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Machado de Assis, 1939

Talvez eu não devesse escrever sobre Machado de Assis nestas celebrações de centenário… Tenho pelo gênio dele uma enorme admiração, pela obra dele um fervoroso culto, mas. Eu pergunto, leitor, pra que respondas ao segredo da tua consciência; amas Machado de Assis?… E esta inquietação me melancoliza.

Acontece isso da gente ter às vezes por um grande homem a maior admiração, o maior culto, e não o poder amar. Ama-se o Dante menos genial da Vita Nuova, mas me parece impossível a gente amar o Dante mais velho e genialíssimo que compôs o “Inferno”. Ama-se Camões, adora-se Antônio Nobre, mas é impossível amar Vieira. Gonçalves Dias, Castro Alves, Euclides da Cunha são outros tantos grandes artistas que, além de admirar, nós amamos também. Nestes casos felizes, a admiração, o culto, coincide com o amor. Há estima e camaradagem irmanadas.

Porque em certos artistas, pela vida e pelas obras que deixaram, perpassam dons humanos mais generosos em que o nosso indivíduo se reconforta, se perdoa, se fortalece. A própria infelicidade, a própria desgraça amarradas à existência de um artista, não podem, ao meu sentir, serem motivos de amor. Todos os seres somos fundamentalmente infelizes, e é preciso não esquecer que psicologicamente, em oitenta por cento dos artistas verdadeiros, o próprio fato de serem eles artistas é uma definição de infelicidade. Amor que nasça de piedade nem é amor e nem exalta, deprime. E sobra ainda lembrar que certas desgraças não o são exatamente. Nascem do nosso orgulho; nascem de uma certa espécie de pudor muito confundível com ambições falsas e com o respeito humano. Estou me referindo, por exemplo, a preconceitos de raça ou de classe.

E aos artistas a que faltem esses dons de generosidade, a confiança na vida e no homem, a esperança, me parece impossível amar. A perfeição, a grandeza da arte é insuficiente para que um culto se totalize tomando todas as forças do crente. Sabes a diferença entre a caridade católica e o livre exame protestante?… A um Machado de Assis só se pode cultuar protestantemente.

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Com raríssimas exceções, e já passaram por minhas preocupações várias dezenas de almas moças, só vi o culto por Machado de Assis principiar depois dos trinta anos. Não que os moços o ignorem, mas quando lhes falamos nele, fazem um silêncio constrangido e concordam muito longínquos e desamparados. As exceções existem pelo simples fato de existirem moços que aos vinte anos já têm trinta, já têm quarenta e mesmo mais meticulosas idades. Para se cultuar Machado de Assis, há que ser meticuloso…

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Mas Machado de Assis foi um gênio. Forte prova disso, dentro de uma obra tão conceptivamente nítida e de poucos princípios, está na multiplicidade de interpretações a que ela se sujeita. Não me sai da ideia um ilustre representante da República me contando que relera na véspera o Dom Casmurro e encontrara desta vez, não o imoralista, ou melhor, o amoralista de que estava lembrado, mas um moralista castigador. E, no livro, a defesa perfeitamente moral do princípio do casamento.

Aliás, Astrojildo Pereira veio recentemente acentuar essa afirmativa muito duvidosa, provando que Machado de Assis defendeu o princípio da família e da estabilidade do lar, censurando sempre em seus livros, e às vezes irritadamente, o “casamento de conveniência”. Era partidário do casamento por amor. No que, aliás, Machado de Assis era exatamente um representante dos interesses burgueses do Segundo Reinado, como provou Astrojildo Pereira no seu habilíssimo artigo.

Mas preferi confirmar a genialidade de Machado de Assis por esse mesmo excelente número da Revista do Brasil em que saiu o estudo acima citado. Milietas de interpretações distintas para uma só divindade. Só os gênios verdadeiros se prestam a este jogo dos interesses e das vadiações humanas. São tudo, aristocráticos, burgueses, populistas. Morais, imorais e amorais. E todos eles, em geral, acabam fatalmente profetizando a vinda do submarino, do aeroplano e de algum cometa novo.

