Depoimentos chocantes de mulheres que foram torturadas e estupradas nos porões da ditadura militar
MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Orgs.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.
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‘Sobe depressa, Miss Brasil’, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ‘40 dias’ do parto. Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando entrei. ‘Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca’, disse ele. Um outro: ‘Só pode ser uma vaca terrorista’. Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca leiteira Miss Brasil numa exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio para cima de mim e abriu meu vestido. Picou a página do jornal e atirou em mim. Segurei os seios, o leite escorreu. Ele ficou olhando um momento e fechou o vestido. Me virou de costas, me pegando pela cintura e começaram os beliscões nas nádegas, nas costas, com o vestido levantado. Um outro segurava meus braços, minha cabeça, me dobrando sobre a mesa. Eu chorava, gritava, e eles riam muito, gritavam palavrões. Só pararam quando viram o sangue escorrer nas minhas pernas. Aí me deram muitas palmadas e um empurrão. Passaram-se alguns dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se me esperasse. Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava com um cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio desse terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma injeção. Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mas um outro segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O torturador zombava: ‘Esse leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não melhorar, vai para o barranco, porque aqui ninguém fica doente.’ Esse foi o começo da pior parte. Passaram a ameaçar buscar meu filho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com cigarro’, dizia outro.
ROSE NOGUEIRA, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
Eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogros em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca de setecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau de arara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Dias depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrão da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu ficava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. Nesse período todo, eu fui insultadíssima, a agressão moral era permanente. Durante a noite, era um pânico quando eles vinham anunciar que era hora da tortura. Quando você começava a se recompor, eles iniciavam a tortura de novo, principalmente depois que chegaram os caras do Dops. Durante anos, eu tive insônia, acordava durante a noite transpirando. De Foz, fomos levados para o Dops de Porto Alegre, onde houve outras sessões de tortura, um na frente do outro. Depois, fomos levados de volta para Curitiba, onde fiquei na penitenciária de Piraquara. Quando finalmente fui para a prisão domiciliar, que durou quatro meses, eu sofri muito, fui muito perseguida e ameaçada. Recebia telefonemas anônimos, passava noites sem dormir.
IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
Teve uma tortura que aconteceu na véspera do Sete de Setembro. Sei que foi esse dia porque a gente escutava o ensaio das bandas. Me levaram para uma sala com acústica de madeira. Tocava uma música de enlouquecer. Era um som como se estivessem arranhando a parede. A música foi aumentando cada vez mais. Quando eu saí de lá, minha cabeça estava latejando. Por pouco eu não enlouqueci. Lá no DOI-Codi, todo dia eu ia para o interrogatório, e as torturas eram de todas as formas, como na cadeira do dragão, e sempre nua. E eles ameaçavam as pessoas que a gente conhecia. Um dia me chamaram e eu vi o Paulo [Stuart Wright] encapuzado. Reconheci-o pelo terno que ele estava usando, que fui eu quem tinha dado para ele, e também pela voz. Os torturadores falavam muito das presas, ridicularizavam, gritando para você ouvir. Eram coisas libidinosas, como do tamanho da vagina de uma pessoa que eu conhecia. Uma vez, eles me chamaram para um interrogatório com um homem negro que diziam ser um psicólogo. Isso foi muito tocante para mim, porque é claro que chamaram um homem negro para eu me sentir identificada. Um dia, eles me chamaram no pátio e lá estava o satanás encarnado, o capitão Ubirajara [codinome do delegado de polícia Laerte Aparecido Calandra], apoiado num carro, e um outro ao lado dele em pé, e um bando de homens do outro lado. Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: ‘Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto…
MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
Ele me disse: ‘Se você sair viva daqui, o que não vai acontecer, você pode me procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou o Jesus Cristo [codinome do delegado de polícia Dirceu Gravina]’. Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: ‘Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos’. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: ‘Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia’. Nos outros interrogatórios, eles perguntavam qual era a minha opção política, o que eu pensava, quem pagava os meus honorários, quais eram os meus contatos no exterior, o que eu pensava do comunismo. Para mim, ficou muito claro que eles queriam atemorizar advogado de preso político. Havia uma mudança no tom das equipes. Eram três, e ia piorando. Durante o interrogatório da segunda equipe, eu levei uma bofetada de um e o outro me segurou: ‘Está bravinha porque levou uma bofetada?’. E os homens da terceira equipe diziam: ‘Saia disso, onde já se viu defender esses caras, gente perigosíssima, não se meta nisso!’. Eu estava formada havia menos de um ano, e trabalhava desde o segundo ano no escritório do advogado José Carlos Dias, defendendo presos políticos. Essa era a forma que eu tinha de resistir à ditadura militar, foi minha opção de participação na resistência. Eu fui presa sem nenhuma acusação, fiquei três dias lá sem saber por que estava presa. No terceiro ou quarto dia, eu descobri o motivo: teriam achado num ‘aparelho’ um manuscrito do Carlos Eduardo Pires Fleury, que tinha sido banido do país e que foi meu colega e cliente no escritório. Eu não fui das mais torturadas. Levei choque uma manhã inteira, acho que para saber se eu tinha algum envolvimento com alguma organização clandestina e para que os advogados soubessem que não era fácil para quem militava.
MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Muitos deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu, uma mulher franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na vagina e dizia: ‘Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me estuprou ali mesmo. Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um tempão amarrada num banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos pés e das mãos. Para aumentar a carga dos choques, eles usavam uma televisão, mudando de canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz, que é o único trauma que permaneceu até hoje. Em todas as vezes em que eu era pendurada, eu ficava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto davam choques na minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos que eles punham muito nos seios. E jogavam água para o choque ficar mais forte, além de muita porrada. O estupro foi nos primeiros dias, o que foi terrível para mim. Eu tinha de lutar muito para continuar resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu não perco a imagem do homem. É uma cena ainda muito presente. Depois do estupro, houve uma pequena trégua, porque eu estava desfalecida. Eles tinham aplicado uma injeção de pentotal, que chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava muito zonza. Eles tiveram muito ódio de mim porque diziam que eu era macho de aguentar. Perguntavam quem era meu professor de ioga, porque, como eu estava aguentando muito a tortura, na cabeça deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de ‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam como uma pessoa completamente desumana. Eu também os enfrentei muito. Com certa tranquilidade, eu dizia que eles eram seres anormais, que faziam parte de uma engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com isso, me achava com a moral mais alta.
