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Vinte e dois anos de silêncio do Patoá do poeta macaense Adé

Há vinte e dois anos, em 24 de março de 1993, falecia em Macau (ex-território português na China) o poeta macaense José dos Santos Ferreira, mais conhecido por Adé. Mestre do Patoá da era moderna, o dialeto de Macau da gente macaense de língua portuguesa.

Para recordar o Adé, leia o histórico da sua vida publicada na Revista Macau, e ouça o poema “Bote Dragám” (Barcos-Dragão) por ele recitado e acompanhe com os versos em patoá e a tradução em português ao lado.

Quando José (Adé) dos Santos Ferreira morreu, em 1993, quase se generalizou a ideia de que, com ele, tinha desaparecido de vez o patoá. Mas não: a sua morte como que sacudiu a letargia em que se encontrava a comunidade de filhos da terra.  E o esforço do Adé – a dedicação de uma vida afinal – não terá sido em vão.

José Inocêncio dos Santos Ferreira nasceu a 28 de julho de 1919 – o último de dezoito filhos de Florentina Maria, viúva e casada, em segundas núpcias, com Francisco dos Santos Ferreira, um beirão de Seia (pai de Adé).

Órfão de pai aos cinco anos, o pequeno Adé conhece uma infância difícil. Depois de aprender as primeiras letras, aos sete anos, com uma velha mestra macaense, frequenta a escola primária num casarão na Calçada do Gamboa e recebe duas refeições diárias da solidariedade social.

Em 1931 matricula-se no Liceu, mas as dificuldades financeiras fazem-no abandonar os estudos ao quinto ano. Aos dezessete anos de idade, consegue o seu primeiro emprego, de amanuense nas Obras Públicas, com o salário mensal de trinta patacas.

Depois de ter cumprido o serviço militar (1939-40), volta a ser mobilizado, quando estala a Guerra do Pacífico, e cumpre mais seis meses de tropa.

Em 1956, “regressa” ao Liceu, agora como chefe da secretaria, e faz uma autêntica “cruzada” em defesa dos estudantes de menos posses, conseguindo para muitos deles isenção de propinas (a que ele próprio nunca tinha tido direito, enquanto estudante) e outros benefícios da assistência social.

As preocupações humanitárias e sociais marcariam, depois, a sua passagem pela STDM (Sociedade de Turismo e Diversões de Macau), o seu emprego de sempre depois que se reformou da função pública, em 1964, tendo levado a empresa dirigida por Staniey Ho a instituir bolsas para estudantes.

Remontavam já aos tempos em que era chefe de secretaria do Liceu as suas colaborações nos jornais de Macau; primeiro, dispersas, e, com o correr do tempo, cada vez mais intensas. Integrou a redação do Notícias de Macau e foi chefe de redação de O Clarim, semanário católico, e dos diários Comunidade e Gazeta Macaense. Foi ainda correspondente de vários periódicos da república (Diário de Notícias, Diário do Norte, Diário Popular, Volante); do China Mail de Hong Kong e da agência norte-americana Associated Press.

No plano desportivo, Adé foi praticante de várias modalidades. Do futebol ao atletismo, passando pelo tênis, Santos Ferreira notabilizou-se particularmente no hóquei em campo, tendo integrado, ao longo de doze anos, a seleção de Macau desta modalidade, bem do agrado da comunidade macaense.

José dos Santos Ferreira foi também a “alma” de uma miríade de atividades desportistas, culturais e recreativas, e esteve à frente, ou na fundação, de diversas associações desportivas de Macau; tudo isto paralelamente à sua profícua produção literária, sobretudo em dialeto macaísta. Além disso, foi, na sua geração, o grande animador das noites de teatro e récitas macaístas do D. Pedro V, como se dá conta noutro artigo desta edição.

Nos anos 80, a TDM (rádio e TV) produziu uma série de programas sobre o patoá e Adé dos Santos Ferreira foi, naturalmente, a sua voz e imagem.

