Tenho vivido uma importante experiência da minha debutante vida de músico. Longe de grandes palcos, festivais, prêmios ou qualquer atividade de prestigio, falo da experiência de tocar nos metrôs de Montreal – Canadá. É verdade, no entanto, que, ao dizer que “toco no metrô de Montreal”, certo charme parece daí emanar; a cultura norte-americana pintou em seu imaginário um lugar todo próprio ao artista urbano, aquele que trabalha sem intermédios empresariais, que troca uma canção por uma refeição, conhece pessoas esquisitas e faz do seu “vestir-se mal” um jeito alternativo de sair bem na foto.
Não é exatamente dessa imagem, porém, que vou falar. Antes de decidir tocar no metrô, procurei diversos pequenos trabalhos “regulares” que me ajudassem a manter-me por aqui. Faxineiro, pintor de casas, auxiliar de biblioteca… para todos eles fiz um pequeno currículo, no qual constava a frasezinha de cabeçalho: “Meu objetivo é obter um trabalho que me integre a esta cidade e me possibilite dedicar-me aos estudos na Universidade de Montreal, eximindo-me de possíveis preocupações financeiras”.
Suponho que esta frase tenha sido a responsável pelo fato de nenhum dos cerca de vinte empregadores que eu contatei me haver retornado. Quem gostaria de contratar alguém assumidamente deslocado na cidade? Tamanha franqueza em um currículo nunca deve inspirar boa coisa. Mas o fato era justamente este: após seis meses estando aqui como “estudante universitário de Música”, acometia-me certa impressão de ser um turista com prazo expirado. E qualquer um que já viajou sabe a diferença entre relacionar-se com uma cidade sendo um turista e sendo seu verdadeiro morador. Depois de seis meses, eu deveria agir como alguém que morasse aqui.
Naquela busca por trabalho, que durou uns dois meses, utilizei o metrô como nunca. Posso dizer ter conhecido a maioria de suas 67 estações. Aquelas de maior circulação dispunham de uma área onde se podia tocar música. Ouvia-se de tudo, como é típico numa cidade que atrai tantos imigrantes: violino cigano, uma dupla feminina de pop-folk, um flautista que tocava do alto de suas pernas-de-pau, um senhor de proveniência desconhecida e cujo idioma, em que cantava melodias exóticas, também me continua um mistério…
No meio desse vaivém subterrâneo, ressoava a sugestão de minha amiga Silvia: italiana que é, enfurecia-se quando eu discutia a possibilidade de fazer estudos clínicos pagos, prática comum por aqui pra se obter dinheiro rápido. Com seu francês carregado de mediterraneidade e suas mãos italófonas, me dizia, quando passeávamos por debaixo da terra: “Vai tocar no metrô, então, que nem eles!”.
As italianas são furiosamente belas.
A beleza é indício da verdade.
Começo então a tocar com meu amigo Valentin, saxofonista francês. Nos ensaios, surge uma questão: como preparar um repertório? O ideal, lembro-me de meu professor Douglas, é ser generoso. O que entendo disso, musicalmente, é que devemos tocar algo que faça bem aos passantes, e não simplesmente dedicado a mostrar como nos é que somos bons. Não nos tarda a ocorrer a ideia de tocar músicas de videogame, objeto do imaginário comum tanto brasileiro quanto francês ou canadense. Voilà! Videogames e hits do youtube, para atrair risos e moedas, em arranjos de além-mar.
Fazendo então versões estilizadas dos temas de Super Mario 64, Zelda, Trololo e Nyan Cat, além de famosos temas “curinga” de jazz-manouch (aqueles que aparecem na introdução dos filmes do Woody Allen), fomos ganhando alguns dólares por dia, muitos sorrisos tímidos, algumas gargalhadas de game-maníacos e, no caso do Valentim, até um número de telefone feminino.