DULCE MAIA, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era produtora cultural quando foi presa na madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive em Cunha (SP), é ambientalista, dirige a ONG Ecosenso e é cogestora do Parque Nacional da Serra da Bocaina.
Quando fui presa, minha barriga de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer’. Depois, fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos ‘refletores’. Eles nos mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à ‘tortura científica’, numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei. Depois disso, ficavam dizendo que eu era fria, sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam ver quem era a ‘fera’ que estava ali.
HECILDA FONTELLES VEIGA, ex-militante da Ação Popular (AP), era estudante de Ciências Sociais quando foi presa, em 6 de outubro de 1971, em Brasília (DF). Hoje, vive em Belém (PA), onde é professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Eu e meu ex-companheiro, George Duque Estrada, fomos presos em meio a uma avalanche de prisões que tinham como alvo o PCB, do norte ao sul do país. Só em São Paulo, em outubro de 1975, estavam detidas 96 pessoas do partidão, dentre as quais: Lenita Yassuda, Dilea Frate, Marisa Saenz Leme, Eleonora Freire, Sonia Morossetti, Sandra Miller, Sarita D’Ávila Mello, Zilda Gricolli, Marinilda Marchi, Rosa Faria, Ana Maria Brandão Dias, Eugenia Paesani, Nancy Trigueiros, Carmen Vidigal Moraes, Cristina Castro Mello, Monica Staudacher, Nanci Marcelino, Celia Candido, Stela Brandão. No DOI-Codi, passei a noite encapuzada, ouvindo os gritos de um homem sendo brutalizado. O dia seguinte, soube depois, foi aquele em que Vladimir Herzog foi torturado até a morte. Fui levada à sessão de interrogatório numa sala próxima à outra onde alguém também estava sendo interrogado e torturado. Diziam-me que era meu companheiro. Eram gritos abafados de uma pessoa amordaçada. Achei que iam matá-lo. Os homens que me torturavam se revezavam entre o local onde eu estava e a sala contígua. Estavam num estado de alteração psíquica indescritível. Eu era erguida da cadeira e jogada, nua e encapuzada, como se fosse uma peteca, de mão em mão, no meio de xingamentos e gritaria. Depois, fui submetida a tapas e choques elétricos. Perdi alguns dentes e todas as minhas obturações caíram. Como estava amamentando, o leite escorria pelo meu corpo, o que constrangeu alguns torturadores e estimulou outros. O entra e sai era frenético. De repente, instalou-se um silêncio sepulcral. Sobe e desce de escadas. Os interrogatórios foram suspensos. Na madrugada entre 25 e 26 de outubro, agentes passavam pelos corredores perguntando se ‘alguém também estava passando mal’. Pensei que algo de terrível tivesse ocorrido com o George. Não havia sido com ele, mas com o Vladimir Herzog. Foram provavelmente dele os gemidos que ouvi da sala contígua
MARISE EGGER-MOELLWALD, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era estudante de Ciências Sociais quando foi presa no dia 24 de outubro de 1975, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, é socióloga e trabalha como consultora em gestão pública e desenvolvimento de políticas sociais.
No domingo, 12 de novembro de 1978, fui à rodoviária de Porto Alegre esperar uma companheira. Eram 9 horas da manhã. Alguém, com tom amável, pediu-me os documentos. Entreguei o passaporte uruguaio e me conduziram a um escritório. Até então, eu pensava que era um controle de rotina. Fazia pouco que eu tinha chegado ao Brasil com meus filhos e, apesar de saber das novas detenções em Buenos Aires e Montevidéu, achei que não devia me preocupar. Mal entrei no escritório da rodoviária, um homem uruguaio me cumprimentou. Lembro-me dele: capitão Giannone. Havia criado uma fama de cruel e parecia desfrutar dela. A presença do militar uruguaio junto dos policiais brasileiros não deixava dúvidas de que se tratava de uma ação coordenada de repressão. Em pouco tempo, encontrei-me nua na delegacia de Porto Alegre, com cabos elétricos nos ouvidos e nas mãos. As descargas e a água, as descargas e a água, as descargas e a água, pensando no perigo que meus filhos corriam e nos filhos desaparecidos de Sara, de María Emilia. O medo se sente nos intervalos, quando os choques elétricos cessam; quando eles o aplicam, você sente dor. O verdadeiro medo é o que se sente quando essa sessão de tortura termina e você sabe que vai começar a outra, ou quando não começa nada, mas você está lá esperando, paralisada por essa sensação, talvez a mais terrível que se pode sentir. Nesse momento, o que mais dói é a humilhação de estar lá, uivando, com o corpo empapado de merda e pulando sem poder controlar, pulando sem que a sua vontade possa impedi-lo. O objetivo da tortura é esse: vilipendiar você como pessoa, que seu corpo e sua vontade percam o controle e você se sinta um montão de carne, ossos, merda, dor e medo. Não tive nenhuma informação sobre o destino dos meus filhos até o final daquele ano, quando obtive notícias por meio de um soldado que teve piedade de mim.
LILIAN CELIBERTI, uruguaia, ex-militante do Partido da Vitória do Povo (PVP), era professora quando foi sequestrada em Porto Alegre (RS), em 12 de novembro de 1978, juntamente com seus filhos Camilo e Francesca e seu companheiro na época, Universindo Díaz. Hoje, vive em Montevidéu, capital do Uruguai, onde é ativista de direitos humanos e coordenadora da ONG feminista Cotidiano Mulher.
