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Döblin: o tigre guarani

O tigre azul é uma figura apocalíptica da mitologia dos índios guaranis. Na linguagem indígena é “jaguarový” (jaguar azul), conforme Curt Nimuendajú Unckel, que transcreveu os sons escutados diretamente dos indígenas. E O tigre azul também é o título do segundo volume de uma trilogia, escrita por Döblin, conhecida ora pelo título Das Land ohne Tod  (A terra sem morte/mal), ora Amazonas, elaborada entre 1935 e 1937, cuja publicação sofreu muitos percalços em virtude dos tempos difíceis, marcados pelo exílio do autor em 1933. Estando refugiado em Paris, foi a Bibliothèque Nationale de France o lugar que manteve Döblin mais ocupado, amenizando suas angústias com múltiplas leituras, entre as quais estavam as obras de Charlevoix, de Métraux, de Southey, todas sobre a América do Sul.

Alfred Döblin (1878-1957) foi um escritor alemão de ascendência judaica, de ideologia esquerdista e simpatizante do movimento sionista. Médico psiquiatra, dedicou, porém, seu tempo livre à literatura. Em 1910, conforme Manfred Brauneck no Autoren Lexikon, fundou com Herwarth Walden e Lothar Schreyer a revista expressionista Der Sturm. Seu primeiro sucesso literário na Alemanha ocorreu em 1915 com o romance Die drei Sprünge des Wan-lun (Os três saltos de Wang-lun), que lhe granjeou os prêmios Kleist e Fontane. Sob o pseudônimo de Linke Poot redigiu críticas ferinas às forças reacionárias da República de Weimar. Foi amigo de Bertolt Brecht, de Oskar Loerke, de Heinrich Mann.

Mas foi apenas em 1929 que Alfred Döblin se tornou conhecido internacionalmente com o romance Berlin Alexanderplatz (Berlim, Praça Alexandre). No Brasil, seu nome também é associado a este título, sobretudo, por causa da filmagem que Rainer Werner Faßbinder fez do livro. No entanto, Döblin escreveu muitas outras obras importantes em forma de romances, ensaios, contos, peças de teatro.

Embora o livro Berlin Alexanderplatz seja, de longe, o mais conhecido do grande público e o mais representativo de Döblin na história da literatura alemã como protótipo do romance moderno (romance épico, romance de montagem), o foco deste artigo recai sobre O tigre azul, ora traduzido para o português[1], uma vez que a obra se passa na América do Sul espanhola e portuguesa (de 1580 a 1640 só espanhola), num período de tempo de dois séculos, que vai da chegada dos primeiros jesuítas a São Vicente, em 1552, até sua expulsão, em 1759.

O primeiro volume da mencionada trilogia, intitulado Die Fahrt ins Land ohne Tod (A viagem à terra sem morte/mal) tematiza sobretudo a conquista do império inca, do reino dos muíscas, isto é, as odisseias de Pizarro, Quesada, Alfinger, Federmann em busca do ouro, o encontro com a lendária comunidade das amazonas/icamiabas, com o reino de Cundinamarca, com a missão de Las Casas. O segundo volume Der blaue Tiger (O tigre azul) trata da evangelização jesuítica dos índios no continente sul-americano. O terceiro volume, com o título Der neue Urwald (A nova floresta virgem), pode ser interpretado como uma contraposição entre a América selvagem e a Europa pseudocivilizada, abrindo espaço para a reflexão sobre o entendimento do que é civilização.

O tigre azul, o animal apocalíptico da mitologia indígena, “teria a aparência de um belo cão, grande mas não gigantesco, e seu pelo seria de um maravilhoso azul-celeste. Quando ele descer do céu, cantando, nem o guerreiro mais destemido escapará de sua voracidade.”[2] Presente no título do romance, ele anuncia o fim dos tempos, de muitos tempos: dos tempos indígenas, dos tempos jesuíticos e de sua utopia sul-americana, dos tempos sob o nazismo, dos nossos tempos (?). Ao longo do romance, ele é mencionado pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida, referindo-se ao grande terremoto de Lisboa de 1755, outro grande fim de tempos. E surge como actante, na figura de uma onça, prenunciando esse fim, nos arredores de uma redução, na luta feroz entre dois índios, protetores de dois padres, e a fera. Neste prenúncio, só neste prenúncio, a onça morre, mas ela/ele haverá de voltar de modo fatal e volta.

