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Vera Albers e seus Transcontos

Ambiciosa
Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O voo dum gesto para os alcançar …

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar…
– Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem! – Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada…
Um homem! – quando eu sonho o amor de um Deus!…
(Florbela Espanca)

A nostalgia de um amor pleno além do humano, em epígrafe, ousadamente expressa por uma mulher como Florbela Espanca (1894-1930), é retomada em outro código poético por Vera Albers em Transcontos, isto é, contos para além dos contos. O título abre o horizonte de expectativas que aguarda o leitor: o gênero conto é recusado e anuncia uma marca de pós-modernidade, a dos contos ínfimos, mises-en-abîme. E Vera Albers? Uma nova Helena Ferrante? Observe-se que, apesar da não identificação da escritora brasileira, já em 1977, ela tem seu primeiro conto publicado na revista Escrita, conforme Manuel da Costa Pinto testemunha no livro Literatura brasileira hoje[2]. E também já em 2001 me chegou às mãos para resenhar seu livro Surtos urbanos[3].

Vera Albers abre em Transcontos reflexões para o eterno tema do amor, o amor feminino, tão peculiar, tão imenso, tão irrealizado, tão premente, aconteça ele num mundo rústico, rico, erudito ou culto, um amor de tão difícil traquejo com o elemento masculino, este marcado pelo sexo cru. Não há interlocutores. A narradora simplesmente vai traduzindo seus próprios pensamentos e suas reações, frente ao que observa à sua volta ou dentro dela mesma. Muitos dos transcontos beiram a estrutura do sonho, como “Raízes”, por exemplo:

A velha Gertrudes, curva sobre seus anos, passeia entre gatos e margaridas.

– Sol de junho é gripe na certa, dona Gertrudes, seu Macraio, bom dia.

O preposto ficou de me apanhar no aeroporto. Eu desceria e faria as compras para a festa: beringela, queijos e cebolas. (P. 153).

Dir-se-ia que se trata de uma narradora que se escreve, que usa a linguagem poética para se conhecer, para se dar forma, e, ao fazê-lo, põe a nu o feminino, que a habita, intensamente marcado pelo atrito com o gênero homem. Transcontos gira em torno do sexo, da perspectiva feminina. Os limites frustrantes, impostos a essa busca de amor pleno, além do sexo, são desenhados a cada transconto numa linguagem “colcha de retalhos”, obedecendo a outras normas, que dão voz ao que está solto e sempre em movimento, ao que é imprevisível e indomável por natureza. Um desses movimentos indóceis, desobedientes à razão ordenadora, com certeza, é o do inconsciente que se projeta em quadros absolutamente surrealistas e, por vezes, encantadoramente líricos, que, para serem trazidos à forma, exigem a chamada escrita automática, supostamente espontânea, a dar nome e existência àquilo que é interno, quer dizer, à essência do sujeito, uma escrita que funde sonho e desejo, uma escrita construída por estruturas comunicativas no limite máximo do esgarçamento. A quase loucura se exprimindo. Vera Albers aponta essa estratégia poética para o mundo das mulheres. E as desconexões aí retratadas ressoam dentro de quem as lê, despertando, através de associações livres, o inconsciente coletivo feminino. Na corrente caótica dos pensamentos ou na corrente dos pensamentos caóticos afloram temas diversos, todos, porém, permeados pela recorrência do sexo. Os flashes mentais não se conectam minimamente, espocam no nível linguístico, despoletados por estímulos visíveis e invisíveis, intimíssimos, insondáveis, e se juntam em verdadeiras colagens de pedaços de realidades concretas e abstratas, apostas ou superpostas, particularmente presentes nos contracontos “O lustre”, na página 71, ou em “Cós”, na página 78, ou ainda em “Galinhas”, na página 80:

Antes que contamine o corpo, desfaço-me: fica abolido meu relacionamento amigável com galinhas-fera. A cultura japonesa é uma cultura erótica. Para quê psicanálise? É mesmo. Análise para romper a rigidez do sintoma global, dos valores que não sejam os das ações. Já Bergman, com aquela histórica tão nórdica da incomunicabilidade… […] A comunicação é uma conquista, não um estado normal. E depois não vão ser as palavras que vão imprimir o que não se sente, e o que se sente é o que pesa na balança.

A antologia de transcontos abre com o texto “Pedro Uciste” e lá está:

[…] E aquele exemplo que o senhor colocou na pedra, Prof. Tonini: “No rio de pedra e peixe” – o senhor se lembra?

Lembro, claro. Se você soubesse como isso não tem importância nenhuma, mas nenhuma mesmo.

Não tem? Mas eu construí minha vida sobre este rio… e… e quando cheguei lá a festa já tinha começado. A festa da pescaria, dos homens de domingo, pesados, brutos, o membro aparecendo volumoso por baixo da bermuda e eu sem conseguir dar um passo, esperava pedra e encontro… […]. (P. 11).