Perfeccionista e obstinado, simples e autêntico, coerente e generoso — adjetivos tirados ao acaso de depoimentos —, Adé mal conseguiu disfarçar a sua amargura com o destino que, em meados da década de 80, se desenhou para a sua terra.

José dos Santos Ferreira deixou o mundo dos vivos a 24 de março do ano da graça de 1993, vítima de um enfisema pulmonar, após prolongado internamento numa clínica de Hong Kong. Ainda não tinha completado 74 anos de idade*.

OUÇA O POEMA “BOTE-DRAGÁM” (BARCOS-DRAGÃO) RECITADO POR ADÉ

extraído do CD – Doci Papiá di Macau (Poetas de Macau) da TRADISOM em coedição com o Instituto Cultural de Macau:

Audio Player in: http://cronicasmacaenses.com/category/macaenses/patoa/poema-bote-dragam-audio/

ACOMPANHE ABAIXO COM OS VERSOS DO POEMA EM PATOÁ E EM PORTUGUÊS

(Do livro Macau di Tempo Antigo, editado pela Fundação Macau em 1996 – obs.: os versos não seguem rigorosamente os recitados pelo Adé)

BOTE DRAGAM                                           BARCO DRAGÃO

Plum plum! Plum plum!                                Plum plum! Plum plum!
Braço ergui, braço bassá,                             Braços ao alto, braços a cair,
Pau grôsso na mám di nhum,                        Paus grossos nas mãos do homem
Dále qui dále, co fôrça zinguá                       Batem que batem, arreiam com força,
Batê tambôr, cachapum,                               O tambor rufa, cachapum,
Fazê plum plum! Plum plum!                        Fazendo plum plum! Plum plum!

Plum plum! Sôm qui assanhado,                   Plum plum! Som enfurecido
Na tudo vánda gente uví,                               Que se ouve de todos os lados,
Corê téfí-téfi, alvoraçado,                              Gente assustadiça corre alvoroçada,
Querê sabe quim tá guní,                               Quer saber quem está a gemer,
Seléa batê-póme, batê-pum,                          Esse bate-pau, bate-pum
Vêm di únde assi zurum.                                De onde vem tão sinistro.

Cutido pa acunga dôs pau,                            Batido por aqueles dois paus
Pegado duro-duro na mám,                          Bem seguros nas duas mãos
Nhu-nhum têm cara di mau,                         Por homem com cara de mau,
Tambôr tá fêto chim-chám,                           O tambor está a ser maltratado,
Nom-têm fim di gemê,                                               Não para de gemer,
Ramendá tá vai morê.                                                Parecendo que vai morrer.

Sorte qui sã di-dia…                                      Tudo se passou de dia, ainda bem…
Si sã anôte iscuro di treva,                             Fosse em noite escura, nas trevas,
Gente susto, lô sandê candia,                        Essa gente aterrorizada acenderia velas,
Pensá montánha tá reva,                               Pensando tratar-se de colina zangada,
Su coraçám batê irado,                                 Com o coração a bater enraivecido,
Fazê nôsso pulá juntado.                               E a fazer estremecer também o nosso.

Cacho-cacho di gente barbéro-bafado,         Os mais impacientes, aos cachos,
Trepá morália di Prai Grándi,                      Treparam a muralha da Praia Grande,
Riva unga di ôtro, cachipiado,                      Acomodados em cima uns dos outros,
Ôlo abrido grándi-grándi,                             E de olhos bem arregalados,
Tudo querê sabe quim tá gême,                     Procurando saber quem gemia,
Cuza, afinal, tá sucedê.                                  O que estava, afinal, a acontecer.