O romance começa com a chegada dos jesuítas, chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega, ao porto de São Vicente, sua subida até o planalto de Piratininga, e o primeiro contato com os colonizadores portugueses, no começo amistosos, mas logo depois francamente hostis. O pomo da discórdia são as desavenças quanto ao tratamento a ser dado aos silvícolas. Por fim, os jesuítas resolvem deixar Piratininga em companhia de um pequeno grupo de índios, “obsequiosamente” vendidos, e rumar para o sul à procura de um lugar ideal para instalar a Nova Jerusalém, a Canaã bíblica, a cidade de Deus que Santo Agostinho idealizara, e que os jesuítas têm em mente, achando possível dar-lhe concretude com índios por eles considerados “tábula rasa”, folhas de papel em branco. Esse lugar ideal, conseguem encontrar entre o rio Paraná e o rio Iguaçu, numa Mesopotâmia subtropical, chamada Guaíra, que significa esconderijo, lugar intransponível, de difícil acesso, uma região coberta de araucárias, ao sul de onde hoje se localiza a represa de Itaipu. A paisagem que surge aos olhos dos religiosos é, em suas próprias palavras, o vale de Canaã, a terra prometida. A fertilidade do solo e a amenidade do clima fazem do local um objeto de incessante admiração por parte dos missionários. A flora local, no romance döbliniano, compõe-se de cedros, pinheiros, abetos, palmeiras de tâmaras amargas, aqui há mel e cera em abundância. É uma terra abençoada no olhar dos padres. O solo dá de tudo. Lá plantam laranjeiras, cana-de-açúcar, mandioca, milho. O gado abunda, alimentado por pasto farto. É como se fosse a um só tempo um “locus amoenus” e bucólico, ou seja, uma versão do paraíso terrestre, embora o primeiro contato com os índios livres do cacique Parayata não tenha correspondido ao esperado. Contudo, a utopia existente no imaginário destes primeiros jesuítas não cede.

Tanto os missionários quanto os colonizadores configuram não apenas religiosos e homens profanos em busca de uma utopia, eles encarnam o indivíduo europeu que, não contente com as realizações alcançadas por sua civilização, procura no final da época renascentista um mundo melhor. No romance, o novo mundo dos colonizadores tem futuro; o dos jesuítas não. No século XVIII haverão de ser expulsos do território sul-americano e seu grandioso experimento social, cultural, econômico será aniquilado por terem perseguido um ideal de liberdade contrário ao dos colonizadores. Talvez tenham sido um espelho para Döblin, também ele expulso em 1933 por não se encaixar nos requisitos raciais e ideológicos do regime de Hitler.

Ao fazer uso estético dos fatos históricos referentes a Manuel da Nóbrega, Döblin constrói a figura do jesuíta como um buscador do céu na terra, um céu capaz de oferecer sublimação para as desilusões do homem profano, do guerreiro, do capitão espanhol. Constrói o escritor a personagem de modo a dar corpo a um problema existencial desde sempre humano e, para isso, não hesita em ignorar por completo a real biografia do missionário. Os motivos pessoais que, no romance, levam Manuel da Nóbrega à Companhia de Jesus e ao Brasil são inseridos, todavia, num contexto histórico, quer dizer,  as circunstâncias reinantes na Europa daquela época são verídicas. Diz o texto:

No Norte, do outro lado do grande oceano, na Espanha, Itália, Alemanha, haviam surgido congregações, aflitas que estavam com o destino da humanidade. Havia muitas guerras. Os homens brancos não estavam felizes. Padeciam de grande desassossego interior e não encontravam nenhum objetivo na vida. Guerras e mais guerras dilaceravam-nos. Já lhes haviam construído uma pátria acima do mundo e ensinado ininterruptamente em mil igrejas: após a morte sereis salvos, segui os mandamentos que vos ensinamos e que foram enviados por Deus. Eles não se apaziguaram.