Era muita gente em volta de mim. Um deles me deu pontapés e disse: ‘Você, com essa cara de filha de Maria, é uma filha da puta’. E me dava chutes. Depois, me levaram para a sala de tortura. Pediram que eu me despisse, eu falei que não ia tirar a roupa. O outro disse: ‘Ou você tira ou tiramos nós’. Fiquei em dúvida entre a humilhação de ser despida por eles ou eu mesma me despir. Foi muito humilhante ter de tirar a roupa. Aí, começaram a me dar choques direto da tomada no tornozelo. Eram choques seguidos no mesmo lugar. Havia um desprezo por parte deles. Junto com a ideologia, vinha essa humilhação pelo fato de ser mulher, como se a gente estivesse extrapolando nosso papel de mulher. O tom era de ‘por que você não está em casa, ao invés de estar aqui? Por que você perde tempo com coisas que não lhe dizem respeito?’. Era como se você merecesse ser torturada porque estava fazendo o que não devia ter feito. Um deles me perguntou: ‘Por que você se mete com esses padres revolucionários, com esse pessoal?’. Eu tinha sido presa junto com o Giulio Vicini, que na época era padre. A minha tortura no Dops foi interrompida, e um dos homens disse: ‘Você foi salva pelo gongo’. Na madrugada, fiquei sabendo que o dom Paulo Evaristo Arns intercedeu em nosso favor. Logo nos encaminharam ao Presídio Tiradentes. A atuação de dom Paulo foi direta e imediata. Ele pediu que fizéssemos um relato da tortura sofrida. Na semana seguinte mandou ler em todas as igrejas de São Paulo um comunicado contendo a denúncia de nossa tortura.
YARA SPADINI trabalhava como assistente social quando foi presa em 27 de janeiro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é professora aposentada do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado – seio, vagina, ouvido – e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina… passavam a mão. Também faziam acareações minhas com um companheiro do movimento estudantil, o Pedro Eugênio de Toledo. Eles obrigavam a gente a se encostar nas partes sexuais e a torturar um ao outro. Tínhamos que pôr a mão no órgão um do outro para receber choques. Eles também faziam a gente se encostar como se fôssemos ter uma relação, para os dois serem atingidos pelo choque. Fiquei quase um mês sendo torturada diariamente. Em uma outra vez, eles simularam a minha morte. Me acordaram de madrugada, saíram me arrastando, dizendo que iam me matar. Me puseram dentro de um camburão, onde tinha corda, pá, um monte de ferramentas. Deram muitas voltas e depois pararam num lugar esquisito. Aí, soube que não iam me matar, pois me disseram que eu ia ser colocada numa solitária e que iam espalhar o boato que eu tinha morrido.
MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
[…] Fui conduzida para uma casa […] em Petrópolis. […] O dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. […] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ‘terroristas’. […] Alguns dias depois, […] apareceu o dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída ‘humana’: o suicídio. […] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, o dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs-me então que eu me atirasse embaixo de um ônibus, como eu já fizera. […] No momento em que deveria atirar-me sob as rodas de um ônibus, agachei-me e segurei as pernas de um deles, chorando e gritando. […] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. […] O ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se o ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros […].
INÊS ETIENNE ROMEU, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era bancária quando foi presa em São Paulo (SP), em 5 de maio de 1971. Hoje, vive em Belo Horizonte (MG). Recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2009, na categoria Direito à Memória e à Verdade.
Fui levada para o Dops, onde me submeteram a torturas como cadeira do dragão e pau de arara. No pau de arara, davam choques em várias partes do corpo, inclusive nos genitais. De violência sexual, só não houve cópula, mas metiam os dedos na minha vagina, enfiavam cassetete no ânus. Isso, além das obscenidades que falavam. Havia muita humilhação. Eles tiravam sarro ao mesmo tempo que nos batiam. E eu fui muito torturada, juntamente com o Gustavo [Buarque Schiller], porque descobriram que era meu companheiro. E ele fazia parte da direção da VAR-Palmares. A pior coisa que existe é ver um companheiro ser torturado. Uma vez, eles simularam que iam me degolar. Pegaram uma facona, saíram comigo e disseram para o Gustavo: ‘É a última vez que você vai vê-la’. Aí, eles saíram comigo com aquela faca na garganta e me botaram numa kombi. Depois, pararam o carro e ficaram discutindo o que fazer comigo. Acabaram me deixando de volta no presídio. Foi uma encenação, mas achei que estava indo ser morta. Isso me deixou com trauma durante muitos anos. Eu não conseguia mexer com faca grande na cozinha… No total, fiquei presa durante um ano e meio.
IGNEZ MARIA RAMINGER, ex-militante da VAR-Palmares, era estudante de Medicina Veterinária quando foi presa em 5 de abril de 1970, em Porto Alegre (RS). Hoje, vive na mesma cidade, onde é técnica da Secretaria Municipal de Saúde.
Cheguei em casa depois da minha segunda prisão e meu filho Aritanã Machado Dantas, então com nove anos, não estava lá. Me explicaram que a tia e a avó dele tinham passado para pegá-lo. Liguei para o meu sogro, o general aposentado Altino Rodrigues Dantas, informando que iria buscar meu filho. Fui aconselhada a ir buscá-lo no outro dia. Na manhã seguinte, informou que a pedido de sua mulher, Odete, tinha entrado com processo de destituição de pátrio poder contra mim e meu companheiro, Altino Rodrigues Dantas Júnior. Em 27 de dezembro de 1974, perdi a tutela do meu filho por uma sentença em primeira instância proferida pelo juiz Luciano Ferreira Leite. Estava no oitavo mês de gravidez do meu segundo filho, fruto de um novo relacionamento, e, em decorrência da forte emoção, perdi o bebê. Os advogados de acusação foram Paulo da Costa Manso, Murilo da Costa Manso e Cássio da Costa Carvalho. No meio judiciário, essa sentença foi considerada inédita na história do Direito. Era a primeira vez que por razões ideológicas, e não pelos dispositivos do código civil, se cancelava o pátrio poder sobre um menor. Essa luta durou dois anos. Meu filho ficou com os avós, e eu tinha restrições totais de encontrá-lo. O advogado da avó do meu filho dizia que ela não podia me deixar entrar em sua casa porque eu era uma terrorista. Durante seis meses, eu tinha autorização de ver meu filho da seguinte forma: eu subia com meu advogado até a porta do apartamento e ficávamos no hall; eu ficava sentada no chão, brincando com ele durante uma hora. É muito importante ressaltar o papel dos advogados nesse período. O escritório era do Iberê Bandeira de Melo e participaram de todo o processo os advogados Pedro Paulo Negrini e Marco Antônio Nahum. Depois de seis meses, conseguimos entrar no apartamento. Então, ficávamos na sala eu, os advogados e a avó do meu filho, porque meu sogro tinha se suicidado no meio desse processo. Consegui reaver a guarda do meu filho em 10 de setembro de 1976, numa sentença de segunda instância.
