Emilio Villa dormia no chão, embrulhado em folhas de jornal. Traduzia do assírio. Costumava pentear-se, no meio de um jantar, com um pentinho azul. Cuspia no minestrone antes de tomá-lo. Era amado por condessas. Cozinhava tripas. Sobrevivia vendendo um Consagra ou um trecho retraduzido do Qohelet. Fundava números zero. E, pelo muito que fez, escorregou dentro do “quente rumor dos tempos vazios”.
Sua aventura foi vertiginosa, por sua cheia de palavras, signos, olhar, sistematicamente esvaziados até o silêncio da doença, e ao nada dos adeuses, e à (evitada) destruição de seus papéis. Ele, Emilio Villa, que também caminhou dentro do segundo Novecentos italiano, poeta de hermética pureza, ensaísta de erudição surpreendente, caçador de artistas, profeta de todas as vanguardas, entre os ateliês de Brera, em Milão e os sótãos de Piazza Del Popolo, em Roma, amigo de Duchamp, Breton, Matta, e exegeta de Alberto Burri, Lucio Fontana, Piero Manzoni, tradutor da Bíblia e da Odisseia, viajante sem dinheiro, noturno, excessivo, apaixonado por mulheres apaixonadas, viveu entre milhares de folhetos, e se apagou.
Sua fama teve muitas redundâncias, mas sempre em memórias aleatórias, em papéis desaparecidos de artistas, em testemunhos ocasionais, em lembranças quase de todo apagadas. Nunca um relato sistemático, a não ser alguma página que lhe dedicou Giampiero Mughini. Nunca a trama riquíssima de sua passagem por aqui.
Agora, Aldo Tagliaferri, que foi seu amigo e aluno por quarenta anos, se encarregou disso, com O clandestino (Vida e obras de Emilio Villa, Ed. Derive e Approdi, 207 p.). Trata-se de uma biografia cuidadosa e até demasiado linear, a começar pelo espelho do título, uma vez que Villa foi realmente um clandestino por sua índole, estilo, caráter, e contando-nos o fio e os nós da vida dele, mas sem terminar devolvendo-nos a aventurosa meada que ela foi.
A aventura começa em 1914: neblina de Affori, terrenos cheios de gravetos da periferia milanesa, pai em eclipse definitivo, mãe zeladora, infância solitária e poética desde a profecia pelo avesso do mestre-escola: “Jamais serás capaz de colocar em pé uma frase”.
Villa frequenta durante uns dois anos o liceu Parini; depois, o seminário. Fala correntemente o milanês e o latim. Fala francês, alemão e inglês. Estuda o grego antigo, o hebraico, o fenício, o caldeu, acompanha cursos de assiriologia no Pontifício Instituto Bíblico. Admira D’ Annunzio, com “toda sua carga de glória e de tristeza”. Lê Nietzsche, mas cai dentro da troante depressão de Cioran, com sua “desgraça de ter nascido”. Estuda Leonardo e anota a mais bela de suas lições, aquela que diz: “Cada coisa, na natureza, faz-se por sua linha mais breve”. Mas, naturalmente, ele desiste de encontrá-la e viaja ao contrário.
A guerra desaba sobre ele. Ele deserta, acaba em um campo de prisioneiros na Holanda, passa fome, volta para a Itália à força, foge, torna-se (literalmente) clandestino em Milão, onde “passa a ter um estilo de vida que combina com ele: aparece, desaparece, reaparece de repente, depois de ausências, mesmo longas, e borra sempre suas pegadas”.
Em Milão encontra Lucio Fontana. Coloca-o nos vértices de sua ideia de arte, com Rothko e Pollock, o cheio e o vazio da vida que o atraem e o consomem. Viaja para o Brasil, onde vive vendendo telas e desenhos de Perilli, Turcato, Dorazio. Volta para a Itália e descobre Mimmo Rotella, escreve sobre Nuvolo, Cagli, Capogrossi. Desintegra o realismo socialista. Quando se muda para Roma, vê os sacos de Burri e os ilumina com sua tinta: “Nós entendíamos os sacos e os mofos como aparições de uma estratificação do mundo aflorado, ou como se diria ‘consciente’ (…). Eram os materiais mais próximos e análogos à susceptibilidade e à incerteza do deserto mundano, do absurdo total e da incoerência da história: os materiais surpreendidos na crise do pesar pelo que foi perdido”.
