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Qual poema, hoje, faz sentido quando lido na rua? Fazer sentido é mais do que ter contexto ou harmonia temática. Fazer sentido é alinhar-se ao sentido da rua, provocá-la, é ter palavras capazes de interagir com o concreto dos edifícios ao redor – quando se trata de ruas com essa paisagem. Um poema faz sentido lido na rua quando é capaz de interagir com os sujeitos sociais daquele espaço e, com eles, criar outros sentidos.
Fez sentidos diversos e imensos a leitura do poema haiku, de Régis Bonvicino, no Largo do Poço da Baixa de Coimbra. A Baixa de Coimbra é como qualquer baixa das conhecidas no Brasil, com as devidas proporções resguardadas. No centro do Largo, a metáfora do projeto de civilização europeia derrotado: espécie de pequeno esgoto ao céu aberto fingido de fonte de água – que jamais pode ser ligada devido à visível insalubridade não do sistema, muito bem projetado, mas da água em si. Nos arredores, pequenos antigos comércios fadados à baixa procura pelos produtos vendidos no centro histórico superado pelos moderníssimos centros comerciais dos shoppings espalhados em pontos estratégicos da cidade. Dois bares em pontos opostos: A Camponeza, tradicional e muito requintado, comercializa vinhos e bebidas em geral de alta qualidade e promove, nos andares superiores do prédio, exposições musicais e de artes plásticas; o outro, o “bar do chinês”, chefiado pelo “Sr. Coimbra” com comércio de bebidas e comidas típicas de toda pastelaria portuguesa. A cerveja e a bagaceira custam menos e, por isso, grande parte de trabalhadores (portugueses, africanos e brasileiros) concentra-se ali, pela manhã de sábado, para o merecido descanso.
A leitura de poesia no espaço público entra nessa festa antropofágica. A convite da Associação Acadêmica de Coimbra e da Agência de Promoção da Baixa de Coimbra, a Secção de Escrita e Leitura (SESLA) topou o barato: ler poemas no Largo do Poço. Dentre os poemas lidos, haiku, de Régis Bonvicino, publicado em Deus devolve o revólver (2020), demonstrou que a fagulha dos poetas que estearam nos anos 1970 (Régis estreou em 1975, aos 19 anos) está queimando e de que a inutilidade indispensável da poesia no espaço pública ainda é braseiro de onde pode brotar fogo. Mais: demonstrou que a poesia esteticamente interessada não está (e nem deve estar) dissociada do espaço público e, sobretudo, das ruas. Haiku não é só poema-imagem das selvas de pedras típicas das cidades, demonstra, como afirma Alcir Pécora sobre todo o livro de Régis, “o cerne falido do Brasil como projeto civilizatório europeu” (PÉCORA, 2020, p. 9). Haiku constrói imagem, ritmo e tempo desse projeto nas metonímias corrosivas da pedra no cachimbo, do isqueiro na dobra, das mãos lixando o céu, do avião nos pés, da lata sem anel, do anu bicando o olho do noia, do cavalo¸ do tubo de pvc. A “porrada” entra não só como palavra-refrão formando a métrica em sete sílabas do segundo verso típico da forma do haiku. “Porrada” é a própria epistemologia brutal dos tempos. E qual a função primeira da poesia senão ser voz do homem em seu próprio tempo?
Haiku lido no Largo do Poço não foi mero acontecimento. Foi a validação de que a poesia (não qualquer poesia) tem seu lugar na rua, espaço público por excelência e frequentemente colocado em causa. E é na rua onde as vozes do poeta (daquele que escreve e de quem o lê) encontram-se com as vozes sociais dando sentido geral não só à obra de arte na contemporaneidade, mas sobretudo reafirmando a sua função de objeto inútil (sem valor comercial) e, por isso, indispensável. Haiku fez sentido porque reafirmou, no corpo do próprio poema dado voz por Daniel Cruz, o impacto possível do poema quando alcança o zietgeist.
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A leitura de Haiku e a apresentação rápida de Deus devolve o revólver (talvez mais pela própria musicalidade e provocação contida no título do que pelas informações a respeito do objeto em si) fez ainda mais sentido porque não foi passiva. Isto é, ao sair à público também o provocou a se manifestar. Maria, uma personagem típica e frequentadora assídua do bar do chinês no Largo do Poço, tomou nas mãos o livro e passou a observá-lo. Encontrou um poema e pediu licença para lê-lo. Deu, antes, algumas informações sobre o motivo de sua escolha: era compacto e, por isso, causou-lhe grande impacto. O vídeo abaixo registra esse momento. Depois, passa a recitar Lápide: Os soluços longos dos violinos de outono/ aqui Rimbaud / aquele otário / te enrabou por uns trocados. Poema sugestivo, sonoro, meio sacana no sentido, foi incorporado por Maria como se ela o conhecesse há séculos. Talvez o conhecesse. Talvez conhecesse Rimbaud, ou os soluços longos dos violinos de outono, talvez conhecesse alguns otários, ou outros enrabados por trocados. Talvez não conhecesse nada disso. Um poema, quando lido, é suficiente para dar a conhecer qualquer coisa. Maria incorporou o poema e, com isso, acendeu a lamparina quase escassa da inútil função da poesia: a de ser a porrada certeira e dissonante a desafinar o coro dos contentes. E na leitura de Maria provocada pela belíssima leitura de Daniel Cruz, outra lamparina ilumina o caminho: aquela que nos permite ver, na poesia de Régis, um projeto que reforça a função primordial do poeta: a de ser a voz a enfrentar, inclusive esteticamente, o seu tempo.