LENIRA MACHADO DANTAS, ex-militante da Ação Popular (AP) e do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), trabalhava como analista de projetos quando foi presa pela segunda vez, em 3 de abril de 1974, em São Paulo (SP). Hoje, vive entre São Paulo e Brasília, onde trabalha como consultora do Ministério do Turismo.
Estávamos na nossa casa em Atibaia. Éramos eu, meu marido e meus filhos. A polícia cercou a casa, arrebentou o portão e bateu na porta. Meu marido estava dormindo. Mandaram chamá-lo e queriam levá-lo para prestar esclarecimento, mas ele pegou um fuzil e disse que não ia. Quando ele saiu na porta, a bala já bateu no peito dele, mas ele ainda estava vivo. Quando caiu, deram trinta, quarenta balas no corpo. O último foi na cabeça. Foi aí que ele morreu, e todos os homens entraram na casa. Eles diziam: ‘Mata ela e os filhos dela, mata essa puta’. Saquearam a casa toda. Lá era um aparelho, tinha todo o material da organização e muitas armas. Quando eu cheguei à delegacia, o pau comeu solto: arrancaram os meninos de mim, me jogaram no chão, pisaram em cima de mim, eu rolava no chão toda ensanguentada. Aí, começaram a vir os homens da Oban. Era soco, pontapé, batiam no meu quadril. Apanhei tanto na boca que a dentadura enganchou na gengiva. Minha boca ficou toda inchada, cheia de dentes quebrados. De madrugada, me levaram para São Paulo, para a Operação Bandeirante, onde eu fiquei 23 dias apanhando. Era choque, choque, choque todo santo dia. Eu me urinava toda, e eles berravam: ‘Essa mulher tá podre, tira essa mulher fedorenta daqui’. Minha vagina ficou toda arrebentada por causa dos choques. Eu tive de fazer uma operação em Cuba, onde levei noventa pontos. Meu útero e minha bexiga ficaram para fora, eu estou viva por um milagre. Também levei muita porrada, muito soco na bunda. Fiquei completamente arrebentada, foi muito sofrimento. Nesses dias, eu não conseguia comer, porque, além da comida parecer ‘resto’, cheia de ponta de cigarro e palito, eu estava com a boca inchada. Então, só tomava uma xícara de café. Tinha também xingamento dos nomes mais pesados. De vez em quando, vinham e davam uma bofetada na nossa cara.
DAMARIS LUCENA, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era feirante quando foi presa em 20 de fevereiro de 1970, em Atibaia (SP). Hoje, vive em São Paulo (SP).
Minha filha nasceu em setembro de 1976, durante o governo Geisel. Eu tive de fazer o parto num hospital privado, fiz uma cesariana, sofri muita pressão. Eles diziam que tinha de fazer como na Indonésia: matar os comunistas até a terceira geração para eles não existirem mais. E depois, a entrega da minha filha foi muito difícil. Eu a entreguei para a minha sogra, pois minha família estava toda no exílio. Foi a pior coisa da minha vida, a mais dolorida. A separação de uma criança com três meses é muito dura para uma mãe, é horrível. É uma coisa que nunca se supera. É um buraco. De toda a minha história, essa é a mais dramática. A minha gravidez resultou do primeiro caso de visita íntima do Rio de Janeiro. Meu marido estava preso na ilha Grande e, quando da passagem do governo Médici para o Geisel, havia uma reivindicação para que nos encontrássemos. Fazia cinco anos que não nos víamos. Foi nessa conjuntura que eu fiquei grávida. A nossa prisão foi muito violenta. Fomos levados para o DOI-Codi, onde fomos muito torturados. As torturas foram tudo que você pode imaginar. Pau de arara, choque, violência sexual, pancadaria generalizada. Quando chegamos lá, tinha um corredor polonês. Todas as mulheres que passaram por ali sofreram com a coisa sexual. Isso era usado o tempo todo.
