(Entrevista Laurent Dubreuil a Jean-Noël Laurenti)
Laurent Dubrueil nasceu em Lyon, França, em 1973. Graduou-se na prestigiosa École Normale Supérieure de Paris e obteve dois doutorados pela Universidade de Bordeaux, em Francês, Francofonia e Literatura Comparada, e pela Universidade de Paris, em Filosofia e Estudos sobre Mulheres. Estudou com grandes eruditos franceses e internacionais como Jacques Derrida, para quem escreveu o obituário do jornal Labyrinthe, Hélène Cisoux, Umberto Eco, e Pierre Judet de la Combe. Especialmente interessado em literatura Francesa e filosofia, ele é fluente em Francês, Inglês, Alemão, Italiano, Grego clássico, Latim, Francês antigo, Espanhol, Criolo Haitiano, Yerkish (língua de símbolos para primatas), e está atualmente estudando Mandarim. Eminente professor de uma universidade de renome internacional, Cornell University, onde é diretor fundador do Laboratório de Humanidades, Dubrueil é um dos mais bem sucedidos acadêmicos contemporâneos tanto na França quanto nos Estados Unidos.
Dubreuil é autor de treze livros. Entre os ensaios acadêmicos estão obras em inglês como The Intellective Space (Minnesota UP, 2015), e Poetry and Mind (Fordham UP, 2018). Na entrevista a seguir ele discute seu último livro La Dictature des Identités (Gallimard, 2019).
Nessa obra, Laurent Dubreuil analisa o cunho determinista da identidade, a política de identidades, movimento iniciado nos EUA dos anos 1970, quando tinha por objetivo libertar os oprimidos e se opor ao capitalismo americano, e que, em sua versão atual, segundo ele, está mais empenhada na mudança de direção da dominação, disputas pelo poder e na multiplicação de restrições. Dubrueil argumenta que a identidade foi associada a um ser social coletivo ou individual prédefinido e referencial. Em meio a uma pletora crescente de identidades possíveis, fala-se em identidade rural, identidade dos alérgicos ao amendoim, identidade de obesos, e assim por diante, todas ancoradas em uma narrativa de trauma, dor e sofrimento, histórias de humilhação e risco de vida.
Dubrueil demonstra, em seu livro, como elas são definidas de antemão por um punhado de atributos, experiências, sentimentos, pensamentos supostamente comuns a um grupo dado, como determinado por seus autoproclamados porta-vozes, explicando de antemão o que nós somos, fazemos, pensamos, dizemos. Dubrueil aponta que essa política de identidades se tornou uma fraseologia (e não uma teoria política), representando a ordem social ao gosto do dia, retórica onipresente nos centros neurotizados da economia americana e mundial (universidades, mídia, setor tecnológico). Grupos identitários sem propostas coletivas de emancipação. E transformação. (Sibila)
Jean-Noël Laurenti : Em seu livro A ditadura das identidades (coleção le Débat, Gallimard, 2019), você analisou e denunciou o fenômeno da política de identidades, cada vez mais influente nos EUA, e que começa a ganhar espaço na França, como demonstrado recentemente pelo caso de As Suplicantes de Ésquilo(1), quando uma representação foi proibida sob a acusação de utilizar o “blackface”. Você pode explicar em que consiste esse fenômeno?
Laurent Dubreuil : “Política de identidades” é a minha tradução preferida da expressão inglesa identity politics, a qual foi conceituada inicialmente pelos movimentos militantes americanos dos anos 1970. Como indica a justaposição dos dois termos (identidade e política), ela se refere à reforma da prática política, fundamentando-a nas identidades particulares. A argumentação do manifesto assinado em 1977 pelo coletivo Combahee River, o qual fez circular o sintagma em questão, é bastante clara. Em vez de esperar que, por exemplo, as mulheres negras lésbicas se emancipem via a liberação de uma categoria geral (como a classe operária), seria preferível definir os problemas específicos e concretos que encontram os indivíduos em situação de opressão. Desde o começo, a política de identidades consiste então em privilegiar o particular em contraposição a um certo universalismo (aqui, no caso, o marxismo ortodoxo).
Mas, curiosamente, as primeiras formulações dessa identity politics, nos anos 1970 e começo dos anos 1980, chamam a atenção contra o risco de “fracionamento” ou de “isolacionismo” acarretado por um identitarismo excessivo. No entanto, essa última forma de política de identidades prevalece com o surgimento do “politicamente correto” nos Estados Unidos (no final dos anos 1980 e começo da década seguinte). Ela se distancia nitidamente do contexto revolucionário no qual surge o conceito, as reivindicações feitas em nome das “identidades” se fazendo ouvir de forma bastante ruidosa no debate público, nos campus universitários, mas não só. Combine-se a isso um fundo de puritanismo tradicional e a usual desconfiança em relação de todo poder central, característicos dos Estados Unidos. Em outros termos, essa segunda geração da política de identidades, por não se limitar mais às formas de militantismo revolucionário, é um produto muito americano, e pouco “exportável”. Uma profusão de críticas, tanto de direita quanto de esquerda, revelam então os impasses dessa concepção, concepção que se retira da cena pública, buscando refúgio em outros lugares estratégicos (como os fóruns da internet).