Era essa a grande miséria dos povos brancos que inundavam o mundo inteiro com suas vitórias e descobertas. De onde haveria de surgir a paz, a amizade, o amor?

Tão desventuradas estavam as pessoas brancas que as irmandades começaram a preocupar-se. Dos seres humanos a salvação não pode vir; então, só poderá haver ajuda, se unirmos mais estreitamente as pessoas ao Deus eterno no longínquo céu sem fim. É preciso tomar outro caminho; é preciso.

E eles começaram um trabalho difícil; primeiramente, viveram afastados dos outros em conventos, depois, passaram a viver em meio às pessoas.

Uma irmandade piedosa veio a chamar-se Guerreiros de Jesus. Era constituída de muitos jovens que desejavam uma vida nova. Eles misturavam-se com o povo. Alguns deles embarcaram nas caravelas em Cádiz. Viajaram para as terras das gentes de cor. (Trad. Ribeiro-de-Sousa).

O trecho acima mostra que os homens, inclusive aqueles da Companhia de Jesus, à qual Manuel da Nóbrega passa a pertencer, procuram na América um outro mundo, uma vida nova, onde imaginam haja paz. A concretização temporária desses anelos acontece em território sul-americano, cuja paisagem maravilhosa funciona como um sinal confirmador da veracidade da pressuposição das personagens, à exceção do jovem e inexperiente jesuíta Mariana, que teme o calor dessas paragens, fazendo ecoar em sua voz as crenças na impossibilidade do desenvolvimento de civilizações nos trópicos, crenças essas que haveriam de ser mais tarde sistematizadas por Montesquieu em O Espírito das Leis (L’esprit des lois), de 1748.

A temática da busca da paz num território inexplorado, onde a natureza é exuberante e virgem, insere-se, por sua vez, em uma problemática mais ampla trabalhada por Alfred Döblin em outros textos, nos quais procura entender o conceito de Natureza e de Deus. Trata-se de conceitos herdados dos pais judeus, mas que ele continua interrogando e que o acabarão por levar, já nos USA, à sua conversão à fé católica em 1941, curiosamente pelas mãos de jesuítas.

O homem döbliniano, representado por Manuel da Nóbrega é um indivíduo à procura da totalidade, da plenitude do ser. Enquanto os missionários jesuítas trabalham com afinco na edificação da Nova Jerusalém, da Cidade de Deus (entenda-se reduções/missões), onde os ensinamentos de Jesus deverão ser colocados em prática, a maioria deles acredita poder atingir o estado de beatitude na terra, embora haja de permeio angústias e dúvidas. Na sua Canaã constroem casas, igrejas, plantam os campos, domesticam animais selvagens, celebram missas, batizam e catequizam os índios, que a isso se entregam. Todavia, não são todos os índios que se submetem de bom grado à evangelização; há as tribos que permanecem resistentes ao novo Deus. Aos que aderem aos jesuítas, é distribuído trabalho. Os bens recolhidos são repartidos igualitariamente, segundo as necessidades de cada um. Tudo no dia-a-dia dos aldeamentos é disciplinado. Mais tarde, depois da destruição de Guaíra, e já na região do Tape, numa segunda fase das missões sob a tutela do padre Montoya, “o excedente era comercializado e, daí, era tirada a quantia destinada ao tributo, à compra das armas necessárias, do metal, do ouro, da prata, com que decoravam as igrejas.” (Trad. Ribeiro-de-Sousa). Com isso, os índios sentem-se protegidos dos ataques dos colonizadores. Os alimentos nunca faltam. Os missionários comandam tudo, sabem, porém, delegar aos índios capazes a administração dos aldeamentos, através da criação de vários cargos e funções. Ensinam-nos inclusive a escrever:

ENQUANTO os últimos jesuítas ainda se encontravam a bordo do galeão, os índios de São Luís escreveram para Buenos Aires, para o Marquês Bucareli:

“Corregedor Peredo e Pantaleo Coyuari escreveram-nos acerca de uns pássaros que eles desejariam mandar ao rei de Espanha. Lamentamos não poder fornecê-los. Esses pássaros vivem nas florestas, como Deus os criou, e fogem de nós de modo que não conseguimos capturá-los. Mas nem por isso somos súditos menos devotados do rei. (Trad. Ribeiro-de-Sousa).

De tal forma esse trabalho missionário é exitoso que suscita inveja e cobiça ao seu redor, levando o próprio governador em Assunção, Don Álvar, ao seguinte comentário: “Senhores, Senhores, o que é que me estão pedindo? Os Senhores, sempre tão sensatos, como é que me vêm com essa agora? Não é possível isolarem-se assim. Até parece que querem criar um Estado dentro do Estado.” (Trad. Ribeiro-de-Sousa). E mais tarde, o próprio bispo de Assunção, de nome Felix no romance, durante uma visita a Yapeyú, a “capital”, não consegue se eximir da observação: “Eu estou sendo aqui recebido por uma força militar como se estivesse num verdadeiro Estado.” (Trad. Ribeiro-de-Sousa). “A fama da república cristã tinha-se espalhado. Ora com medo, ora entusiasmadas, as pessoas falavam do comunismo, que os jesuítas tinham implantado na Nova Índia”. (Trad. Ribeiro-de-Sousa).

Döblin está bem informado dos fatos históricos que pesquisara na Biblioteca de Paris. Desta perspectiva, o romance até poderia até certo ponto ser interpretado como romance histórico, mas isso não é possível, porque não corresponde aos ditames do próprio autor, que, por exemplo, afirma no ensaio “Der historische Roman und wir” (O romance histórico e nós), de 1936, o seguinte:

 

Todo o romance necessita de um fundo de fatos reais (p.159).

[…]

O romance histórico é, em primeiro lugar, um romance; em segundo lugar, não é história (p. 167).

[…]

O romance desfigura a história, sim, falsifica-a, deturpa-a (p. 168).

[…]

Uma vez que o emigrante tem falta do presente, seu desejo é encontrar paralelos históricos, localizar-se historicamente, justificar a necessidade das recordações, a tendência para consolar-se e para vingar-se, pelo menos de modo imaginário (p. 183).[3]

 

 

Alfred Döblin afasta-se do sentido da história inerente ao século XIX, isto é, do “historismo”, se entendermos, de um modo simples, que “historismo” significa afundar-se no passado e esquecer o presente. Isto Döblin recusa. Döblin não só se afasta do “historismo”; ele vai além da própria historicidade (Geschichtlichkeit) ao não se deixar limitar pelos contextos de épocas. Döblin não se fixa no contexto histórico de seu romance, mas leva para dentro desse contexto, desse recorte temporal, a vida multifacetada comum a todos os seres humanos, a exemplaridade da existência, o que explode os limites sugeridos, tornando a narrativa, por isso mesmo, atemporal e portadora de significado em qualquer época e, portanto, épica. O objetivo de Döblin é aprofundar a história, atribuindo-lhe alternativas para o presente. Em O tigre azul, trata-se do questionamento não só do conceito de civilização, mas de toda a civilização europeia, tanto à época do Renascimento, quanto ao tempo de Hitler, quanto ao momento de cada leitura do romance. Ou seja, Döblin propõe a atualização contínua da história no presente. Diz o escritor que há áreas e aspectos essenciais da história que, embora digam respeito ao ser humano, são comumente negligenciados.

