Skip to main content

Darwin: a escravidão no Brasil

Darwin: a Life in Poems[1] é um livro incomum, que mescla poesia e autobiografia, para recontar cronologicamente episódios da vida de Charles Darwin através de poemas. A autora do livro, a prestigiada poeta britânica Ruth Padel, tem dois dados importantes na sua própria história: além de ser trineta de Darwin, tem um interesse particular em poesia e ciência, tema que é objeto da sua escrita e atividade acadêmica como professora no King’s College London.

Os primeiros poemas desta autobiografia em versos foram inicialmente pensados e encomendados por ocasião do Bristol Festival of Ideas, para celebrar o bicentenário de Darwin em 2009. Outros fizeram parte do programa de arte contemporânea do Natural History Museum, para a exposição After Darwin: Contemporary Expressions, também por ocasião do bicentenário em 2009.

Uma inspiração mais longínqua para este projeto deriva de conversas de Ruth Padel com sua avó, Nora Barlow, que editou vários dos livros de Darwin, incluindo uma reedição da primeira versão de sua Autobiography, escrita em 1876, e publicada por seu filho Francis após sua morte. As edições posteriores da autobiografia sofreram cortes solicitados pela esposa de Darwin, Emma, no que dizia respeito à atitude de Darwin em relação ao Cristianismo. Darwin estudou Medicina na Universidade de Edimburgo e depois, Teologia em Cambridge, enquanto crescia seu interesse pela história natural. A visão religiosa do naturalista começou a mudar durante a viagem do Beagle – para a qual ele embarcou com uma cópia do Novo Testamento em grego. Ao longo dos anos, ele perdeu toda a fé no Cristianismo, revelando-se um agnóstico, o que criou tensão permanente na seu forte laço conjugal com Emma.

A biografia em forma de poemas é dividida em cinco capítulos, cobrindo períodos distintos da vida de Darwin, desde a sua infância e adolescência até a velhice. Há um capítulo com poemas dedicados especialmente às suas viagens, e dois deles chamaram particularmente a minha atenção, e serão apresentados em versões traduzidas: ‘A Quarrel in Bahia Harbour’ e ‘The Thumbscrews of Rio’. Apesar do deslumbramento do jovem Charles Darwin (com apenas 22 anos) ao pisar pela primeira vez em uma floresta tropical na Bahia, em 29 de fevereiro de 1832, e, em seguida, com as paisagens tropicais do Rio de Janeiro, estes dois poemas relatam a profunda indignação de Darwin com não só a ainda existência da escravidão – que tinha sido abolida na Inglaterra em 1772! – mas sobretudo com a selvageria no tratamento dado aos escravos. Há poucos relatos escritos sobre os maus tratos sofridos pelos escravos no Brasil e certamente este é um testemunho de grande relevância.

Além destas passagens ilustradas nos poemas, Darwin fez outras reflexões sobre a escravidão no Brasil ao longo de seus escritos:

‘It is impossible to see a negro & not feel kindly toward him; such cheerful, open honest expressions & such fine muscular bodies; I never saw any of the diminutive Portuguese with their murderous countenances, without almost wishing for Brazil to follow the example of Hayti; & considering the enormous healthy looking black population, it will be wonderful if at some future day it does not take place.’[2]

Em Voyage of the Beagle, Darwin comenta em particular sobre um incidente ocorrido junto em uma propriedade situada junto ao rio Macaé:

While staying at this estate, I was very nearly being an eye-witness to one of those atrocious acts which can only take place in a slave country. Owing to a quarrel and a lawsuit, the owner was on the point of taking all the women and children from the male slaves, and selling them separately at the public auction at Rio. Interest, and not any feeling of compassion, prevented this act. Indeed, I do not believe the inhumanity of separating thirty families, who had lived together for many years, even occurred to the owner. Yet I will pledge myself, that in humanity and good feeling he was superior to the common run of men. It may be said there exists no limit to the blindness of interest and selfish habit.[3]

Ideias, observações e fatos importantes e relevantes da vida de Darwin aparecem nos poemas, como a intensa presença de Emma, e a perda de três filhos (um deles com síndrome de Down), além de sua preocupação com o sofrimento e a condição humana: ‘Disease and pain in the world and they talk of perfection?’

