Causou-me espanto o anúncio, feito numa entrevista com o autor, de que Sergio Miceli publicaria um livro “desbravando” o território Borges/política, aparentemente (e digo “aparentemente” porque não dá para confiar 100% em entrevista sobre um livro) em ignorância de cinquenta anos de tradição argentina que o fizeram. Causou-me mais espanto ainda ler o livro e perceber que quase nada dessa bibliografia é sequer mencionada em Vanguardas em retrocesso e que o livro, com efeito, pressupõe ignorância dela. Meu espanto triplicou quando li o prólogo, em que Miceli, por várias páginas, descreve um calvário (estando nos EUA!) para encontrar textos mui conhecidos, ao longo do qual conseguiu não encontrar materiais como algum dos muitos artigos compilados em Antiborges (editado por Lafforgue) com toda a história da esquerda (das várias) com Borges ou os escritos capitais que assinaram Piglia ou Pauls sobre Borges, tão obviamente relevantes para (e antecipadores de, e mais refinados que) os “descobrimentos” que faz Miceli como um detetive bandeirante do já sabido. Como diria Macedonio Fernández, no livro de Miceli falta tanta coisa que, se faltassem mais duas ou três, não haveria espaço.
Essa arrogância com que um acadêmico brasileiro (talvez aqui seja mais exato dizer “das ciências sociais”) pressupõe a si mesmo como iluminador pioneiro de uma tradição intelectual forânea, ainda não bem digerida por ele, e infinitamente mais rica do que ele imagina, descreve a sensação que poderíamos caracterizar como “vergonha alheia acadêmica”. E eis que agora leio um texto espetacular de Ronald Augusto, que levanta outros 72 problemas com o livro de Miceli, num diagnóstico implacável com o qual eu coincido totalmente.
Idelber Avelar Guarani Kaiowá