Mora em casas precárias, sótãos, ateliês emprestados, e às vezes dorme até em bancos de jardim. Ocupa-se com tudo, desde o teatro hebraico até a pop art, ao grego antigo, à poesia dos Novíssimos, de Nanni Balestrini e outros. Quando Roberto Bazlen, consultor da Einaudi, o encontra em via Margutta, em Roma, em 1954, fica fascinado por sua erudição excêntrica e extemporânea. Lê os trechos que Villa está traduzindo da Bíblia. Oferece-lhe o primeiro (e único) contrato para que continue a tradução e com isso ele consegue sobreviver nos perigosos anos 1950.
Conforme testemunhos, ele é “incrivelmente culto, desordenado e sujo”. É baixo, atarracado, mas tem uma voz que encanta. Tem os bolsos cheios de poemas, trechos traduzidos, anotações, iluminações. Os papéis acabam dentro de caixas e malas. As malas viajam de casa em casa.
Depois da Bíblia, traduz a Odisseia para a editora Guanda. Descobre os Finnegans Wake de Joyce e esquece Carlo Emilio Gadda. Nas margens de suas desordenadas trajetórias nasce toda a nova arte italiana que reúne metafísica e realismo, reinventa a pop art, secunda o abstrato e aprofunda o conceitual. Villa é profeta e comparsa de quase toda inauguração que signifique alguma coisa. Escreve apresentações, catálogos, admira Mario Schifano, Lo Savio, Fabio Mauri. Entre os jovens prefere Piero Manzoni, “jovem descendente de Duchamp”, com seus tufos de algodão, sua merda de artista em lata, seus brancos poéticos. Manzoni, num dia de abril de 1961, o define “obra de arte vivente”.
Villa agradece em milanês: “Brau, temepiaset” [Porreta, gosto de você].
Nanni Balestrini, diretor da editora Feltrinelli, na época, o admira como poeta (“grande o suficiente para ser posto ao lado de Montale”) e publica seu Attributi dell’arte odierna 1947/1967,que permanecerá como sua única coletânea não clandestina de escritos, mesmo se hoje completamente esgotada.
Apagando-se e dispersando-se, Villa acresce o deslumbramento dos outros e sua própria solidão. “Homem êxul – escreve Tagliaferri – de um mundo mau do qual nunca se deve participar”. Homem sem nenhum respeito nem interesse pelas coisas que abandona, tão logo o atravancam, como um armário com as portas pintadas por Nuvolo, como uma Prinz que nunca usou, como a escultura de Lo Savio, como uma caixa inteira de manuscritos. “Até a Pietà de Michelangelo, quando foi martelada, deixou-o indiferente.”
Sua vitalidade (comida, escritura, encantação pelo teatro de Carmelo Bene) leva-o para um horizonte completamente preto. Não existe saber transmissível. Não há palavras que expliquem. Não há solução para o enigma. Não há saída do labirinto. Escreve: “Olhava, escrutava a orelha de minha mãe, a de meu irmão, e era sempre a mesma coisa: via o labirinto, o canal que levava a um ponto escuro, no fundo deve haver o abismo, um abismo grande como o poço de campanha, como certos barrancos do sonho (…). Aquela era, quem sabe, a primeira ideia do labirinto da qual o homem é, ao mesmo tempo, arquiteto e prisioneiro, idealizador e vítima”.
Depois veio o derrame que lhe tirou para sempre a palavra, em 1986, e a paralisia que lhe tirou a escritura, já abandonada em seu último rascunho que presenteou a um amigo: “Dissociei-me duramente da poesia, por isso, perdoa-me e nada mais me peças”.
O nada o acompanhou por mais dezessete anos, até o último nada do funeral, em janeiro de 2003, no cemitério toscano de Sant’Angelo, onde só havia três amigos presentes. Gianfranco Baruchello, há um ano, vem juntando tudo o que o vento da vida de Villa dispersou.
Emilio Villa, está, agora, no alto de uma estante, dentro de caixas de sapatos, caixas de madeira de vinhos, organizadores de papelão: envelopes, cartas, poemas, ensaios, rascunhos, traduções, o projeto de um dicionário mitológico, textos em inglês, grego, espanhol, latim. E se encontra também nesse livro de Tagliaferri. Conforme escreveu profeticamente Villa, muito antes de todos os silêncios que adotou: “Com a ajuda de vocês conto fazer algum bem. Prestem atenção em tudo. É preciso abrir, abrir”. E ir-se embora, depois.