O momento atual de nossa política de identidades mantém laços simbólicos e concretos com essas épocas anteriores, ainda que a situação atual seja completamente diferente: as categorias identitárias foram consideravelmente ampliadas, o “foco” americano não é nada mais que circunstancial (a dita política assume repentinamente uma forma globalizada), a oposição se enfraquece.
O primeiro aspecto daquilo que eu chamo política de identidades 2.0, tal qual ela é configurada e mantida pela lógica das redes sociais eletrônicas, consiste na definição de que cada identidade existe por uma mágoa, um “trauma”, uma opressão, uma “vitimização”. Assim, a identidade política torna-se indissociável de uma ferida obrigatoriamente incurável, sob pena de desaparecimento ou de renúncia de si. Em outros termos, a afirmação identitária contemporânea, da forma como ela é mantida, está condenada a perder sua finalidade emancipatória. A perspectiva de uma liberação é assim um simples simulacro, passando-se a um nível de determinismo social e (frequentemente) quase genético. A questão não é mais quem eu sou ou quem eu possa vir a ser, mas o que eu sou, cada identidade sendo definida em avanço por um punhado de atributos, experiências, sentimentos, pensamentos supostamente comuns a um grupo dado, como determinado por seus porta-vozes autoproclamados.
Um outro aspecto crucial consiste na incessante proliferação de novas identidades, ainda a serem descobertas – o que simboliza este sinal + na litania de iniciais de sexualidades ditas não-normativas: LGTBQIA+. Vemos aparecer as identidades as mais surpreendentes: “identidade” de loira, “identidade de primeiro filho da família a fazer estudos superiores” (first generation), etc. A tendência é uma transcrição de toda realidade coletiva e privada em uma identidade que explicará de antemão o que nós somos, fazemos, pensamos, dizemos.
Uma terceira característica, absolutamente essencial, é que a reivindicação política da identidade não é mais exclusiva do militantismo de extrema esquerda ou das minorias. O identitarismo torna-se ditatorial precisamente porque agora ele é tanto de direita quanto de esquerda, e sua abordagem se impõe pouco a pouco como a única forma (indiscutível) de debate político. A repentina emoção francesa em prol da identidade nacional faz parte do mesmo movimento. Idem para a parcela do trumpismo que se baseia numa descrição da identidade branca heterosexual que se pretende vítima de uma confederação de “minorias” a eles antagonista.
Uma última especificidade da nossa identity politics consiste no desejo profundo de censura, de interdição feita em nome do que eu chamo as “identidades magoadas”. O terreno eletrônico é o meio adequado para essas iniciativas de silenciamento, com seus rituais de denúncias indignadas, suas demandas de cancelamento ou de desculpas públicas, suas milícias digitais incitando a uma vingança simbólica ou real, seus boatos superdimensionados (o buzz). Essas formas de ação se transferem à velocidade da informação nas redes eletrônicas, e as identidades reconfiguradas, consequentemente, não são mais americanas que francesas. O principal lugar de produção identitária são os Estados Unidos, mas a lógica é adotada em vários continentes e se desenvolve de acordo com particularidades locais.
O trumpismo é um identiramismo
Jean-Noël Laurenti : A política de identidades é uma forma extrema de comunitarismo, relacionada aos fenômenos sócio-econômicos das últimas décadas. Quais analogias se podem estabelecer entre ela e o capitalismo ultraliberal financeirizado? Como os gigantes da web a servem e tiram vantagem dela?
Laurent Dubreuil : Para começar, eu não diria que a política de identidades atual é uma forma extrema de comunitarismo. A forma extrema de identitarismo irá mesmo dissolver as comunidades, as quais acabarão por serem suspeitas de uma heterogeneidade culpável. Nos safe spaces – esses lugares seguros e protegidos para que os membros de uma tal ou tal identidade se encontrem em toda confiança – algumas proposições serão banidas a priori de acordo com as regras “evidentes” da não-agressão. Num lugar parecido, certos indivíduos, apesar de compartilharem uma tal identidade, poderão ser repentinamente considerados seus piores inimigos. Para dar um exemplo de algo que eu não falo em meu livro, certas militantes lésbicas “radicais” são atualmente denunciadas como transfóbicas por outras ativistas LGBT. O fracionamento identitário só reforça as comunidades organizadas num primeiro momento. A próxima etapa será a atomização dos sujeitos reificados de antemão nos personagens oficiais das identidades estandardizadas as quais eles devem integrar.