JESSIE JANE, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era estudante secundarista quando foi presa em 1o de julho de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). Hoje, vive na mesma cidade, onde é professora do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Dois homens entraram em casa e me sequestraram, juntamente com meu marido, o jornalista Paulo Markun. No DOI-Codi de São Paulo, levei choques nas mãos, nos pés e nas orelhas, alguns tapas e socos, sendo inquirida sobre colegas de universidade e suas supostas ligações com o PCB. Durante o tempo em que isso aconteceu, eu usava um capuz preto que sufocava. Num determinado momento, eles extrapolaram e, rindo, puseram fogo nos meus cabelos, que passavam da cintura. Imediatamente retirei o capuz, apaguei o fogo com ele e encarei meu algoz, um senhor com rosto de pai de família e uns sessenta anos de idade. Os torturadores auxiliares perguntaram: ‘E agora, acabamos de vez com ela?’. Tornei a olhar para o mais velho nos olhos e falei: ‘Isso que vocês estão fazendo comigo é um absurdo, sou católica e vou batizar minha filha no domingo’. E perguntei: ‘Você acredita em Deus? Você tem filhos?’. Os mais jovens avançaram sobre mim, e o mais velho disse: ‘Deixa’. Logo depois, fui jogada numa cela com outras mulheres. Lembro-me de uma camponesa que estava com o rosto desfigurado pela pancadaria. Ela não conhecia ninguém ali, nem sequer sabia o que era comunismo. Foi parar lá porque tinha se relacionado amorosamente com um militante. Ao ver aquilo e ouvir o relato das outras presas, muitas estupradas por vários homens e objetos, como garrafas e pedaços de pau, fiquei ainda mais apavorada. Ninguém se lembrou de mim por um dia inteiro e, na manhã do domingo, o carcereiro me disse: ‘Tire o macacão e vista sua roupa’. E saí de lá ao lado do Paulo. Pensei que seria punida pela minha ousadia de encarar o torturador. Mas não foi o que aconteceu. Os homens do Exército nos levaram direto para a igreja onde aconteceria o batizado. No final, meu pai convidou todos para irem à nossa casa ‘comemorar’. Lá, os homens deixaram as metralhadoras no chão da sala, almoçaram, beberam (muito) whisky e vinho. Paulo contou ao pai dele o que estava acontecendo e listou todos os nomes que estavam marcados. No final da tarde, retornamos ao DOI-Codi, levando cobertores, sabonetes, chocolates e objetos de uso pessoal. Naquele dia teve festa na cadeia.
DILEA FRATE, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era estudante de Jornalismo quando foi presa no dia 17 de outubro de 1975, em São Paulo (SP). Hoje, vive no Rio de Janeiro (RJ), onde é jornalista e escritora.
Fizeram de tudo comigo: cadeira do dragão, pau de arara, telefone, palmatória, choque elétrico na vagina, nos seios, nos braços, nas orelhas. No pau de arara, a gente ficava pendurado pelas pernas, feito um peru no pau, num forno. Na cadeira do dragão, jogavam água fria e depois davam choque. Havia também um tipo de corredor em que andávamos vestindo um capuz. Não sabíamos onde estávamos, e as paredes eram todas úmidas. A sensação era de que a gente estava dentro de um túnel, indo cada vez mais fundo, mas não sabia onde ia parar. A gente não sabia se era dia ou noite. Enquanto isso, eles gritavam para contar logo, ‘se não, não vai sair daqui’. Ao mesmo tempo, ouviam-se os gemidos das pessoas, que não sabíamos de onde vinham. Nessas horas, o lado moral pesa mais que o físico. Por conta das torturas nas orelhas, fiquei com problemas no ouvido. Aí, me levaram para o Hospital Militar, mas lá eu não sabia se ia ser atendida direito ou não. Para me torturar, disseram: ‘Ela vai ser operada’, sendo que eu não tinha do que ser operada. Era uma forma de me agredir. Havia também as ameaças de morte, xingamentos, como ‘sua puta, por que está metida nisso?’. O fato de estarmos sempre com a mesma roupa também era uma violência. Não tínhamos condições de trocar, então a gente ficava se sentindo mal, suja, o que é feito de propósito para ver se a gente entregava alguma coisa para poder ir embora. Como sequela, a gente passa anos sentindo aquela mesma sensação vivenciada. Quando fazia frio, eu sentia a sensação dos fios nos dedos ou a picada do choque no seio, na vagina…
ELZA LOBO, ex-militante da Ação Popular (AP), trabalhava na Secretaria da Fazenda quando foi presa em 10 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é Ouvidora da Secretaria de Estado da Saúde.
Acordei no chão da cela com um deles me chutando. Comecei a ser arrastada pelo corredor cheio de policiais e levada escada acima. Eles eram muitos. Um deles começou a falar que era meu noivo, que ia casar comigo. De repente, os outros começaram a passar a mão em mim, no meu corpo, nos meus seios, coxas – aquele monte de homens – e começaram a cantar a marcha nupcial. Quando abriram a porta, tinham montado uma sala de tortura no quartel de Ribeirão Preto, com pau de arara, choque elétrico, e aquele monte de homens gritando, me batendo. O homem que disse que ia casar comigo rasgou a minha roupa. Me jogaram água, o bombeiro me amarrou na cadeira e começou a sessão de choque elétrico praticamente a noite inteira, e eu nua, apanhando. Eram choques nos seios, no ventre, na vagina, dentro do ouvido… Era um pesadelo. Era um monte de homens, de trinta a quarenta anos, todo o pessoal da Oban que tinha vindo para Ribeirão. Três dias depois fui levada para São Paulo com meus companheiros de organização. Durante a viagem, o torturador ia me assediando. Ele dizia que queria trepar comigo e que a gente ia virar presunto na estrada. Na Oban nós já chegamos apanhando, os meninos foram para um lado e eu subi para uma cela minúscula com oito mulheres. Depois voltamos para Ribeirão. Quando chegamos ao quartel, foi um massacre. Era dia e noite gente caindo; os padres, a irmã Maurina Borges da Silveira… Me lembro de quando ela chegou na cela. Eu estava de bruços porque estava muito estraçalhada e pensei: ‘Meu deus, o que essa freira está fazendo aqui?’. Ela foi torturada e assediada. Eu sou testemunha da cena. O capitão Cirilo, do Exército de Pirassununga, tentando agarrá-la, passando a mão nela. A repressão aqui foi tão grande que a Igreja excomungou os dois delegados de Ribeirão, Miguel Lamano e Renato Ribeiro Soares. Não sei nem como eu fiquei viva. Tiveram de tirar a gente do quartel porque qualquer soldado se sentia no direito de ir ao banheiro com a gente, assediar. Eles falavam assim: ‘Ô boneca terrorista, vamos jogar dados e fazer a fila para ver quem será o primeiro’.
ÁUREA MORETTI, ex-militante das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), era estudante de enfermagem quando foi presa em 18 de outubro de 1969, em Ribeirão Preto (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é enfermeira da Secretaria Municipal de Saúde.
Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo a sede do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela. O torturador era o Mangabeira [codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta] e, junto dele, tinha uma criança de três anos que ele dizia ser sua filha. Só depois, quando fui levada para o presídio Tiradentes, eu vim a saber que eles entregaram minha filha para a minha cunhada, que a levou para a minha mãe, em Belo Horizonte. Até depois de sair da cadeia, quase três anos depois, eu convivi com o medo de que a minha filha fosse pega. Até que eu cumprisse a minha pena, eu não tinha segurança de que a Maria estava salva. Hoje, na minha compreensão feminista, eu entendo que eles torturavam as crianças na frente das mulheres achando que nós desmontaríamos por causa da maternidade. Fui presa e levada para a Oban. Sofri torturas no pau de arara, na cadeira do dragão, levei muito soco inglês, fui pisoteada por botas, tive três dentes quebrados. Éramos torturadas completamente nuas. Com o choque, você evacua, urina, menstrua. Todos os seus excrementos saem. A tortura era feita sob xingamentos como ‘vaca’, ‘puta’, ‘galinha’, ‘mãe puta’, ‘você dá para todo mundo’… Algumas mulheres sofreram violência sexual, foram estupradas. Mas apertar o peito, passar a mão também é tortura sexual. E isso eles fizeram comigo. Eles também colocaram na minha vagina um cabo de vassoura com um fio aberto enrolado. E deram choque. O objetivo deles era destruir a sexualidade, o desejo, a autoestima, o corpo.
ELEONORA MENICUCCI DE OLIVEIRA, ex-militante do Partido Operário Comunista (POC), era estudante de Sociologia e professora do ensino fundamental quando foi presa, em 11 de julho de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é pró-reitora de extensão e cultura e professora titular de saúde coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Logo que fui levada ao DOI-Codi/RJ – depois de três dias no Dops – recebi na cela onde estava, um pouco antes de a tortura começar, uma estranha ‘visita’: Amílcar Lobo, que se disse médico. Ele tirou minha pressão e perguntou se eu era cardíaca. Ou seja, preparou-me para a tortura para que esta fosse mais eficaz. Os guardas que me levavam, frequentemente encapuzada, percebiam minha fragilidade e constantemente praticavam vários abusos sexuais contra mim. Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais intensos. Me senti desintegrar: a bexiga e os esfíncteres sem nenhum controle. ‘Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo… Eu não estou aqui…’, pensei eu. O filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorria meu corpo… ‘E se me colocam a cobra, como estão gritando que farão?’. Perdi os sentidos, desmaiei. Em outros momentos, era levada para junto de meu companheiro quando ele estava sendo torturado. Inicialmente, fizeram-me acreditar que nosso filho, de três anos e meio, havia sido entregue ao Juizado de Menores, pois minha mãe e meus irmãos estariam também presos. Foi fácil cair nessa armadilha, pois vi meus três irmãos no DOI-Codi/RJ. Sem nenhuma militância política, foram sequestrados em suas casas, presos e torturados. O barulho das chaves nas mãos de algum soldado que vinha abrir alguma cela era aterrorizante. ‘Quem será dessa vez?’ Quando passavam por minha cela e seguiam adiante, ficava aliviada. Alívio parcial, pois pensava: ‘Quem estará indo para a sala roxa dessa vez?’. Esse farfalhar de chaves me acompanha desde então. Numa madrugada, fui retirada da cela, levada para o pátio, amarrada, algemada e encapuzada. Aos gritos, diziam que eu seria executada e levada para ser ‘desovada’ como num ‘trabalho’ do Esquadrão da Morte. Acreditei. Naquele momento, morri um pouco. Em silêncio, aterrorizada, urinei-me. Aos berros, eles riram e me levaram de volta à cela. Parece que nessa noite não havia muito ‘trabalho’ a fazer.
CECÍLIA COIMBRA, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era estudante de Psicologia quando foi presa em 28 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). Hoje, vive na mesma cidade, onde foi fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais, do qual é presidente. É também professora de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Cheguei à Oban e a violência começou no interrogatório, com choque elétrico. Quando eu vi o pau de arara, não reconheci o que era porque estava em choque. Vi um copo cheio de uma substância branca e achei que era açúcar, para tomar com água na hora do nervoso. Mas era sal, para pôr nas feridas. Eles faziam piadas sobre o corpo das mulheres, se era feio, jovem, velho, gozavam dos defeitos. Era uma mesquinharia muito grande. Eles abusam, violentam, de uma maneira ou outra, humilham, tornam objeto. Eles faziam a gente se sentir uma porcaria. Também faziam uma certa gozação, como se eu tivesse me metido nisso sem saber o que era. Eles tinham muito prazer na tortura. Não me pareceu que eles faziam por obrigação. Havia o Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra], que era o mais terrível, porque vinha com uma conversinha, com uma diplomacia: ‘Minha filha, como você vai se meter numa coisa dessas, você é de uma família boa, vai prejudicar os seus filhos por essa coisa de comunismo’. E, de repente, inesperadamente, ele lançava uma bofetada. Lá da minha cela, eu conseguia ver que eles tinham uma cachorrada no pátio. Eles masturbavam as cadelas, as excitavam, e elas uivavam, acho que de prazer e medo. Era brutal. Eu tinha vontade de vomitar. Uma vez, o torturador “Jesus Cristo” [codinome do delegado de polícia Dirceu Gravina] saiu de um interrogatório e foi para o meu. Ele estava muito nervoso e falou: ‘Você é psicóloga, né, acho que vou precisar do seu auxílio. Eu estou descontrolado, chego em casa e arrebento tudo, bato na minha mulher’. Depois da Oban, fui para o Dops e para o Tiradentes, onde a coisa foi ficando mais de tortura psicológica e não física. Mas sempre com aquele horror de saber que a qualquer momento a gente poderia voltar para a Oban.
LÚCIA COELHO, ex-militante do Partido Operário Comunista (POC), era professora da Faculdade de Medicina da USP quando foi presa em 15 de julho de 1971, em São Paulo (SP), juntamente com seu marido Ruy Coelho, vice-diretor da Faculdade de Filosofia da USP. Hoje, vive na mesma cidade, é psicóloga e presidente da Sociedade Rorschach de São Paulo.
