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A autópsia de um “poema” de Kenneth Goldsmith

Wikipédia (contexto): Às 11h51minutos do dia 9 de agosto de 2014, uma câmera de segurança de uma loja de conveniência capturou o rapaz negro de nome Michael Brown roubando um pacote de cigarro no valor de 48 dólares e, para tanto, agredindo fisicamente o operador do caixa. Um oficial via rádio reportou um “roubo em progresso” às 11h53 e às 11h57 foi informado que o suspeito tinha um boné vermelho dos St. Louis Cardinals, uma camiseta branca, meias amarelas e bermudas cáqui, e que ele estava acompanhado de outro homem. Ao meio-dia, o oficial Wilson usou seu rádio para saber se outros oficiais estavam procurando os ladrões e se havia necessidade de ajuda. Nesse momento, foi informado a Wilson que os suspeitos haviam desaparecido. Às 12h01minutos, Wilson conduziu sua viatura até o local onde estavam Brown e Johnson 9º “outro homem”), que caminhavam pelo meio da rua, tendo-lhes ordenado que saíssem da pista e caminhassem pela calçada. Wilson continuou dirigindo seu veículo e passou pelos dois homens, mas então deu marcha à ré e parou próximo a eles, depois, segundo Wilson, apercebeu-se que Michael Brown correspondia às características físicas do suspeito de roubo na loja de conveniência. Gravações de rádio policiais indicam que Wilson pediu reforços às 12h02.

Uma luta corporal teve lugar entre Brown e Wilson pela janela da viatura policial, uma SUV Chevrolet Tahoe. A arma de Wilson disparou duas vezes durante a altercação, com uma bala atingindo o braço de Brown enquanto estava dentro do veículo. Brown e Johnson fugiram e Johnson escondeu-se atrás de um carro. Wilson então saiu do veículo policial e perseguiu Michael Brown. Sangue no chão sustentam as declarações de que Brown continuou a se aproximar do policial Wilson enquanto era atingido pelos projéteis.  Num dado momento, Wilson disparou novamente, com pelo menos seis tiros atingindo Brown pela frente, ferindo-o fatalmente. Brown não portava armas. Menos de 90 segundos se passaram do momento em que Wilson encontrou Brown ao momento da morte deste último.


O poeta Kenneth Goldsmith se apropriou da autópsia de Michael Brown, agora em 2015, para transformá-la em um poema conceitual. E fez então uma leitura dessa autópsia na Brown University em março de 2015. Parece que Goldsmith e grande parte do público que esteve presente na sexta feira à noite em Brown University  jamais  assistiram à uma autópsia. Para esse público, a leitura que  Goldsmith  fez  de seu poema  “ O corpo de Michael Brown” – uma  interpretação criativa do relatório da autópsia de Brown – não estava ligada à experiência física de cortar um corpo humano, mas – antes – às associações políticas que  envolviam esse corpo, em particular. De fato, a maioria das discussões e das reações acaloradas que se seguiram nada tinham  a ver com a crítica ao poema em si, mas diziam respeito ao fato de se discutir se Goldsmith, enquanto  homem  branco,  tinha o direito de se apropriar de tal texto médico-legal sobre a morte de um rapaz afro-americano.

Como sou médica, tenho uma relação especial com o material lido por Kenneth Goldsmith, uma relação que  me permite indicar o que há de fundamentalmente errado com o poema. A lembrança mais viva que eu tenho de ter assistido à autópsias é o respeito silencioso que surge por  se estar presenciando a algo que é , ao mesmo tempo, cotidiano e memorável. Não se trata de algo conceitual — ou o que quer que isto signifique – , mas é  algo que suscita uma sensação visceral de uma presença ausente  ou de uma ausência presente: o ser que este corpo continha. O humor negro que inevitavelmente perpassa  o silêncio de uma sala de autópsias   deve-se à nossa incapacidade de analisar, descrever, ou traduzir esse tipo de experiência. A linguagem clínica banal dos relatórios de autópsias é sintomática. Esses relatórios conseguem  evocar a imensidade do ser  ausente unicamente na medida em que  falham inteiramente em fazê-lo.

Numa declaração que apareceu no Facebook, respondendo à controvérsia, Goldsmith escreve: “Eu alterei o texto em prol do efeito poético; traduzi para o inglês corrente muitos dos termos médicos obscuros que teriam interrompido o seu fluir; narrativizei-o  de uma forma que o tornasse mais literário e menos didático”. O que é irônico é que Goldsmith pratica aqui o que ele chama de “escrita não criativa”, ele escreve  especificamente o que se costumou chamar de poesia conceitual, ou seja, um tipo de poesia em que o poeta  não estaria compondo um poema original, mas estaria , antes,  reestruturando um outro pré-existente. Em seu livro, Uncreative Writing, ele faz notar que a crítica literária Marjorie Perloff sugeriu que “devido às mudanças que a tecnologia e a Internet  acarretaram, nossa noção de gênio – enquanto figura romântica isolada – é datada.   Uma noção atualizada de gênio deveria  estar centrada no domínio e na disseminação da informação por parte do sujeito… Ela (Perloff)  afirma que  o escritor de hoje em dia, mais se parece com um programador do que com  um gênio atormentado, programador este que estaria  brilhantemente conceitualizando, construindo, executando e dando manutenção a uma máquina que escreve.”