Tudo isto está evidentemente relacionado à arregimentação da vida produzida atualmente pelo capitalismo globalizado, comunicacional e tecnológico. As redes sociais intimam cada um a se identificar em permanência e agir apropriadamente de acordo. Tendo em vista o tipo de algoritmos utilizados pelas empresas comerciais da rede, o interesse reside em reprogramar o indivíduo de uma forma bastante simples, para em seguida oferecer os produtos que sua identidade teria necessidade. A política de identidades dos anos 1970 a 1990 praticamente não tinha acesso à Web, mas a nova forma está particularmente adaptada ao sistema de enquadramento da palavra e dos comportamentos públicos, como promovido pelo Facebook, por exemplo. Some-se a isso a escolha, na internet, do solilóquio ou do monólogo como modos privilegiados de intervenção, assim como a lógica de rebanho que constituem as listas de followers, seja (literalmente) o conjunto de seguidores. Enfim, é hoje em dia notório publicamente que a gestão dos alertas de informações, as notificações, os updates foram deliberadamente criados para manipular os mecanismos psíquicos do “sistema de recompensa cerebral”, descritos pela psicologia experimental, particularmente no caso do estudo do vício. Eu acrescentaria ainda que os estudos disponíveis sobre o efeito psíquico da imersão cotidiana (mais de três horas por dia) nas redes sociais demonstram que a depressão e a agressão tendem a piorar. Isso, eu acho, não foi pesquisado diretamente pelos gigantes da web, mas este mal-estar generalizado só pode alimentar o círculo vicioso das identidades fundadas sobre a mágoa.
Jean-Noël Laurenti : Você acha que a União Europeia, por causa do enfraquecimento dos Estados-Nação, seja um terreno favorável, ver cúmplice, a ascensão da política de identidades?
Laurent Dubreuil : Em nível mundial, pode-se sem dúvida interpretar a expansão das identidades como uma tentativa de reorganização política em grande escala, uma disputa de poder. Vivemos cada vez mais em dois planos: um eletrônico, interconectado, globalizado; o outro, é o âmbito de exercício do poder local (nação, confederação, união). A percolação do nível globalizado ao nível local, é um efeito que vai ganhar cada vez mais importância. Nesse contexto, podemos imaginar um retorno dos Estados-nação, mas reestruturados a partir da lógica identitária, o que não é um bom presságio. A fundamentação teórica e prática da União Europeia em sua forma atual é eminentemente compatível com uma identitarização generalizada, com alguns elementos de cores locais para manter o folclórico. Não se deve jamais esquecer que a realidade da política de identidades contemporânea está no aumento do controle absoluto sobre todos os aspectos da vida, esse objetivo não é estranho à estrutura burocrática, e, portanto, antidemocrática, da União.
Jean-Noël Laurenti : É de bom tom dizer que a humanidade vive uma época completamente nova, em razão do que os instrumentos de análise que se conheciam até aqui estão superados. Pode-se realmente dizer que a ideologia da política de identidades representa uma corrente radicalmente nova?
Laurent Dubreuil : Por um lado, como eu disse no A ditadura das identidades, e em associação com a argumentação que eu avancei anteriormente em A recusa da política, o que nós conhecemos hoje não é nada além que a atualização do pior da política, que não data de hoje: a identificação de amigos e inimigos, as reificações dos indivíduos e dos grupos em função de motivações partidárias, o controle extremo de corpos e almas, a distribuição arbitrária de benesses e direitos, etc. As inovações na política de identidades do século vinte-e-um são relativas, e de forma nenhuma absolutas. Mas a massificação da política identitária, sua capacidade a afetar, igualmente, posições reputadas de modo radical diferentes no eixo direita-esquerda, sua extraordinária penetração nos espíritos interconectados, são fenômenos de uma magnitude e de uma urgência bastante inéditas.
Jean-Noël Laurenti : Para ReSPUBLICA o combate pela laicidade está estreitamente ligado ao combate social. Que relações você estabeleceria entre a emergência da política de identidades e o questionamento da laicidade?