Sol fazê mar ficá quimado,                             Com a água do mar queimada pelo sol,
Pêsse fuzí espavorido.                                    Viam-se fugir espavoridos os peixes.
Na meo di ónda parado,                                Por entre ondas aquietadas,
Unga chonto di bóte chipido,                        Uma porção de barcos estreitos,
Di laia-laia côr brejéro,                                 De variadas cores garridas,
Ta corê quelê ligéro.                                    Deslizava em ligeira correria.

Sã bote istrêto, cumprido,                              Eram barcos esguios, compridos,
Fêto co tábu fino, arcuado,                           Feitos de madeira delgada, arqueada,
Cadunga têm, na diánte capido                     Cada um levava espetada na proa
Unga cabéça di dragam aloirado,                 Uma cabeça aloirada de dragão,
Na vánda di trazéra                                       E cravado na popa,
Unga rabo dí dragám co bandéra.                Rabo de dragão com bandeirinha.

Ah! Tudo tá grita                                           Ah! Exclamam agora todos.
Sã bote dragám! Sã bote dragám!                 São barcos-dragão! São barcos-dragão!
Ôlo lustro, bóca ispumá,                               Olhos luzidios, boca a espumar,
Rabo bulí fêto coscorám,                               Com o rabo enrascado a agitar,
Dragám uví tambor di “cusau”,                   O dragão, ao som do tambor “cusau”,
Ligéro corê na mar di Macau.                       Corre veloz sobre o mar de Macau.

Cadunga dragám fêto bote                            Cada dragão feito bote
Têm 25 nhu-nhum sentado:                            Leva 25 tripulantes sentados:
Vinte-quatro hóme fórti                                 Vinte e quatro homens fortes
Remá bote dizenfreado,                                  Remam arrebatados o barco,
Unga, na vánda di cabéça,                            Enquanto um, instalado na proa,
Tambôr, péssa qui péssa.                              Tamboreia apressadamente.

Plum plum, compassado,                              Com esse plum-plum compassado,
“Cusau” assanhá dragám.                           O “cusau” espicaça o dragão.
Tudo remo bassá juntado,                             Os remos baixam todos …uma,
Cortá mar co safanám,                                  Cortam o mar aos safanões
Remá águ vai trás, unga istánte,                   E, puxando a água com presteza,
Fazê bote dislizá, vai diánte.                          Fazem avançar os barcos.

Brinco di bote dragám di agora,                   As regatas de barcos-dragão de agora
Sã pá lembrá poeta Chi lan                           Servem para recordar o poeta Chi lan,
Qui China têm otróra,                                   Que vivia outrora na China,
Na tempo di tánto gente ladrám.                   Nos tempos de muita gente corrupta.
Poeta consumido, tontôm, montôm,             O poeta, desgostoso, atabalhoado,
Pulá na mar, matá pá onçôm.                       Sacrificou a vida, atirando-se ao mar.

Aia, si nôs agora fazê igual,                           Pois é. Se o mesmo fizéssemos agora,
Co tánto ladroíce na diánte,                           Com tanta ladroeira à vista,
Qui di gente nádi pará mal,                           Quantas pessoas não acabariam mal,
Pulá na mar vazánte!                                     Lançando-se ao mar chato.
Mar inchido sã logo ficá,                               O mar acabaria por se encher,
Mâz ladroice nádi pará.                                Sem que a ladroeira terminasse.

Dez bote na águ liching,                                Sobre as águas lisas, dez barcos
Ta corê pá sacudi saván;                               Correm para expulsar os maus ares,
Vai fazendo grándi chinfrim,             Fazendo grandes algazarras,
Na cumpridám di nôsso Nam Ván,               Ao longo do nosso Nam Van,
Pa olá qualunga más pimpám,                      A ver qual deles é mais valente,
Ganhá prémio, sai campiám.                        E ganha o prêmio, apurando-se campeão.