A base maquinista da poesia conceitual presta-se à ilusão sedutora  que, por estarem associados  aos computadores que não têm vida, esses processos são – de alguma forma – ahistóricos e apolíticos. A própria Internet também, permitindo o acesso a milhões de documentos a qualquer momento, em qualquer lugar, perpetua a falácia de que eles não têm nenhuma especificidade material.  Na verdade, a informação se origina e circula no interior de circunstâncias políticas e sociais. Esquecer isso é embalar-se  com o pensamento que a fluidez e a platitude da informação na Rede  estaria, de alguma maneira, apagando o privilégio  do homem ( do macho)  branco   quanto à “ vida real”. A afirmação de Goldsmith no Facebook de que “se valeu de um documento disponível ao público, de uma tragédia americana que fora testemunhada pessoalmente (nesse caso, pelo médico que realizou a autópsia) e que  simplesmente o leu” revela  que ou ele sucumbiu à essa ilusão ou ele está falta com a verdade. Quem sabe a melhor refutação do pronunciamento do  poeta tenha sido sua própria decisão de terminar o poema com a descrição  do pênis  de Michael Brown. Um gesto castrador, que serve para mostrar que a performance “O corpo de Michael Brown” é de autoria de um macho branco,  que veste e arrasta a capa da “ não-criatividade”.

O texto e a performance de “O corpo de Michael Brown” , por parte de Goldsmith,  são problemáticos não porque ele não tenha o “ direito” de usar o texto, mas porque o uso que ele faz  desse texto é fundamentalmente falso. Não apenas ele pressupõe arrogantemente que o texto, feito um corpo morto, seja um objeto neutro que possa ser cortado e suturado sem provocar mal nenhum, mas – como uma mulher negra sugeriu no dia seguinte em nossa discussão –  ele  se arroga ao direito de poder tomar a linguagem do relatório da  autópsia em seu ( dele) próprio corpo. Ou seja, que ele pode apresentar sua tradução não como algo cheio de erros, mas como verdadeira, como uma nova linguagem: o Goldsmithese.

Ao fazer sua performance sob a imagem de Michael Brown em sua foto de formatura, Goldsmith emitiu, durante trinta minutos, uma cantoria incessante que  apagou qualquer afeto pessoal   e ele, frise-se, não permitiu nenhuma interrupção, a não ser a pausa que ele fez para ele mesmo tomar um copo de água. No entanto, apesar de seu magistral domínio do palco e do  público, ele não foi capaz de apropriar-se de forma  inteiramente  conveniente do vernáculo médico, o que, por sinal , não surpreende: a linguagem médica é complicada e acaba por excluir os que não tiveram o privilégio de aprendê-la. Assim ele ficou jogando com as palavras e até mesmo errando ao pronunciá-las. Onde Goldsmith falhou não foi nesses “erros”, que aliás  revelavam a verdade em  uma forma que o poema não  alcançava, mas na sua falta de humildade,  em sua insensibilidade quanto ao fato de  que existia algo ou alguém mais no auditório ( a presença ausente, a ausência presente no relatório da autópsia), ao lado da “ verdade” incessante de seu poema. Se ele tivesse reconhecido suas próprias limitações e a impossibilidade da apropriação que tentou, ele teria podido deixar o silêncio, a pronúncia errônea e o  plurilinguismo desempenhar um papel mais ativo em sua performance. Em lugar disso, não apenas  fomos instruídos para não interrompê-lo, mesmo se a apresentação dele se chamava  Interrupt 3, como também ele decidiu não fazer nenhuma  introdução  e não responder a nenhum comentário, no fim.

O senhor Brown é um símbolo e, como símbolo, não há dúvida que tem sido usado para uma série de intentos, mas , no final, ele  foi e é  algo mais , algo que o relatório da autópsia mostra e não pode apontar. Ele  foi um ser humano singular, um ser que já não pode falar, a não ser pelas palavras de outrem  que a ele se referem.  Goldsmith teria podido deixar ser ouvido o ser singular que foi Michael Brown,  mas, enfim, não teve a compaixão, a empatia, ou a humildade de fazê-lo. Por isso mesmo ele falhou com sua arte, falhou com seu público e falhou com Michael Brown.

Ilya Sziliak é médica do Columbia Hospital de Nova Iorque e autora de http://www.reconstructingmayakovsky.com/