Quanto ao nosso admirável Machado de Assis, estou agora recordando aquela frase de Cervantes descrevendo um “colchón que en lo sutil parecía colcha”. Gênio fracamente confortável e pouco generoso, talvez seja preferível não o interpretar por demais. Em todo caso me parece indispensável que não lhe atribuam a profecia do avião nem do submarino. Lhe bastou e preferiu inventar Humanitas e nos mostrar que devemos sempre ser qualquer coisa de mais utilitário na vida, dando uma das maiores vaias que jamais sofreu o pensamento desinteressado.

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Peregrino Júnior escreveu sobre a Doença e constituição de Machado de Assis um livro de grande interesse, muito bem trabalhado. Não há dúvida nenhuma que o contista de Pussanga comprovou pelas manifestações da obra a triste enfermidade que fez de Machado de Assis um infeliz.

            A minha hesitação principal não é a respeito do livro e sim da ciência. Ou antes, do método científico. É, por exemplo, incontestável que o ritmo ternário, característico de certas enfermidades, ocorre na obra de Machado de Assis. Peregrino Júnior o prova com abundância. Mas para que essa prova prove alguma coisa, não seria indispensável a aplicação de métodos comparativos e estatísticos? Seria preciso examinar também as vezes em que o escritor empregou o ritmo binário e as vezes em que bordou o substantivo apenas com um qualificativo. Só então, pela maior ou menor ocorrência de cada ritmo, seria possível interpretar mais sossegadamente. Já, porém, a respeito do recalque de nomes femininos, não vejo necessidade de estatísticas nem de comparações. O caso é tão excepcional que prova só por si, e o que Peregrino Júnior descobriu me parece de interesse vasto.

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O caso dos olhos. Ainda foi o sr. Peregrino Júnior quem primeiro levantou esta lebre, mostrando com fartura que Machado de Assis não só tinha obsessão pelos braços femininos, como pelos olhos femininos também. Preocupação que culmina com o genial achado dos “olhos de ressaca” da Capitu.

Ora, aqui, mais que tudo, me parece indispensável a aplicação do método comparativo, e indispensável também distinguir. Antes de mais nada, descrever olhos e olhares é preocupação universal. E dado mesmo que a descrição de olhos compareça com enorme frequência na obra de um determinado autor, resta saber o que isso prova. Igualar essa preocupação à dos braços é que me parece impossível. Os olhos, só por si, por suas qualidades intrínsecas, não são objeto de excitação e nem mesmo objeto de maneirismos sensuais. A descrição de olhos, do que fazem e do que dizem, é elemento especialmente de ordem psicológica; e a contínua citação e descrição deles na obra de Machado de Assis não me parece provar nenhuma peculiaridade temperamental, como é o caso da preocupação pelos braços.

Ainda mais: nem se poderá afirmar que houve preocupação especial sem que primeiro submetamos o problema a diversas experiências comparativas. Assim, logo uma primeira comparação selecionadora se impõe sobre o que é lugar-comum e o que é excepcionalidade na caracterização do olhar. Positivamente não é a mesma coisa dizer de uns olhos que são “olhos de convite”, como diz Machado de Assis dos de Virgília, e falar em olhos “grandes e claros”, em “grandes e perdidos” ou “pretos e tranquilos”, imagens estas gerais, nada machadianas e pertencentes a todos os escritores.

E pois que pertencem a todos os escritores, caberia nova comparação. Ver em outros romancistas, pelo menos uma dezena deles, se não existe igual preocupação por olhos femininos. E não caberia também, dentro do próprio Machado de Assis, ver de que maneira ele trata os olhos masculinos? Só então, creio, seria possível concluir alguma coisa.

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Na obra de Machado de Assis as mulheres são piores que os homens, mais perversas. Não que os homens sejam bons, está claro, mas são mais animais, se posso me exprimir assim, mais espontâneos. As mulheres não: há em quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez, uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a entrar em ação. Talvez nisto, se possa ver ainda uma boa prova da forte sensualidade nitidamente sexual do artista.

