A escravatura – escrevia o Correio Brasiliense em Londres – é um mal para o indivíduo que a sofre e para o Estado onde ela se admite, lemos no O Brasil e a Inglaterra ou o tráfico dos africanos. No intuito de esboroar, derruir a montanha negra da escravidão no Brasil, ergueram-se em toda a parte apóstolos decididos, patriotas sinceros que pregam o avançamento da luz redentora, isto é, a abolição completa. O Ceará, que foi o berço da literatura que deu Alencar, quis também ser a cabeça libertadora da raça escrava deste país e, a golpes de direito e a vergastadas de clarões, conseguiu este Aleluia supremo: Não há mais escravo no Ceará! Não obstante o desenvolvimento gradual, acessivo da grande ideia da democracia sociocrática que prepara os homens, fá-los cidadãos para o trabalho moderno, educado por uma filosofia mais spenceriana, mais na razão do século evolucionador, aparece a lei do sr. Saraiva, desmentindo todo o brio patriótico, toda a dignidade cívica da nação do sr. Pedro Segundo. Uma lei de fancaria, essa; uma lei que escraviza os escravos e documenta, com a morte, a liberdade dos mais velhos. Uma lei que faria rir o próprio Voltaire, numa daquelas suas explosões tremendas de ironia fantástica e diabólica. Entretanto, para organizar, por assim dizer, mais exata e mais verdadeira a ideia abolicionista nesta terra de Oliveira Paiva, O Moleque, que sempre alargou todos os seus sentimentos altruístas pela causa da humanidade servil, que é a causa do futuro, começa a publicar hoje alguns fragmentos de uma brilhante conferência abolicionista do seu pujantíssimo redator, sobre esse assunto, feita na sala da redação da Gazeta da Tarde da Bahia. Concluída que seja esta, publicará um discurso do mesmo, pronunciado no Teatro S. João, por ocasião da libertação total do luminoso Ceará, e assim, sucessivamente, O Moleque prestará o seu humanitário auxílio para movimentar, de certa forma mais inteira, mais entusiasta, a abolição entre nós: “Estamos em face de um acontecimento estupendo, cidadãos: A abolição da escravatura no Brasil. Neste momento, do alto desta tribuna, onde se tem derramado, em ondas de inspiração, o verbo vigoroso e másculo de diversos outros oradores, eu vou tentar vibrar nas vossas almas, cidadãos, no fundo de vossos corações irmanados na Abolição; eu vou apelar para vossas mães, para vossos filhos, para vossas esposas. A Abolição, a grande obra do progresso, é uma torrente que se despenca; não há mais pôr-lhe embaraços à sua carreira vertiginosa. As consciências compenetram-se dos seus altos deveres e caminham pela vereda da luz, pela vereda da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, essa trilogia enorme, pregada pelo filósofo do Cristianismo e ampliada pelo autor dos Châtiments – o velho Hugo. Já é tempo, cidadãos, de empunharmos o archote incendiário das revoluções da ideia, e lançarmos a luz onde houver treva, o riso onde houver pranto, e abundância onde houver fome. Basta de gargalhadas! Este século, se tem rido muito, e se o riso é um cáustico para a dor física, é um veneno para a dor moral, e o século ri-se à porta da dor, ri-se como um Voltaire, ri-se como Polichinelo. O riso, cidadãos, torna-se a síntese de todos os tempos.
Mas há ocasiões em que se observam as palavras da Escritura: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”. E então, o riso, esse riso secular, que zombou da lágrima, levanta-se a favor dela e a seu turno convence, vinga-se também. É aí que desaparecem, na noite da história, os Carlos I e Luís XVI, as Maria Antonieta e Rainha Isabel, é aí que desaparece o cetro, para dar lugar à República, a única forma de governo compatível com a dignidade humana, na frase de Assis Brasil, no seu belo livro República Federal. [continua]
Cruz e Sousa, Obra completa, vol. 2, pp. 69-70.