Döblin move-se, assim, entre os dados da macrohistória e suas próprias criações microhistóricas, inventando uma urdidura literária inovadora, uma técnica de montagem tanto no nível da perspectiva, quanto no plano da ação, do espaço, do tempo, da linguagem. Técnica essa trabalhada nos vários ensaios de sua autoria. Um passo “revolucionário” reconhecido por Franz Kafka, por Robert Musil, por Bertolt Brecht, por Günter Grass que a ele se referiu como seu mestre. Walter Benjamin também sobre ele se pronunciou: “sua Construção da obra épica é uma contribuição exemplar e um documento da crise do romance que se instaura com a reabilitação da literatura épica.[4] Jorge Luís Borges assim se referiu a Döblin: “es el escritor más versátil de nuestro tempo. Cada libro suyo […] es um mundo aparte, com su retórica y su vocabulário especiales […].[5]

No romance O tigre azul, o leitor é, no começo, levado pela perspectiva dos jesuítas em relação aos portugueses e aos índios. Esta perspectiva, porém, ao longo do romance se desloca também para a dos colonizadores, quando seus anseios mais profundos são postos a nu: “Nós não deixamos a Europa mal-afortunada para ter de novo a corja religiosa no nosso cangote.” Ou, mais adiante, quando o modo de pensar e agir dos índios é posto em evidência na voz própria de um deles, Lucas:

 

“Eles gostam de estar com os padres, Lucas?” – “Senhor, eles vivem melhor lá do que minha gente nas cidades. Nossa gente está sempre alegre quando vive junta e pode pescar junta e caçar junta. Seríamos ainda mais alegres se fossemos completamente livres.” – “Mas, nesse caso, eles não teriam os estimados padres nem as aldeias e as próprias igrejas.” – “A floresta, Senhor, e os campos.”

 

Por fim, a própria perspectiva dos jesuítas sofre alterações, ao refletirem sobre o significado da liberdade e igualdade que propõem aos índios nas missões. Não seria esse novo modus vivendi também uma forma de escravidão? Assim, Manuel da Nóbrega expressa a insegurança que acabou por se incrustar na sua fé, a princípio, inabalável:

 

“Anteriormente, se as pessoas eram agredidas, elas podiam fugir. Agora, estão sob nossa proteção. Nós as aprisionamos em um lugar. Dizemos-lhes que devem confiar em nós. E elas confiam. E isso é a parte terrível, que nos angustia. O que vai acontecer se nos puserem à prova? Amados Irmãos, nós tememos por eles. Já tivemos experiências de mais.”

 

O romance O tigre azul é dividido em cinco livros. Cada livro é, por vez, subdividido em capítulos. Embora o romance apresente um macrodesenvolvimento coerente entre a chegada dos jesuítas a São Vicente, seus choques com os portugueses, seu processo de evangelização dos silvícolas e, finalmente, o choque final que leva a sangrentos combates, à dissolução da Companhia de Jesus e ao abandono dos índios, é possível ler cada livro e muitos capítulos per se. Dito de outro modo, cada divisão encerra um texto completo em si que é possível ler e entender sem se precisar saber o que vem antes e o que virá depois. É o caso do capítulo dedicado a Manuel da Nóbrega, em que ficamos sabendo da biografia que Alfred Döblin lhe inventou. Não existe no romance a tradicional ação linear que avança em elos de causa e efeito, mas uma ação composta por quadros colocados em paralelo ou superpostos, que carregam eventos que se desenrolam em simultâneo, isto é, uma sequência que obedece a um princípio de montagem.