Laurent Dubreuil : Nós tocamos aqui nas variações locais (e sobretudo francesas) da política de identidades. A discriminação das populações originárias da África do Norte, a desconfiança em relação a uma prática “visível” do Islão, são inegáveis na França. Mas a partir do momento onde o muçulmano se torna uma identidade magoada no sentido contemporâneo (implicando, na prática, na defesa costumeira contra a “islamofobia”), criamos uma categoria operativa a qual, como toda outra identidade proclamada, impedirá o combate social efetivo pela igualdade, em benefício de uma manutenção paradoxal da estigmatização, a qual deverá ser “compensada” pela obtenção de salvo-condutos ou favores particulares. O contexto mundial do islamismo aproveitará de bom grado desse mecanismo para se organizar. Ao mesmo tempo, nós assistiremos à reivindicação das “raízes cristãs” da Europa (como se a Europa não existisse antes do batismo de Clóvis), e assim sucessivamente.
O identitarismo, portanto, não é obrigatoriamente religioso, mesmo se ele oferece uma oportunidade estratégica para transformar uma fé (obrigatoriamente pessoal) e uma instituição cultual (por definição coletiva) em expressões de uma identidade religiosa distinta. Isso dito, o elogio profilático de uma identidade “bastarda”, “judaico-grega” contra a identidade islâmica, como Philippe Val em Esconda essa identidade que não consigo ver, me parece igualmente inadequado. Ou, de forma similar, opor à identidade muçulmana uma “identidade francesa”, a qual seria fundada sobre a laicidade, seria fazer um erro bastante grosseiro, e entrar num jogo perigoso, porque, repito, as identidades não são passíveis de questionamento. Os programas políticos, em revanche, são. Eu gostaria, desse ponto de vista, que a laicidade na França não fosse nem um traço identitário, nem uma relíquia do passado, nem uma lei da qual se anuncia a data fatídica (1905 ! 1905 !), como se repetiria o ano de nascimento de Jesus ou o de Hégira, mas antes um projeto, sempre vivo, inacabado.
Jean-Noël Laurenti : Qual é o comportamento dos intelectuais em relação à política de identidades? O questionamento do universalismo, acusado de ter sido a justificativa ideológica do colonialismo, não resulta em um relativismo generalizado, o qual permite justificar o comunitarismo?
Laurent Dubreuil : O universalismo foi com muita frequência um particularismo grandiloquente: o universalismo que “esquece” as mulheres na promulgação de seus direitos, o universalismo que mantém a escravatura ou propõe a segregação, etc. No império colonial francês, o universalismo oficial se acomodou com uma miríade de exceções, rejeitando a quase totalidade de seus “autóctones”, recusando-lhes a cidadania. Mesmo depois de 1962, “o universalismo à francesa” (o que, em si mesmo, é uma expressão bastante curiosa) que criou os “empregos reservados” para os Harkis e seus descendentes, tratou durante muito tempo os habitantes do DOM-TOM diferentemente, favorecendo sua instalação na metrópole para trabalharem em empregos medíocres. Os exemplos são numerosos, o que prova que a lenda de um universalismo sem falhas não somente é inexata, mas que ela também permitiu tratamentos diferenciados. Pode-se então fazer uma crítica fundamentada do universalismo sob dois ângulos: por um lado, a doutrina não esteve quase jamais a altura de suas alegações; por outro lado, sua instrumentalização do conceito de universal culminou, mais cedo ou mais tarde, em uma erradicação das experiências não-conformes. Eu concordo com essa crítica.
Contudo, a equação: república = universalismo = colonialismo = racismo, que está implícita no indigenismo atual é falsa, escandalosa. O colonialismo e o racismo são maravilhosamente compatíveis com vários regimes. A República Francesa, entre o final do século dezenove e a Segunda Guerra Mundial, abandona amplamente a doutrina da assimilação (universalista) para suas colônias, e favorece o que Lyautey nomeia o “desenvolvimento separado”. Os indigenistas recuperam o mito universalista, ignorando seus obstáculos e suas contradições, tal qual ele lhes foi legado pelos arautos da República. É tão surpreendente assim? Afinal de contas, o identitarismo, como o universalismo, tem a irritante tendência a extrapolar a partir de um caso particular. Pelo menos o universalismo pode ser ampliado pela reivindicação extrema de sua lógica aparente – enquanto que a exacerbação do particularismo resultou em uma ostentação inflexível do específico.
Para mim, então, a crítica do universalismo deve se aplicar integralmente a crítica do identitarismo. Por outro lado, nós não devemos renunciar a “falar mal” da República colonialista, sob o pretexto de que o argumento poderia em seguida ser reciclado pelo “campo adverso”. Obedecer a essas incitações partidárias não permitirá nenhum diálogo intelectual, nenhuma proposição de pensamento. Enfim, que fique claro que o regime atual e futuro de identidades autoritárias não é relativista porque ele insiste obstinadamente na distinção entre bons e maus, vítimas e culpados, oradores autorizados e malvados a censurar.
Webjornal francês ReSPUBLICA.
Segunda-feira, 25 de novembro de 2019.