Breve nota sobre os sorrisos tímidos: o músico do metrô, um anônimo por definição, deve na maioria dos casos permitir o sorriso dos passantes, ou conduzi-los em sua evolução. Parece funcionar assim: há um encantamento, que causa certo estranhamento no passageiro. Seus olhos já buscam perifericamente o músico, mas é o artista quem afirma e diz: “Sim, é para você, isto aqui”. Esse estado de certeza vai florescendo num sorriso quase aliviado. Os passageiros tímidos folgam em saber que, sim, estamos trabalhando por eles.
Todo trabalho é um gesto de amor.
Breve nota sobre os dólares: Como tudo o que recebemos são moedas (salvo raras e felizes exceções em notas de 5 e 10), minhas relações econômicas com a cidade têm inspirado risos e choros quando, por exemplo, recorro ao meu saco de moedas de 1, 5 e 25 centavos para pagar um almoço de 15 dólares. Não há meio mais concreto de compreender o valor do dinheiro (e de conversar com as antigas civilizações e suas economias de troca)!
Aos poucos fui percebendo que, para meus colegas “músicos universitários” canadenses, tocar no metrô era um sinônimo de fracasso. Um deles passou pela estação Jean-Talon enquanto tocávamos e fez que não nos viu. Meu professor de contraponto, quando contei para ele de minha novidade profissional, respondeu: “Oh, shit…”.
Compreensível, ora pois. Uma das conversas mais marcantes que tive nessa epopeia toda foi com o velho tocador de guitarra-slide da estação Guy-Concordia (slide é aquela guitarra que você toca com um tubinho de vidro e que faz tudo parecer um episódio do Bob-Esponja): Dizia-me que havia aposentado sua guitarra de verdade, que tocava no metrô para vingar-se do que a música lhe havia causado em sua vida. “Eu tinha os melhores jazzistas de Montreal… Agora… eu só quero tocar minha slide”. Foi esse velho também que nos introduziu, a Valentin e a mim, na sabedoria dos “papeizinhos do metrô” (o bilhetinho aonde, a cada manhã, marcam-se os nomes dos músicos que ali vão tocar durante o dia), ensinando-nos que para cada estação havia, não um, mas diversos bilhetinhos escondidos em lugares estratégicos… “This is a jungle! You never know…”.
Acho que o fracasso também tem algo dessa importância extrema versada às coisas insignificantes, como pedacinhos de papel.
Frequentemente, aliás, tocávamos em seguida de algum músico que cheirava mal. Provável que o fracasso tenha um cheiro parecido.
Concluo, então, que não estavam enganados meus colegas. Estávamos, sim, dedicando-nos a uma atividade fracassada. A diferença é que isso causava repulsa neles, e eu estava atraído por aquilo! Mas porque é que aquilo estava me atraindo imensamente mais do que tocar, por exemplo, num clube, ou teatro, ou nos recitais da universidade?
Aqui, especulo. Confesso crer que nós, artistas não sabemos mais do que é que as pessoas precisam. A arte perdeu esse papel de complementar, ou mesmo expor as necessidades humanas, os buracos da alma. Não mais cientes nem mesmo de que isso já tenha sido incumbência da arte um dia, cegos àquilo que nos despertou para esse universo e à deriva num oceano de intenções pessoais, acabamos rumando àquilo que parece ser o farol da nossa juventude: a universidade.
O problema é que esse raio de metáfora não acaba aqui. A universidade, sim, alumia os afogados, e mostra o caminho pra sua firme terra. Só que chegando lá, no farol, o que é que se tem senão um facho de luz que gira sem parar, num oceano de “novas possibilidades”? O estado comum do estudante de arte que encontrou oásis na universidade é esse constante girar os olhos sobre a “diversidade”.
Quanto mais do alto, melhor.
Quando decidi salvar minha pele por aqui, portanto, tocando num nicho profissional fracassado, o que as pessoas da universidade entendiam de verdade é que eu estava me atirando no mar sem pranchinha nem boia, nem Leonardo di Caprio. Era aproximadamente isso o que eles estavam ouvindo quando eu dizia que estava tocando no metrô: “Estou me lançando ao mar”.