As personagens caracterizam-se, sobretudo, pela ausência de identidade individualizada. Elas são mais representações do pensamento e do comportamento de grupos, ou dos colonizadores, ou da Igreja, ou dos jesuítas, ou dos índios. É o papel que estes grupos representam na sociedade que está em jogo e constitui estímulo para discussão. De um lado, os colonizadores com seus interesses econômicos (capitalistas de mercado); de outro, os jesuítas, pretensos possuidores da Verdade Única, e, por último, os índios, detentores de sua própria cultura, sem entenderem os demais e sem serem entendidos, mesmo os evangelizados. A perspectiva do narrador que, a princípio, parece onisciente, é na verdade uma perspectiva indecisa, revelando simultaneamente a visão de mundo dos colonizadores, dos jesuítas e dos índios, bem como os mal-entendidos culturais resultantes do entrechoque das diversas culturas em atrito, às vezes com consequências trágicas como no caso do massacre do padre Mendoza e do afogamento do jovem e inexperiente Mariana, que, por curiosidade, toma parte numa cerimônia dedicada a Sucuriju, o espírito das águas, que o sacrifica. Entretanto, entre jesuítas e índios acaba por se estabelecer uma comunicação capaz de dar suporte a um experimento sócio-econômico-cultural inaudito.

Da perspectiva dos leitores não índios, há a considerar o efeito de estranhamento (Verfremdungseffekt) já atuante no esquema da ação que não envolve o leitor hodierno, temporal e culturalmente afastado dos séculos XVI, XVII e XVIII, quer dizer do assunto narrado. Não há, portanto, envolvimento emocional deste leitor com o conteúdo narrado, obrigando-o, com isso, a uma resposta reflexiva aos problemas ali expostos.

O tempo do romance é cronológico, expresso predominantemente pelo tempo verbal do imperfeito (Imperfktum). Como Döblin afirma em seu ensaio “A construção da obra épica” (Der Bau des epischen Werks), de 1929, o imperfeito é a expressão do relato, embora, como vulcão, o tempo presente emerja, em vários momentos, no meio do passado em processo de formatação.

O relato literário não é a mera imitação de um relato verídico, mas um relato que pressupõe um acordo tácito entre o escritor/o poeta e o leitor, acordo esse que cria, para além dos fatos históricos, uma outra esfera de existência também relatada no imperfeito: o leitor acredita no que o poeta conta, porque o que o poeta conta é um caso exemplar, que traduz fortes situações e comportamentos elementares e fundamentais do ser humano. Tais situações e comportamentos remontam ao princípio da humanidade, à origem e, neste sentido, mal se faz a diferença entre a realidade, o sonho e a fantasia. É o tempo do do mito, da eternidade. Os homens primitivos daquelas eras e os índios do romance misturam as três esferas citadas da realidade, sonho e fantasia. Hoje sabe-se, no entanto, que a diferenciação entre os conceitos apontados não é tão rígida quanto se supõe. Na verdade, cultivamos hoje um comportamento alienado em relação à natureza que Döblin identifica com o conceito de Deus ou de Fundamento Primordial. É a luta entre o homem primitivo, plenamente integrado no Cosmos, e o homem prometeico, olhando o mundo do alto de sua alienação. O romance O tigre azul é um convite para o leitor refletir sobre as crenças, as lendas e os mitos indígenas, como aqueles relativos ao espírito das águas, alegorizado sobretudo pelo rio Amazonas, e às florestas – formas elementares da natureza artificialmente separadas do homem civilizado. Em seu ensaio “A água” (Das Wasser), Döblin afirma que a água (e nós diríamos que a floresta também) é uma existência unificada e coletiva, onde todos os elementos regressam a uma anonimidade profunda. Constituem um modelo de existência indiferenciada e total que poderia servir de espelho para o homem. Desta forma, o tempo verbal do imperfeito que nos leva ao passado longínquo, nos traz simultaneamente ao presente, caracterizado pela fragmentação do homem moderno, e faz com que o leitor encontre sempre o romance in stactu naciendi, como quer Döblin.           