Fomos levados diretamente para a Oban. Tiraram o César e o [Carlos Nicolau] Danielli do carro dando coronhadas, batendo. Eu vi que quem comandava a operação do alto da escada era o Ustra [coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra]. Subi dois degraus e disse: ‘Isso que vocês estão fazendo é um absurdo’. Ele disse: ‘Foda-se, sua terrorista’, e bateu no meu rosto. Eu rolei no pátio. Aí, fui agarrada e arrastada para dentro. A primeira forma de torturar foi me arrancar a roupa. Lembro-me que ainda tentava impedir que tirassem a minha calcinha, que acabou sendo rasgada. Começaram com choque elétrico e dando socos na minha cara. Com tanto choque e soco, teve uma hora que eu apaguei. Quando recobrei a consciência, estava deitada, nua, numa cama de lona com um cara em cima de mim, esfregando o meu seio. Era o Mangabeira [codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta], um torturador de lá. A impressão que eu tinha é de que estava sendo estuprada. Aí começaram novas torturas. Me amarraram na cadeira do dragão, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no umbigo, no seio, na boca, no ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se esfregavam em mim, se masturbavam em cima de mim. A gente sentia muita sede e, quando eles davam água, estava com sal. Eles punham sal para você sentir mais sede ainda. Depois fui para o pau de arara. Eles jogavam coca-cola no nariz. Você ficava nua como frango no açougue, e eles espetando seu pé, suas nádegas, falando que era o soro da verdade. Mas com certeza a pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala quando eu estava na cadeira do dragão. Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques. Quando me viu, a Janaína perguntou: ‘Mãe, por que você está azul e o pai verde?’. O Edson disse: ‘Ah, mãe, aqui a gente fica azul, né?’. Eles também me diziam que iam matar as crianças. Chegaram a falar que a Janaína já estava morta dentro de um caixão.
MARIA AMÉLIA DE ALMEIDA TELES, ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), era professora de educação artística quando foi presa em 28 de dezembro de 1972, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, é diretora da União de Mulheres de São Paulo e integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2008, na categoria Defensores de Direitos Humanos.
De tudo que eu passei, o pior foi ter assistido à tortura de Odijas [Carvalho de Souza]. Eles abriram a porta da sala de tortura e me fizeram sentar ali do lado para ver. Eram muitos homens. Teve muita porrada: socos, pontapés, palmatória… enfiaram coisas no ânus dele. Isso durou o dia todo, a madrugada inteira, e ele começou a urinar e a vomitar sangue. Quando chegou no hospital, oito dias depois, estava com todos os órgãos destruídos e morreu ali. Durante o dia, eles me deixavam sentada numa cadeira dura, numa sala de expediente do Dops, no caminho para a sala de tortura e para as celas. Eles passavam por ali o tempo todo, tinha muito assédio, puxavam meu cabelo, falavam coisas. Na primeira semana, eu não fui torturada porque estava tudo concentrado no Odijas e nos demais presos, que eram da direção do PCBR. Eu era uma desconhecida da repressão e muito menina, tinha pouco mais de 18 anos. Mas quando passavam por mim, diziam: ‘Amanhã vai ser você, mas aí vai ser diferente’. E diziam coisas nojentas sugerindo que haveria violência sexual. Teve um dia que eu fui interrogada pelo Miranda, que era o chefão dos torturadores. Eu apanhei de palmatória nas nádegas, mãos, pés… Numa das ameaças de violência sexual, o delegado me chamou, disse que eu estava muito magra e perguntou se eu estava trepando muito, pois essa era a melhor maneira de emagrecer. E disse que ele poderia me alimentar bem, me engordar e depois me faria emagrecer com a dieta do sexo. Isso tudo aconteceu no Dops do Recife. Depois eu fui levada para o quartel do Derby, onde também foi muito pesado, porque não tinha instalação para presas. Então, ficamos três mulheres numa cela exposta, sem cortina, com soldados passando e fazendo gracejos. Em 1974, quando eu já estava solta, fui sequestrada pelo Cenimar, onde fiquei 24 horas encapuzada numa cela.
LYLIA GUEDES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era estudante secundarista quando foi presa em 31 de janeiro de 1971 na cidade de Paulista (PE). Hoje, é professora da Universidade Federal do Mato Grosso e vive em Brasília (DF), onde coordena a gerência indígena do Ministério do Meio Ambiente.
Minha segunda prisão foi quando eu estava a caminho do Araguaia. Saí de São Paulo, de ônibus, junto com a Elza Monnerat, que era dirigente do PCdoB. Quando chegamos a Marabá, ela me levou para um hotel. Quando vimos que o Exército estava na cidade, ela me deu a instrução para voltar para São Paulo, mas foi tarde demais. O hotel já estava cercado e eu fui presa lá, onde passei a noite. Depois me levaram para o quartel e, de lá, para Belém, Brasília e São Paulo. Comecei a ser mais torturada em Brasília, no PIC [Pelotão de Investigações Criminais], porque antes eles não tinham muitas informações a meu respeito. Lá estava lotado de gente, a cela era imunda, cheia de baratas. Para o interrogatório, eu ia encapuzada, e eles gritando. E tinha pancadaria, ameaças, choque. Eles também me humilhavam muito por eu ser japonesa. O meu maior medo era voltar para São Paulo, porque aqui eu sabia que a barra ia pesar. Quando eu voltei, dois meses depois de ser presa, fui direto para a Oban. Eles me torturaram mais pelo ódio que sentiam do que para obter informações. Eles sabiam que eu não tinha mais informação ‘quente’ para oferecer. Passei por muita pancadaria, choque, xingamento. Diziam que eu era uma traidora, que o Brasil tinha sido generoso com a minha família, que eu devia estar ajoelhada beijando a bandeira.