Basso di sol qui iscaldá,                                Baixo de sol escaldante,
Barquéro na bote pussá bafado.                    Os remadores estão exaustos.
Na morália, gente goelá,                               Na muralha a gentinha grita
Batê palma dizesperado                                E aplaude ruidosamente,
Fazê dragám ficá dôdo                                  Enquanto o dragão, como que endoidecido,
Sai pê, tocá fundo na lôdo.                             Estende os pés e pisa o lodo no fundo.

Tambôr perdê bafo,                                       O tambor cai em silêncio,
Sã corida já acabá.                                        Que é quando a corrida acaba.
Na baraca, “taipan” bêm di safo,                 No barracão, os graúdos pachorrentamente
Decê vai basso pá gente olá                          Descem para serem vistos
Chuchú bandéra di campiám,                       A espetar a bandeira de campeão
Na lombo di bote dragám.                             No lombo do barco-dragão.

José dos Santos Ferreira

José Inocêncio dos Santos Ferreira (Macau, 28 de julho de 1919 – Hong Kong, 24 de março de 1993), mais conhecido por Adé, foi um poeta de Macau e grande defensor do patuá macaense, língua crioula da região.

Nasceu em 28 de julho de 1919 e viveu em Macau durante grande parte da vida. Seu pai, Francisco dos Santos Ferreira, era um português oriundo de Portugal e sua mãe, Florentina Maria dos Passos, era macaense.

Além de poeta e defensor do patuá, José dos Santos Ferreira foi funcionário público, tendo desempenhado nessa qualidade as funções de chefe da secretaria do Liceu Nacional Infante D. Henrique. Depois de aposentado, foi secretário-geral da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) e professor de português a alunos chineses. Foi também um colaborador assíduo do China Mail de Hong Kong, da agência de notícias norte-americana Associated Press e ainda de muitos jornais portugueses editados em Macau, como o semanário O Clarim.

Grande amante do desporto, foi também fundador e dirigente de várias associações, organismos e clubes desportivos de Macau, como a Associação de Futebol de Macau, o Hóquei Clube de Macau e o Conselho Provincial de Educação Física, a que presidiu. Na qualidade de dirigente desportivo, organizou e dirigiu vários campeonatos e torneios de diferentes modalidades.

Além do desporto, dedicou-se também ao associativismo e à filantropia, sendo presidente do Rotary Club e membro da Mesa Diretora da Santa Casa da Misericórdia e da Direção do Clube de Macau.

Em grande parte da sua vida, Adé dedicou-se à divulgação do patuá macaense, sendo o último poeta popular macaense que deixou vasta obra, composta de poemas, récitas, peças de teatro, livros, programas radiofônicos e operetas em patuá macaense. Foi também o fundador da Tuna Macaense.

Em 1979, ele foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem do Infante D. Henrique. O governador de Macau atribuiu-lhe, em 1984, a Medalha de Mérito Cultural. O governo de Macau prestou-lhe também homenagem ao mandar erguer uma estátua no Jardim das Artes.

Morreu em Hong Kong, no dia 24 de março de 1993, aos 73 anos de idade, deixando sua mulher, Alba Bárbara Boyol (casados desde 1943), e os filhos, Rita Boyol dos Santos Ferreira e José Boyol dos Santos Ferreira.

Obras: Escandinávia, Região de Encantos Mil (1960); Macau sa Assi (em patuá, 1968); Qui Nova, Chencho (em patuá, 1974); Papiá Cristâm di Macau: Epitome de gramática comparada e vocabulário: dialecto macaense (1978); Bilhar e caridade (poesia, 1982); Camões, Grándi na Naçám (em patuá, 1982); Poéma di Macau (poesia, em patuá, 1983); Macau di tempo antigo: Poesia e prosa: dialecto macaense (Macau: Edição do autor, 1985); Nhum Vêlo (em patuá, 1986); Poéma na língu maquista (Poesia em papel-de-arroz; Macau: Livros do Oriente, 1992).

*Revista Macau, edição de maio de 1994, II Série, n. 25