sentido de apontar para outro projeto de Estado e de sociedade, completamente mergulhados no modelo de desenvolvimento capitalista “associado”, com o controle rigoroso das pressões vindas de baixo e o afastamento dos reformistas de esquerda do coração do Estado. Esta é minha visão sobre o golpe.

1º de abril de 1964 em Curitiba
1º de abril de 1964 em Curitiba

Sibila: Gorender escreveu: “O núcleo burguês industrializante em 1964 e os setores vinculados ao capital estrangeiro perceberam os riscos dessas virtualidades das reformas de base e formularam a alternativa da ‘modernização conservadora’”. A “modernização conservadora” não foi uma criação do governo militar, mas é uma marca da história brasileira, incluindo a Proclamação da República pelo exército, a República Velha, o governo Vargas, o governo JK. Hoje, o Brasil de 2014 tem um perfil agrário e exportador, sem uma burguesia industrial fortalecida. Ao mesmo tempo, desde os governos FHC e Lula e incluindo o governo Dilma, há uma proclamada ascensão econômica das classes mais baixas, mas restrita ao consumo, e excluindo todos os fatores da cidadania moderna, a começar da educação. Esta seria uma das caras reatualizadas da modernização conservadora à brasileira em geral, e de 1964 em particular?

Napolitano: Acho que, em linhas gerais, esta análise está correta. Mas eu não gosto de diluir especificidades políticas, ainda que sutis, seja entre o regime militar e a democracia pós-1985, seja entre os diversos governos democráticos. Ainda que todo esse processo possa ser visto sob a ótica da “modernização conservadora”, ele esconde especificidades em cada momento, que não podem ser completamente aplainadas. Tendo em vista o surto reacionário que estamos assistindo na opinião pública brasileira, alguma coisa está incomodando os setores conservadores. O perigo é que alguns liberais, na sanha do antipetismo, estão indo cada vez mais para a direita, alimentando setores abertamente reacionários. O Brasil precisaria de um pacto republicano que construísse um ambiente político que combatesse e isolasse a opinião de extrema direita, não a deixando se transformar em alternativa real de poder. Ainda estamos longe disso, mas nunca se sabe…

Comemoração pela Copa de 1970
Comemoração pela Copa de 1970

Sibila: Alguns consideram que sem a guerrilha de 1969 a 1975 (pós AI-5), incluindo a do Araguaia, não haveria redemocratização formal do país. Sem as torturas e outros fatores (governo Jimmy Carter), a presença dos militares se prolongaria. O senhor concorda com esta tese? Ela não simplifica tudo em uma variável, talvez hipertrofiada e inteiramente externa ao regime, omitindo, por exemplo, os conhecidos embates dentro da cúpula militar, justamente quanto à questão da necessidade da redemocratização? Há algum documento estratégico do governo militar que contemple a perspectiva de uma ditadura indefinida?

Napolitano: O modelo estratégico sonhado pelos militares era um governo civil, uma espécie de “democracia formal e plebiscitária”, com um grande partido oficial, ligado ao regime, ancorado em uma Constituição que incorporasse alguns princípios dos Atos Institucionais, como o controle social e político e a segurança nacional como conceitos permanentes de defesa do Estado. Isto fica claro por volta de 1972/1973, passando a se chamar “modelo político brasileiro”. A ditadura indefinida era defendida por setores ligados mais ao combate à guerrilha, mas que nunca tiveram tanta força política quanto se fala, embora fossem uma importante “guarda pretoriana” do regime. Foi justamente a mobilização da sociedade, seja na guerrilha, mas principalmente nos movimentos sociais extrainstitucionais e na oposição organizada da sociedade civil que ampliou os limites deste projeto. Apesar de conservadora, negociada e limitada, acho que a transição não foi igual à desenhada no início dos anos 1970. Defendo isto no meu livro.

Sibila: À época do golpe militar, o mercado editorial brasileiro era bastante apequenado. Os números de novos títulos, de traduções, de leitores etc., eram mínimos, incluindo a esfera acadêmica. Além disso, serviam a uma pequena intelligentsia de escritores, críticos, intelectuais etc. Não havia nem um público de massa nem um público médio de literatura “média”, de mercado. Hoje este público está em formação e, segundo os otimistas, em ascensão, mas em detrimento daquela intelligentsia, hoje minguada em sua influência e mesmo em sua existência, substituída pelos algo fantasmáticos “formadores de opinião”. Concorda com esta avaliação, que parece seguir certo modelo brasileiro de ganhar por perdas?

Napolitano: Em linhas gerais, eu concordo. Mas não sou muito otimista. Acho que a destruição do sistema de educação pública no Brasil limita o desenvolvimento estrutural e qualitativo de um público leitor não-acadêmico, mesmo em termos “médios”. Isto não é incompatível com o crescimento absoluto de leitores ou de títulos. Por outro lado, também não sou nostálgico dos anos 1960, pois, como a pergunta aponta, a vida intelectual era importante, mas restrita. Em linhas gerais, acho que vivemos dois fenômenos complicados. Um analfabetismo funcional crescente entre as populações com escolarização limitada. E uma classe média escolarizada, mas que ainda lê muito pouco, sobretudo boa literatura. Não acho que seja uma marca apenas do Brasil, mas aqui é mais acentuada.

Sibila: Se as mentalidades são mesmo prisões de longa duração, podemos afirmar que há uma característica histórica permanente na mentalidade brasileira? Qual?

Napolitano: Acho que as mentalidades existem, sem dúvida, mas não vejo essa “prisão” como inexpugnável. Processos educacionais e políticos bem conduzidos por elites políticas e culturais renovadas, em combinação com movimentos sociais vigorosos e articulados, podem quebrar estas grades. Mas aceitando que existem marcas fortes de longa duração na sociedade brasileira, arrisco algumas: elitismo social-racial; conservadorismo político; conciliação pelo alto; informalidade nas convenções e convívios sociais (o que abre espaço para negociações e arranjos constantes e, por vezes, escusos, que não raro degeneram para a violência social).

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 Sobre Marcos Napolitano

É mestre e doutor em História Social pela USP, onde também se graduou em História. Foi professor no Departamento de História da UFP (Curitiba) e é atualmente professor de História do Brasil Independente na USP, além de professor visitante do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade de Paris III. Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar e história da cultura.