RIOKO KAYANO, ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), era estudante de Letras quando foi presa em 14 de abril de 1972, em Marabá (PA). Hoje, vive em São Paulo (SP) e é funcionária aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Eu e meu marido, Dermi Azevedo, militávamos com os padres dominicanos, em São Paulo. Em 15 de janeiro de 1974, um dia após a prisão do Dermi, fui pega. Eu tinha saído atrás de ajuda para ele e acabei sendo presa no meu local de trabalho. Foi um terror. Quando abri a porta, vi cinco homens armados com metralhadora me esperando. Depois de rodar horas pela cidade com os policiais, fui levada para a sede do Dops. Quando cheguei lá, por volta da meia-noite, encontrei meu filho, Carlos Alexandre, que na época tinha dois anos de idade, e a moça que cuidava dele. Me levaram imediatamente para a sala de tortura, e era o delegado Fleury que estava me esperando. Já era tarde da noite e o Fleury ficou irritado de saber que meu filho estava ali. Então, ele saiu para resolver o que fazer com o menino. Eu acabei não sendo torturada e, depois, soube que meu filho foi levado para a casa da minha sogra. Apesar de não ter sofrido tortura física, sofri muita violência psicológica. Fui colocada numa solitária, revistavam a cela com cachorros e faziam chacota de mim. Como eu era muito magra e tinha pouco seio, eles perguntavam como eu tinha conseguido amamentar com tão pouco peito. Mas isso de uma maneira muito escrachada. Eles também falavam que a gente tinha doutrinado nosso filho. Tempos depois eu fiquei sabendo que quando foram me prender em casa, encontraram meu filho e a babá. Os homens passaram o dia lá. Mandaram que os dois ficassem quietos no sofá, mas como meu menino começou a chorar, o cara ficou nervoso e deu um tapa tão forte na boca do meu filho que os lábios dele se cortaram. Eu fiquei 43 dias presa, e o Dermi ficou quatro meses, sendo muito torturado. Quando saiu de lá, estava muito deprimido. Nossa família ficou desestruturada. Isso afetou muito a vida do meu filho, que se fechou nele mesmo e ficou com sequelas. Ele passou a ser uma criança superfechada e hoje tem fobia social.
DARCY ANDOZIA trabalhava como secretária quando foi presa em 15 de janeiro de 1974, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
Fomos colocadas na solitária, onde ficamos por três meses, sendo tiradas apenas para sermos interrogadas sob tortura. Era choque elétrico, pau de arara, espancamento, telefone, tortura sexual. Eles usavam e abusavam. Só nos interrogavam totalmente nuas, juntando a dor da tortura física à humilhação da tortura sexual. Eles aproveitavam para manusear o corpo da gente, apagar ponta de cigarro nos seios. No meu caso, quando perceberam que nem a tortura física nem a tortura sexual me faziam falar, me entregaram para uns policiais que me levaram, à noite, de olhos vendados, para um posto policial afastado, no meio de uma estrada. Lá, eu fui torturada das sete da noite até o amanhecer, sem parar. Pau de arara até não conseguir respirar, choque elétrico, espancamento, manuseio sexual. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto a gente estava naquela posição, de cabeça para baixo. Quando eu já estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Eu não me aguentava em pé e caí no chão. Nesse momento, nessa situação, eu fui estuprada. Eu estava um trapo. Não parava em pé, e fui estuprada assim pelo sargento Leo, da Polícia Militar. De madrugada, eu percebi que o sol estava nascendo e pensei: se eu aguentar até o sol nascer, vão começar a passar carros e vai ser a minha salvação. E realmente aconteceu isso. Voltei para a solitária muito machucada. A carcereira viu que eu estava muito mal e chamou a médica da penitenciária. Eu nunca mais vou esquecer que, na hora em que a médica me viu jogada lá, ela disse: ‘Poxa, menina, não podia ter inventado isso outro dia, não? Hoje é domingo e eu estava de saída com meus filhos para o sítio’. Depois disso, eles passavam noites inteiras me descrevendo o que iam fazer com a minha menina de quatro meses. ‘Você é muito marruda, mas vamos ver se vai continuar assim quando ela chegar. Estamos cansados de trabalhar com adulto, já estudamos todas as reações, mas nunca trabalhamos com uma criança de quatro meses. Vamos colocá-la numa banheirinha de gelo e você vai ficar algemada marcando num relógio quanto tempo ela leva para virar um picolé. Mas não pense que vamos matá-la assim fácil, não. Vocês vão contribuir para o progresso da ciência: vamos estudar as reações, ver qual vai ser a reação dela no pau de arara, com quatro meses. E quanto ao choque elétrico, vamos experimentar colocando os eletrodos no ouvido: será que os miolos dela vão derreter ou vão torrar? Não vamos matá-la, vamos quebrar todos os ossinhos, acabar com o cérebro dela, transformá-la num monstrinho. Não vamos matar você também não. Vamos entregar o monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter se transformado nisso’. Depois disso, me jogavam na solitária. Eu quase enlouqueci. Um dia, eles me levaram para uma sala, me algemaram numa cadeira e, na mesa que estava na minha frente, tinha uma banheirinha de plástico de dar banho em criança, cheia de pedras de gelo. Havia o cavalete de pau de arara, a máquina do choque, e tinha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente. Eles disseram: ‘Pegamos sua menina, ela já vai chegar e vamos ver se você é comunista marruda mesmo’. Me deixaram lá, olhando para os instrumentos de tortura, e, de vez em quando, passava um torturador falando: ‘Ela já está chegando’. E repetia algumas das coisas que iam fazer com ela. O tempo foi passando e eles repetindo que a menina estava chegando. Isso durou horas e horas. Depois de um tempo, eu percebi que tinham passado muitas horas e que era blefe.
GILSE COSENZA, ex-militante da Ação Popular (AP), era recém-formada em Serviço Social quando foi presa em 17 de junho de 1969, em Belo Horizonte (MG). Hoje, vive na mesma cidade, onde é assistente social aposentada.