No quarto transconto, intitulado “A tocadora de cotó”, a par da ancestral ligação do homem com a terra, a crítica à sujeição sexual da mulher é a tônica. A autora toca nos limites da mera vida feminina, na mulher destinada ao prazer do homem:

A tarde é serena, acabo de voltar do passeio das cabras acompanhando pela vereda pisada, à margem da oliveira, as marcas de estrume e as bolinhas de esterco.

[…] Amor carnal, amor carnal, o que será que o homem sente com uma puta levantina, tão submissa como um macaquinho, como um filhote que pia, que emoção, que verdade ele descobre, que vida, a não ser a sensação e o gozo da degradação? (P.18).

A frustração com os afetos rasos surge explícita em “Pesadelo”: “Só farejo duplas copulando. Ou triplas, que mundo, hein, o de hoje! Eu, com o fardo carregadinho de quimeras, retiro-me. Espero um novo ato, num novo mundo.” (P. 31).

A marca da indomabilidade do pensamento brotando à flor da mente e sendo traduzida por palavras à margem da lógica marca o início de “Inesperado”: “Ainda não está devidamente iniciada. É evidente. Dirige-se para os lados da praia do subúrbio, onde mora Pejota. (Pezota, em argentino, é ‘pañuelo para retener el sangre’. Muito bem aplicado!)” (P. 62). Uma rebeldia que também está presente, por exemplo, em “Meandros”: “Sonho cenas de circo. Estou eu ainda no elevador da Maria Antonia que se abre em meandros subterrâneos, da luz à sombra. Do alto do edifício chegam as copas das tílias […] No caminho paro para comprar peixe. […].” (P. 65).

No transconto “Verba”, uma tipologia provocadora dos homens é exposta:

Existem quatro comportamentos básicos no homem: consumação, gratificação, punição (fuga e luta) e inibição (quando o siri chia).

Existem quatro cérebros no homem: sobrevivência; alimentação e cópula; memória; associação criativa. […]. (P. 67).

E, ainda neste transconto, há uma passagem a apontar para a incompatibilidade matricial entre mulher e homem, que evoca um trecho de A barca dos sete lemes, de Alves Redol. A intertextualidade é igualmente estratégia poética de Vera Albers. Gaba-se o rústico e velho Mula Brava, na obra portuguesa, de ser um dos raros a saber tocar a música das mulheres, cada uma tem a sua. Vera Albers diz o seguinte: “Dizer o quê, meu Deus, como minha donzelice foi traída por mera incompreensão, mera indecifração de meu código […]?” (P.68). O transconto “Marina”, por exemplo, remete a Camões: “Estavas, linda Inês, posta em sossego, de teus anos colhendo doce fruito […]”, assim escreveu o poeta no Canto III de Os lusíadas. O caso de Vera Albers é outro. Diz ela: “[…] mas a lembrança dos filhos no quarto da pensão não me abandona. Não consigo ficar posta em sossego.” (P. 96). Todavia, é do amor e da falta do amor em amplos horizontes que se trata, o que ecoa ainda no poema “El hijo ausente”, de Lilia Hernández.

Não faltam trechos, onde a poesia lírica dá as caras, como por exemplo no comecinho de “Íris”: “Agapanto, íris, nomes violeta. Mas acontece que na casa velha estava a rosa, e onde a rosa está, desabrocha o instinto.” (P. 105). Poesia que se ouve em aliterações e muitas rimas internas, como no transconto “Tic toc”: “A encarregada, ruiva […] zanza ocupada e atarefada […]”. (P. 107). Ou em “Elegia final”: “Peixe, teu cheiro é sexo. Peixe, tua pele-escama escapa-me das mãos. E deixa-me uma estria brilhante como senda e como senha”. (P. 158). Poesia telúrica na abertura de “Raízes”: “Estava com Daniela em villeggiatura à beira do canal em cujas margens crescem plantas de caquis e a terra é revolvida por pás à moda antiga, e o cheiro forte e o barulho da correnteza agradam os sentidos” (p.152).

Sai-se da leitura de Trancontos, de Vera Albers, com a necessidade de uma investigação funda e ampla do significado do sexo, fonte de vida, no cosmo feminino.

 

[1] Albers, Vera. Transcontos. São Paulo, Reformatório, 2021, 158 p.

[2] Pinto, Manuel da Costa. Literatura brasileira hoje. São Paulo, Publifolha, 2004, p. 100.

[3] Ribeiro-de-Sousa, Celeste. Um novo nome nas letras brasileiras. In: Linha d’Água. Revista da Apll nº 15. São Paulo, Humanitas, julho de 2002, p. 113-114.