A TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA NO BRASIL
SEMPRE FOI TAMBÉM UMA TRANSAÇÃO
Urariano Mota é escritor e jornalista pernambucano. Foi colaborador de Movimento, Opinião, Escrita, Ficção, entre outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redaçãoe colaborador do Observatório da Imprensa. É autor de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009), que reconstrói as circunstâncias, confissões e testemunhos da passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife em 1973, e a traição que levou à sua prisão, tortura e morte pelo governo militar.
Sibila: Alguns consideram que sem a guerrilha de 1969 a 1975 (pós AI-5), incluindo a do Araguaia, não haveria redemocratização formal do país. Sem as torturas e outros fatores (governo Jimmy Carter), a presença dos militares se prolongaria. O senhor concorda com esta tese? Ela não simplifica tudo em uma variável, talvez hipertrofiada e inteiramente externa ao regime, omitindo, por exemplo, os conhecidos embates dentro da cúpula militar, justamente quanto à questão da necessidade da redemocratização? Há algum documento estratégico do governo militar que contemple a perspectiva de uma ditadura indefinida?
Urariano: Creio não haver um documento que afirme a perspectiva de uma ditadura por tempo indeterminado. Mas observo que o golpe em primeiro de abril de 1964 previa uma volta à democracia assim que se “expurgasse o mal” dos comunistas. E, no entanto, os ditadores entraram em sucessão, passando pelo terror assumido da ditadura Médici. De fato, havia embates na área militar, mas eles se davam entre a direita moderada e os fascistas, como foi exemplo a ação no Riocentro. Os militares democratas, “legalistas”, já haviam sido antes mortos ou silenciados. Por outro lado, a redemocratização se deu por força dos movimentos clandestinos e legais. Na verdade, o regime empurrou para a clandestinidade a oposição, na medida em que a delação e o terror imperavam nas universidades, sindicatos, imprensa e todo o mundo brasileiro. Já no seu nascedouro foi assim, quando cassou intelectuais do porte de Celso Furtado, Josué de Castro, Paulo Freire, para ficar nos exemplos que conheço mais de perto, do Recife. Em resumo, se é possível um resumo: as lutas clandestina e legal é que possibilitaram a volta da democracia.
Sibila: O que significa a presença de José Sarney da UDN até hoje, passando pelo golpe de 1964? Com ele liderando a transição, não se fez uma Comissão da Verdade. Como o senhor explica uma transição para a democracia sem uma Comissão da Verdade e sem a punição dos militares e dos “excessos” (formalmente crimes) dos aparelhos de esquerda? O assassinato, por exemplo, de Henning Boilesen, foi excessivo ou justo? Pode uma execução extrajudicial ser justa? Se o for, quando praticada pela esquerda, não o será também quando praticada pelo aparelho de Estado?
Urariano: Acredito que há um engano na relação, ou identidade, entre justiça e lei. A injustiça não se faz pela desobediência à lei. Imagine a escravidão no Brasil e o largo tempo em que foi legal. O problema é que a transição para a democracia no Brasil sempre foi, também, uma transação – um comércio, um acordo por cima. E mais, da distensão à democracia o processo não se fez de modo linear como em um fluxo de programa computacional. Assim, a Comissão da Verdade não veio como em outros países. E quando chegou, atravessou e atravessa até hoje obstáculos e boicotes e insultos inomináveis. Como compreender uma democracia que tem um Bolsonaro a debochar da busca de corpos de desaparecidos? Em que os oficiais nas escolas militares continuam a ser formados pela doutrina da guerra fria em pleno século XXI? E, no entanto, assim tem sido. Por fim, os erros na esquerda não são equivalentes ao terrorismo dos fascistas. Até hoje, o princípio de repúdio à tortura é cláusula não violada entre socialistas. Imagine a execução fria de presos desarmados, como se fez no Brasil. E ainda se faz até hoje contra os pobres e periféricos, pela polícia.
Sibila: A fragilidade do Poder Judiciário, do Ministério Público e da polícia decorre em parte da impunidade dos agentes de 1964?
Urariano: Em parte, sim, é claro. Mas seríamos míopes se não víssemos que os torturadores vêm da nossa história escravocrata, que se atualizou com requintes científicos depois de 1964, quando o Brasil exportou torturadores e métodos de tortura para a América do Sul.
Sibila: Considerando as teorias da Nova História e do culturalismo, gostaria que o senhor falasse um pouco de fatos como Sergio Paranhos Fleury ter sido guarda-costas de Roberto Carlos de 1965 a 1968 e do grupo da Jovem Guarda – criada pela agência de publicidade de Carlito Maia, irmão de Dulce Maia (da ALN). Roberto Carlos que elogiou em 1973 o general Pinochet, chamando-o de “señor presidente, Don Augusto Pinochet. Houve colaboração de artistas com o regime militar em geral e com a OBAN e o DOI-CODI em particular?