Lembremos que eu disse que, tocando no metrô, ganho dólares e sorrisos. Claro, são sorrisos de passagem, um pouco apressados. Mas acho a pressa, mesmo até a falta de atenção, menos graves que a complacência. Confesso, e o faço na ânsia de saber se falo apenas em meu nome ou no de mais alguém, que meu estado de atenção quando admiro algo explicitamente sabido como “obra de arte” é quase insultuoso àquele que apresenta seu objeto, e mesmo digno de que eu me envergonhe. Quantas vezes não me flagrei a mim mesmo na Sala São Paulo, durante uma sinfonia qualquer, a especular sobre as horas de ensaio que cada um daqueles músicos deve ter dedicado em casa antes da apresentação, ou como o forro retrátil da sala estava influenciando ou não na reverberação daquela música, ou mesmo se alguém estava realmente gostando muito daquilo tudo… E tudo isso ENQUANTO a música se acontecia!
Se não me engano quanto a minha generalização, se não estou sozinho nesse completo estado de debilidade mental para a apreciação artística, é possível que eu esteja falando daquilo que me cativa no subterrâneo. Quase tudo a que se chama explicitamente de “cultura” hoje em dia é de natureza anedótica, ou seja, é o que está acontecendo à margem dos reais acontecimentos culturais, que por sua vez emanam muito mais irrefletidamente do que querem crer os universitários. Não seria “cultura”, dessa forma, apenas a música que toca num churrasco em Barão Geraldo, mas o próprio churrasco em si, a rotina de se embriagar, de se ligar para ex-namorado no ápice da ebriedade, de se assumir que se gosta pra caralho de um desconhecido… A música, a dança compõem traços dessa cultura. Não faria sentido ouvir, portanto, qualquer tipo de música isoladamente, sem, por exemplo, uma lata de Brahma, ou num dia de chuva.
Daí o absurdo de se isolarem certos fenômenos culturais, pra colocá-los em cima de um palco, como se eles pudessem, todos, manter seu interesse quando simplesmente apreciados de maneira passiva.
(Me pergunto se chegaremos ao extravagante de uma Graduação em “ligar para ex-namorado no ápice da ebriedade”, no andar da presente apologia à “diversidade cultural”. Talvez apenas uma tese de doutorado, dessas que ninguém nunca lerá: “Ápice da Ebriedade” – O Telefonema de Ocasiões Festivas como Espaço para o Imbricamento de Pulsões Culturais Intercruzadas”.)
Voltemos a Montreal.
Quando falo do meu interesse em tocar no metrô, não se trata de uma tara especifica com este espaço, mas do fato de ele ser um lugar concebido para que diversas pessoas apenas passem por ali. É uma finalidade bastante simples, sobre a qual a música exerceria um papel útil ou agradável. Enquanto isso, nas experiências regulares de apreciação artística do mundo moderno, o público me parece mais estar a serviço da inteligência do artista que qualquer outra coisa. No exercício deste meu pequeno ofício, por minha vez, sinto-me prestando um serviço aos passageiros, digamos, como uma espécie de bobo da corte.
E é aí, fazendo uma coisa pequena, como acordar os olhares de alguns passageiros, geralmente vagando dentro da própria alma (espero não ofender os céticos, mas isso não foi uma figura de linguagem), que percebo estar mais dentro da realidade como artista. Estar na realidade tem algo de estar em alto mar… neste caso, um mar de gente.
Esse resgate do olhar dos indivíduos, eu chamaria a isso um presente que o artista deve dar, nos dois sentidos desta palavra: Estou doando algo, e este algo é um pontapé na memória dos passantes. Também eles, passageiros, me dão um presente, fazendo cumprir-se a missão de cabeçalho do meu currículo: com o sorriso e as moedas deles, me sinto parte do organismo da cidade.
Nota sobre o “pontapé na memória”: A essa memória viciada, que encortina as experiências humanas no presente e que vejo, tão frequentemente, nos metrôs e bibliotecas da vida, manifesta fisicamente num olhar de pupilas foscas, a essa memória todo mundo parecia chamar é de “diabo”, até alguns anos atrás, sem mais problemas. Hoje em dia só gente muito corajosa ainda é assim tão clara com as palavras.
Hoje em dia, querer ser claro com as palavras é sinal de inocência.