As citações que aparecem ao longo do livro provém de várias fontes: dos livros de Darwin, de artigos científicos, revistas, cadernos, rascunhos e cartas. Os eventos externos de sua vida, que a autora complementa, estão extensivamente registrados nos seus escritos (que podem ser consultados em www.darwin-online.org.uk) ou nas correspondências e memórias sobre Darwin no site www.darwinproject.ac.uk. Apesar de transformar estas informações em poemas, Ruth Padel deixa claro que não alterou o seu sentido, pelo contrário, procurou dar plena voz ao seu trisavô. Agradeço a permissão concedida por Ruth Padel para publicar a versão original dos poemas na Sibila.

A QUARREL IN BAHIA HARBOUR

He heard how it felt to walk in jungle first
from John Edmonstone. His teacher, the freed slave.
Now, in this city on a pink-lit bay, lighting
snaps beneath his feet. He sees the slaves
themselves. Auctions. Blows. Humanity betrayed.

His waiscoat crackles with static. In the marl
of a river crossing, to make sure the ferry-pilot,
a tall black slave, knows where he needs to go,
he explains a little louder – as you do –
and waves his hands. Terrified, the fellow shuts his eyes.

‘He thought I was in a passion and meant to strike!

I shall never forget my shame and my surprise
at seeing a great, powerful man afraid
even to ward off a blow
directed, he thought, at his face. He was trained

to degradation lower than the most helpless animal!’
But Captain Fitzroy thinks different.
He’s seen a plantation-owner asks his slaves
If they wanted to be free – ‘And they said “No!”
Does saying it to their master’s face prove anything?

‘We cannot live together if you doubt my word!
The Captain bangs out of the cabin
and curses him, on deck, all evening.
Will he have to leave the boat? Fitzroy sends apologies.
They never speak of slavery again.

Bahia, March 1832. Slavery was abolished in England in 1772 and slave trading in British colonies in 1806. But this exarcebated trading by other nations and Portugal continued transporting Africans to Brazil. Darwin was horrified. All his family had campaigned for abolition; his grandfather Josiah Wedgwood made for the aboliton movement a medallion saying, ‘Am I Not a Man and Bother?’ In 1832 Darwin and his sisters were waiting impatiently for the British government to emancipate slaves in British colonies: the law was passed in August that year.

Fitzroy and Darwin shared the captain’s living quarters. Their worst quarrel was over slavery. Fitzroy later changed his views.

UMA BRIGA NO PORTO DA BAHIA

Ele primeiro soube como era andar na selva
por John Edmonstone, seu professor, o escravo liberto.
Agora, nesta cidade sobre a baía rosa iluminada, relâmpagos
disparam sob seus pés. Ele vê os escravos
eles mesmos. Leilões. Socos. Humanidade traída.

Seu colete crepita com energia estática. Na marga
de uma travessia de rio, para certificar-se que o barqueiro,
um escravo negro e alto, sabe onde precisa ir,
ele explica em tom mais alto – como se faz –
e agita as mãos. Horrorizado, o companheiro fecha os olhos.

‘Ele pensou que eu estava exaltado e queria bater!
Nunca vou esquecer minha vergonha e minha surpresa
ao ver um homem grande e poderoso com medo
até mesmo de proteger-se de um soco
dirigido, imaginou, para seu rosto. Ele era treinado

para a degradação mais baixa do que o animal mais indefeso!’
Mas o Capitão Fitzroy pensa diferente.
ele viu um dono de plantação perguntar aos seus escravos
se eles queriam ser livres – ‘E eles disseram “Não!”
Dizer na cara do mestre deles prova alguma coisa?

‘Não podemos viver juntos se você duvida da minha palavra!’
O Capitão bate a porta da cabine
e xinga ele, do convés, a noite inteira.
Ele terá que deixar o barco ? Fitzroy pede desculpas.
Eles nunca mais falam sobre escravidão.

Nota da tradutora: Bahia, março de 1832. A escravidão foi abolida na Inglaterra em 1772 e o tráfico de escravos nas colônias britânicas em 1806. Mas isto exacerbou o tráfico por outras nações e Portugal continuou a transportar escravos para o Brasil. Darwin ficou horrorizado. Toda a sua família havia participado da campanha em prol da abolição; seu avô Josiah Wedgwood criou para o movimento abolicionista um medalhão dizendo ‘Am I Not a Man and Bother?’ Em 1832 Darwin e suas irmãs estavam esperando impacientemente que o governo britânico emancipasse escravos nas colônias britânicas. A lei foi aprovada em agosto daquele ano. Fitzroy e Darwin compartilharam os aposentos do capitão. A pior briga deles foi sobre escravidão. Fitzroy mais tarde mudou seu ponto de vista.