Urariano: O caso mais conhecido é o de Simonal, que possuía bons amigos no DOPS, como foi revelado no episódio da prisão do seu funcionário de contabilidade. Não se pode dizer, com base documental, que Roberto Carlos tenha colaborado com a OBAN ou DOI-Codi. Seria leviano e caluniador afirmar isso. E aqui remonto um texto que escrevi sobre o “rei”. É sintomático em Roberto Carlos a passagem de cantor da juventude, da Jovem Guarda, para cantor “romântico”. Essa passagem se dá na medida em que os jovens de todo o mundo deixam de ser apenas um mercado de calças Lee e Coca-Cola, e passam a explodir em protestos contra a guerra do Vietnã, até mesmo em festivais de rock, como em Woodstock. Ou, numa versão mais brasileira, o “rei” Roberto torna-se um senhor “romântico” na medida mesma em que as botas militares pisam com mais força a vida brasileira. Naqueles angustiantes anos o que compõe o jovem, o ex-jovem, que um dia desejou que tudo mais fosse para o inferno? “Eu te amo, te amo, te amo”.O namoro de Roberto Carlos com o regime não foi um breve piscar de olhos, um flerte, um aceno à distância. Não sei se me explico bem. O Roberto não compôs só a música permitida naqueles anos de proibição. O “rei” não foi só o “jovem” bem-comportado, que não pisava na grama, porque assim lhe ordenavam. Ele não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas, diamantes, que levantavam o mundo ordenado pelo regime. Ora, enquanto jovens estudantes eram fuzilados e caçados, enquanto na televisão, nas telas dos cinemas, exibe-se a brilhante propaganda “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o que faz o nosso “rei”? Irrompe com uma canção que é um hino, um gospel de corações ocos, um som sem a fúria de negros norte-americanos. Ora, o “rei” ora: “Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui”.
Sibila: Como o senhor vê o rebaixamento cultural brasileiro de hoje? Ele tem causas em 1964? Ou com a civilização global do espetáculo, na qual o entretenimento substituiu a cultura, e a arte se tornou uma arte simplificada e sem referências que perturbem sua recepção?
Urariano: O entretenimento que substitui a cultura é uma tese de Mario Vargas Llosa em sua nova fase de escritor desencantado com a esquerda. Mas que guarda, ainda assim, o desejo de continuar no campo de uma ordem humanista. Não creio que dessa mistura nos venha uma boa análise. Em nosso caso, é inegável uma queda na produção cultural no Brasil, e uma das causas passa, em meu entender, de modo irrefutável, pelo golpe de 1964. Essa é uma pergunta que deveria em primeiro lugar ser respondida pelos mestres, pelos pedagogos, pois a destruição se fez em primeiro lugar na qualidade do ensin0 brasileiro. É quase elementar: sem boas escolas, sem mestres de escola pública, não há cultura que avance como um conjunto. Perdemos o hábito da leitura em voz alta. Antes, pior, perdemos massas de talento que não se libertam pela alfabetização, que continuam iletradas, apesar dos diplomas. Por outro lado – ou será no mesmo? – a televisão virou uma epidemia que mata e se espalha pelo que não é TV: pelo teatro – as peças são de atores de telenovelas −, pelo cinema, pelos jornais, até mesmo pela literatura, que procura competir com imagens de games e ritmo de telenovelas. Precisamos renascer com uma revolução no ensino e com a democratização da mídia. Penso que daí, como se afirma com rara felicidade na Bíblia, “tudo mais virá por acréscimo”.
Sibila: Aprofundando a questão anterior, por que parece não haver mais condições para uma arte crítica no Brasil? Trata-se do fim das utopias, da globalização, do consumismo, do narcisismo “Facebook”, em suma, do “espírito da época”, incluindo certa “demissão da crítica”, em grande parte mercadologizada, como, aliás, a própria mídia, ou o modelo social e econômico brasileiro é parte necessária da resposta, de que o atrasado modelo “agrário”, isto é, agroexportador, é exemplo e talvez parte implicada?
Urariano: Seria preciso um largo tempo para responder e aprofundar o que a pergunta descortina. Mas creio que ainda existem condições para uma arte crítica no Brasil. Ela já está acontecendo, apesar de não aparecer na mídia. Em que lugar então ela ocorre? No Sul ou Sudeste, vá à periferia. Ou venha para o Nordeste, e acompanhe os poetas independentes do Recife, por exemplo, os ditos da “poesia marginal”. A humanidade resiste em formas que ainda não estão divulgadas.