O espaço do romance abrange as cidades dos colonizadores, os aldeamentos dos índios (as reduções) na região de Guaíra e na região do Tape e a floresta virgem. É um espaço muitas vezes revelado através da técnica cinematográfica: por exemplo, a lente focaliza a paisagem de destruição da floresta à distância e vai-se fechando, lentamente, focalizando um espaço cada vez menor e mais próximo até entrar na fortificação dos portugueses de Piratininga e registrar o movimento urbano. A floresta virgem é construída em cima de metáforas, sinédoques e antíteses. É sinistra, desabitada, um mar verde fremente, de onde, por entre insetos, pássaros, macacos, assomam seres humanos escuros. É uma mudez saturada de línguas, uma quietude horrorosa, é a porta do inferno. É a concretização do medo dos jesuítas perante o desconhecido. A região de Guaíra, ao contrário, é idealizada e elevada a Canaã, o mundo imaginado e desejado – o espaço das citações bíblicas.

A linguagem experimentada por Döblin também é inovadora. No relacionamento do escritor com a realidade, há a preocupação constante com o modo de se chegar às coisas e, para isso, Döblin propõe uma subversão na linguagem de forma a fazer com que as coisas escoem para dentro das palavras. O uso reiterativo da parataxe em todo o romance, bem como o emprego de orações absolutas e frases às vezes muito curtas pode ilustrar e resgata, por exemplo, o chamado pensamento selvagem e supostamente infantil dos índios:

 

Os índios tinham interesse pelo ato de serrar, de encaixar, de martelar, pela construção de um telhado, pela instalação de portas e pela maior das maravilhas: pelas dobradiças de um armário. Mas esse interesse não se distinguia daquele manifestado em relação às santas doutrinas. Situava-se no mesmo plano, embora um pedido endereçado a Maria e a ação de aplainar uma viga nada tivessem em comum. Mas eles não eram dessa opinião. Isso causava uma impressão de comicidade nos brancos: a viga, a plaina e Maria misturavam-se monstruosa e burlescamente. Depois, havia as casinhas número um, número dois, número três, mas elas não eram mais casinhas e sim trechos de uma história, de uma narrativa religiosa indígena, atafulhada de plantas e animais. A marteladas associavam-se as contas de um rosário; parafusos, ao serem apertados, rangiam, chamavam; a tábua respondia, não apenas uma vez, mas sempre, e todos constatavam isso e o confirmavam. E ainda sucederam mais coisas. Era aquilo que o Padre Manuel temera e diante do que ele, por fim, capitulara. (Trad. Ribeiro-de-Sousa).

 

O que Döblin pretende em O tigre azul e, mais amplamente, na trilogia é uma espécie de ajuste de contas geral e épico com a civilização ocidental. O conceito de romance épico para Döblin pressupõe, assim, para além das características apontadas, um trabalho de renovação a focar um novo relacionamento do eu com a realidade – com a natureza e com os povos silvícolas.

Aos 70 anos, Alfred Döblin escreve no “Epílogo” (1948) que

 

raspamos até ficar em ferida nas muralhas que nos cercam. Batemos contra elas e ouvimos as nossas mãos estalar, e ouvimos como gritamos. Procuramos sair da prisão, e esse é o outro sentido da “literatura”, dessas tentativas “criadoras”, do pensamento e da poesia. (Trad. Moreno).[6]

 

[1] A autora deste texto acaba de terminar a tradução deste romance, para a qual redigiu um prefácio, e, no momento, ocupa-se com a procura de uma editora, que se interesse por sua publicação.

[2] Nimuendajú Unkel, Curt. Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apapocúva-Guaraní (As lendas da criação e destruição do mundo como fundamento da religião dos Apakokuva-Guarani). Tradução Charlotte Emmerich e Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo, Edusp, 1987.

[3] Ribeiro-de-Sousa, Celeste (org.) A construção da obra épica e outros ensaios de Alfred Döblin. Florianópolis, EUFSC, 2017.

[4] Benjamin, Walter. Crise do romance. Trad. Celeste Ribeiro-de-Sousa. In: Bolle, Willi. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo, Cultrix, 1986, p. 126.

[5] Borges, Jorge Luís. Textos cautivos. Barcelona, Tusquets, 1968, p. 196.

[6] Apud Moreno, Teolinda Gersão. Alfred Döblin: indivíduo e natureza. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1975, p. II.