LEAVING BRAZIL

THE THUMBSCREWS OF RIO

‘Mr Earle has seen a stump of the joint wrenched off
by the thumscrew so often kept in a family house.’
A simple vice, with studs on interior surfaces.
The thumb placed in and slowly crushed.
Faces so close they smell each other’s breath.

‘If I hear a distant scream, I remember a house
where I heard most pitiable moans and I suspected
some poor slave was being tortured
but was powerless to remonstrate. I lived opposite
an old lady who crushed the fingers of her female slaves;

I stayed in a home where a young mulatto was reviled,
beaten and persecuted every hour,
enough to break the spirit of the lowest animal.
I have seen a boy, six or seven, struck thrice
with a whip on his naked head before I could interfere

For having handed me a glass of water not quite clean.
I saw his father tremble at a single glance
from his master’s eye. This day we have finally
left the shores of Brazil. I thank god I shall never see
a slave-country again.’

Augustus Earle was the artist on the Beagle.

19 August 1832

PARTINDO DO BRASIL

OS ANJINHOS DO RIO

‘O Sr Earle viu um coto da junta arrancada
pelo anjinho comumente mantido em casa de família.’
Um torno simples, com tachas sobre as superfícies internas.
O polegar posto nele e lentamente esmagado.
Faces tão próximas que sentiam o hálito das outras.

‘Se eu ouvir um grito distante,  lembro de uma casa
onde ouvi os mais lastimosos gemidos e suspeitei
de algum escravo sendo torturado
mas era impotente para protestar. Vivi defronte
a uma senhora de idade que esmagava os dedos das suas escravas;

Fiquei em uma casa onde um jovem mulato era insultado,
espancado e perseguido de hora em hora,
o suficiente para domar o espírito do animal mais baixo.
Eu vi um menino, de seis ou sete anos, triplamente açoitado
com um chicote sobre sua cabeça exposta antes que eu pudesse interferir

Por ter me entregado um copo d’água que não estava limpíssimo.
Eu vi seu pai tremer após um único relance
do olho do seu mestre. Este dia nós finalmente
deixamos a costa do Brasil. Graças a deus nunca mais devo ver
um país de escravos outra vez.’

Augustus Earle era o artista a bordo do Beagle.

19 de agosto de 1832

Traduções: Virna Teixeira

Ruth Padel é uma poeta britânica, romancista, crítica e autora. e primeira escritora em residência na Royal Opera House em Covent Garden, Convent Garden, Londres. Ela ensina Poesia no Kings College London e publicou nove livros de poesia, um romance, e oito livros de não-ficção incluindo três livros didáticos sobre poesia. Seu ultimo livro, The Mara Crossing/ ON MIGRATION  é uma meditação de gênero misto entre a prosa e a poesia. Ela obteve primeiro lugar na UK National Poetry Competition; o prêmio Cholmondeley da The Society of Authors; o Arts Council of England Writers’ Award, e o British Council Darwin Now Research Award por seu romance Where the Serpent Lives. Ela é atualmente Fellow na Royal Society of Literature, membro da Bombay Natural History Society, embaixadora da New Networks for Nature, patrona da 21st-Century Tiger,  e conselheira na Zoological Society of London. Ruth Padel é trineta de Charles Darwin, e seu livro Darwin: A Life in Poems (de onde os poemas desta tradução foram retirados) baseou-se na biografia e nos escritos de Darwin, e foi publicado no seu bicentenário.

Virna Teixeira é poeta, tradutora e neurologista. Tem quatro livros de poesia, e quatro livros de tradução publicados, Vive em Londres, onde estuda Medical Humanities no King’s College London.

 


[1] Padel, Ruth. Charles Darwin: A Life in Verses. London, Chatto & Windus, 2009.

[2] Darwin, Charles. Charles Darwin to Catherine Darwin (May 22 – July 14 1833) The Correspondence of Charles Darwin Vol 1 1821-1836. Cambridge, Cambridge University Press, 1985: pp. 312-313.

[3] Darwin, Charles. The Voyage of the Beagle. New York, P.F.COLIER, 1909: p. 35.

 

Mercedes Roffé


 Sobre Virna Teixeira

Publicou três livros de poesia: Visita (2000) e Distância (2005) pela 7 Letras e Trânsitos (2009) pela Lumme Editor, além de alguns títulos de tradução de poesia escocesa.