Sibila: João Cabral, em duas conferências famosas, de 1952 e 1954, já discorria sobre o problema do fatal distanciamento moderno do público de poesia. As coisas pioraram ou melhoraram, paradoxalmente, durante o regime militar? Alguns poemas de A rosa do povo, de Drummond (1944), ou “A rosa de Hiroshima” de Vinicius (1954), e livros como Poema sujo de Gullar, tiveram então certa popularidade, pela temática politizada, e parecem ter conseguido manter a poesia dentro de um contexto de certa efervescência político-cultural reativa, que incluía o teatro (Arena, Opinião etc.), a música popular e mesmo a prosa, como nas coletâneas de contos “brutalistas” de Rubem Fonseca nos anos 1970. Se houve melhora ou piora em relação à situação descrita por Cabral nos anos 1950, ou melhora pontual e piora geral, estas se amenizaram ou se acentuaram com a redemocratização à brasileira?
Urariano: Olha, da ditadura nada veio de bom. Minto. Veio a qualidade técnica das telenovelas da Globo. O mais foi resistência ou modos infelizes para sobreviver. Da fase da redemocratização, “à brasileira”, penso que ainda é cedo, muito cedo, para um balanço.
Sibila: À época do golpe militar, o mercado editorial brasileiro era bastante apequenado. Os números de novos títulos, de traduções, de leitores etc., eram mínimos, incluindo a esfera acadêmica. Além disso, serviam a uma pequena intelligentsia de escritores, críticos, intelectuais etc. Não havia nem um público de massa nem um público médio de literatura “média”, de mercado. Hoje este público está em formação e, segundo os otimistas, em ascensão, mas em detrimento daquela intelligentsia, hoje minguada em sua influência e mesmo em sua existência, substituída pelos algo fantasmáticos “formadores de opinião”. Concorda com esta avaliação, que parece seguir certo modelo brasileiro de ganhar por perdas?
Urariano: Esta foi a melhor pergunta até aqui. Concordo com a tese que ela esboça.
Sibila: A literatura brasileira, hoje, cresce por diluição, em mais de um sentido, em meio a um mercado polimorfo e à convivência com a internet, seja no caso da publicação em e-books ou da reedição eletrônica e dos downloads, seja no caso de criações originais feitas na rede e para a rede, que podem ou não vir a ser publicadas em livro. Ao mesmo tempo, o mercado editorial em si também cresce, ainda que manco, pois centrado e concentrado em modismos mercadológico-literários. Mesmo a poesia encontra, apesar de muito pontualmente, espaços passageiros de grande presença, de é exemplo a recente publicação da obra poética completa de Paulo Leminski, que se tornou um best-seller. Como pode, se pode, a literatura contemporânea voltar a ter alguma influência cultural? Neste caso, o período do regime militar ficará na história como seu último momento de presença forte, apesar de tudo?
Urariano: Em primeiro lugar, a literatura não teve “presença forte” durante o regime militar. Esse lugar de excelência e altura foi ocupado pela música popular. E quanto à fortaleza, pela televisão. A literatura resistiu, e não resistiu bem, porque desse período as obras de novos autores, daqueles da faixa dos 20 aos 40 anos, quase nada ficou. E os mais lembrados entram no campo do extraliterário que repercutiu nas suas pessoas. É como uma permanência com legenda, que se sustenta coma legenda explicativa ao pé da obra. Quanto ao que ela pode ser, hoje, como influência cultural, creio que isso é muito difícil ou impossível. Não sei, desconheço, se em algum lugar da história brasileira a literatura tenha tido influência sobre a cultura. E se possuiu alguma, ela abdicou de formalismos, pompa, fraque e gravidade. Pelo contrário, ela se disfarçou, entrou de fantasia nas casas, como se literatura não fosse. Onde? Eu gosto de falar do que conheço. E essa fantasia eu vi e vivi. Então eu digo e falo: as crônicas de Nelson Rodrigues, em especial as crônicas esportivas, são literatura da maior qualidade, mas disfarçada de outra cosia, de textinho ligeiro e “engraçado”. Mas olhe que em matéria de crônica esportiva, em literatura do futebol, o exemplo de Nelson Rodrigues é o que há de melhor no mundo. Nem o grande Galeano lhe chega perto. Outro exemplo de disfarce, de ótima literatura que ninguém considerou, porque não lhe disseram que aquilo era grande e alto: as crônicas de Dom Hélder Câmara. Para ser mais preciso, no livro que reuniu os seus comentários no rádio sob o nome de Um olhar sobre a cidade. Por ironia, estiveram juntos, em boa literatura, de influência cultural, os antípodas e adversários na ditadura, Nelson Rodrigues e Hélder Câmara.
Sibila: Se as mentalidades são mesmo prisões de longa duração, podemos afirmar que há uma característica histórica permanente na mentalidade brasileira? Qual?
Urariano: Pergunta difícil, mas ouso apontar uma característica duradoura: a herança de escravos e de escravocratas. Joaquim Nabuco já havia notado.
[include-page id=”11046″]