Graciliano Ramos
O velho Beaumarchais,[2] apesar das encrencas em que andou metido, foi mais feliz que Oswald de Andrade. Pôs o conde Almaviva no Teatro — e Almaviva comprou camarote e bateu palmas a todos os horrores que Fígaro disse dos sujeitos graúdos do fim do século XVIII.
Agora a coisa mudou. Oswald de Andrade é uma espécie de Beaumarchais brasileiro, mas estes últimos 150 anos fizeram um rebuliço no mundo — e o escritor revolucionário não conta com os aplausos da classe que ataca. Almaviva aplaudiu as inconveniências do barbeiro porque o supôs um pobre-diabo, mas Fígaro mostrou as unhas em 1789, e Almaviva encolheu-se.
As peças de teatro que Oswald de Andrade agora apresenta em volume[3] são dois botes medonhos: o primeiro aos arcaísmos, todos os gêneros de arcaísmos;[4] o segundo à exploração comercial e instituições anexas, entre as quais avulta o casamento, “a good business”, na opinião dum americano que entra em cena para dizer esta frase. Oswald de Andrade pretende acabar os arcaísmos com fogo, remédio certamente eficaz também contra os males que enchem a segunda peça.
Enquanto não se aplica esse tratamento enérgico, uma família secular, bandeirante e encalacrada, tira-se de dificuldades como pode, aproveita a habilidade das meninas, que adquirem fama em apartamentos e hotéis, e um homem de negócios, não aguentando a concorrência, mete o pé no buraco e uma bala no peito. Good business. Podia ser melhor, porque aí houve uma perturbação, e isto é inconveniente para a ordem. Mas também podia ser pior, se a fortuna de Abelardo I fosse dividida entre muitos Abelardos. Não foi: passou tudo para as mãos de Abelardo II, o dinheiro e a noiva, com alegria da família secular e bandeirante, que se desencalacrou, e aprovação do americano.[5] Good business.
As mercadorias humanas que circulam nesse negócio são interessantes: há a mulher que não é mulher e o homem que não é homem, o literato que dança na corda bamba com medo de avançar ou recuar, a polaca que se tornou importante e virou polonesa, a sogra que não é de ferro, o sujeito que recebe dinheiro para organizar milícias, gente esfolada, completamente sem pele, e que ainda querem continuar a esfolar, como se isso fosse possível.
A primeira peça de Oswald de Andrade não poderia ir à cena, porque muito poucos a entenderiam. E a parte mais clara descontentaria as pessoas honestas, que o autor conhece tão bem.[6] Provavelmente a segunda peça também não será representada.[7] Há nela coisas abomináveis. “Sou uma fracassada.”[8] Totó e outros semelhantes não gostariam de ouvir essas indiscrições.
Não faz mal. Nós as leremos — e talvez isto seja melhor que ouvi-las.
RAMOS, Graciliano. “O teatro de Oswald de Andrade”. Excerto de: SALLA, Thiago Mio & LEBENSZTAYN, Ieda (orgs.). O antimodernista: Graciliano Ramos e 1922. Rio de Janeiro: Record, 2022.
Notas:
O teatro de Oswald de Andrade
[1] “O teatro de Oswald de Andrade”. Surto, Belo Horizonte, n. 8, set. 1937. Ainda em periódico, crônica publicada em Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 2 dez. 1939, ano 3, n. 127, p. 59. Texto reunido em Linhas tortas. 1. ed. São Paulo: Martins, 1962, pp. 169-170; 21 ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 236-238.
[2] Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (Paris, 1732 – Paris, 1799) foi um polímata francês que se notabilizou, como dramaturgo, pela autoria da chamada “trilogia de Fígaro”: O barbeiro de Sevilha (1775), As bodas de Fígaro (1784) e A mãe culpada (1792).
[3] Trata-se de volume publicado em 1937 pela José Olympio que reunia as peças A morta e O rei da vela. A fonte do texto aqui é a publicação em Dom Casmurro, em que a palavra volume está devidamente no singular; em Linhas tortas, no plural.
[4] Em Dom Casmurro, não há o aposto com a repetição “um mundo de arcaísmos”, presente em Linhas tortas.
[5] Referência ao enredo da peça O rei da vela, que tem como protagonista o agiota Aberlardo I, sócio de Abelardo II no escritório Abelardo & Abelardo.
[6] Tem-se notícia da montagem de A morta apenas na primeira metade da década de 1970, feita no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, em 1974, sob a direção de Emilio Di Biasi.
[7] A peça O rei da vela viria a ser encenada apenas trinta anos depois (sua estreia aconteceu em setembro de 1967), em montagem realizada pelo Teatro Oficina de São Paulo, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.
[8] Na peça O rei da vela, trata-se de uma espécie de bordão proferido pelo personagem Totó Fruta-do-Conde, irmão homossexual de Heloísa de Lesbos, noiva de Abelardo I.