Assim, na concepção, na exposição do problema do amor, o que interessa a Machado de Assis é muito menos o amor propriamente que o eterno feminino. As mulheres dominam a vida do homem, que sofre e se torna um destino nas mãos femininas. As mulheres são mais inteligentes, mais capazes de dar uma finalidade mais complexa à vida. As mulheres são francamente mais fortes que os homens. Estes são pobres animálculos sem mistério nem sutileza. Estúpidos. Baços. Tímidos. Ou daquela já experiente passividade do conselheiro Aires, se já passados do agudo tempo do amor. E com tudo isso não há propriamente amor. Não há embate, luta, conjugação de seres, forças, interesses iguais. Há o eterno feminino dominador. Vênus nasce do mar, salgadíssima, e a maré montante, que triunfalmente a transporta, inunda a terra dos homens. E é vê-los se debatendo, os coitadinhos. No fim, se afogam.

***

Já como lição de vida, o que mais sobra da biografia de Machado de Assis é o golpe total que ele dá na disponibilidade amorosa dos nossos românticos. Casou, viveu com uma só mulher. Marañon diria dele que foi a expressão do macho perfeito, sem nenhuma inquietação sexual, o que não parece ser a verdade verdadeira. Almir de Andrade chega a dizer de Machado de Assis que “não teve amores”. Que não tenha tido paixões é possível, mas Carolina é sempre uma expressão de amor, e das mais belas na biografia dos nossos artistas. Mais uma grande vitória de Machado de Assis, e aquilo em que ele se tornou perfeitamente expressivo da sociedade burguesa do Segundo Reinado e imagem reflexa do nosso acomodado Imperador. A escravaria, por culpa do branco e dos seus interesses, ficou entre nós como expressão do amor ilegítimo. Não só relativamente à casa-grande, mas dentro da própria senzala. Machado de Assis nem por sombra quer evocar tais imagens do sangue que também tinha. Ele simboliza o conceito do amor burguês, do amor familiar, e o sagra magnificamente. E desautoriza por completo a inquietação sexual, e mesmo a inquietação moral do artista, pela vida honestíssima que viveu.

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Pra meticuloso, meticuloso e meio. É opinião passada em julgado que Machado de Assis é o romancista da Cidade do Rio de Janeiro. O será, de alguma forma, desde que nos entendamos. Me parece indiscutível que Machado de Assis, nos seus livros, não “sentiu” o Rio de Janeiro, não nos deu o “sentimento” da cidade, o seu caráter, a sua psicologia, o seu drama irreconciliável e pessoal. Será que a cidade e o seu carioca não tinham ainda se caracterizado suficientemente então? É impossível. Esse caráter, essa irreconciliabilidade já existiam vivos, nítidos, nos tempos do Sargento de Milícias.

Machado de Assis, temperamento fracamente gozador e ainda menos amoroso da vida objetiva, tinha a meticulosidade freirática dos memorialistas: e não será à toa que a dois dos seus principais personagens fez memorialistas. Às vezes chega a ser pueril a paciência topográfica com que descreve as caminhadas dos seus personagens. Porque tomou pela rua Fulana, seguindo por esta até a esquina da rua Tal, que desceu até chegar no largo do Sicrano, etc. Esta necessidade absoluta de nomear ruas e bairros, casas de modas ou de pasto, datar com exatidão os acontecimentos da ficção, misturando-os com figuras reais e fatos históricos do tempo, se agarrando à verdade para poder andar na imaginação, me faz supor nele o memorialista. Crônicas como a sobre o Senado fortificam esta minha suposição. E, dada a sua faculdade de análise e o vingativo poder de não perdoar, que geniais memórias não teria deixado! A maior faculdade dele não era criar sobre o vivo, mas recriar o vivo. Recriar conforme à sua imagem e semelhança… Não. Machado de Assis ancorou fundo as suas obras no Rio de Janeiro histórico que viveu, mas não se preocupou de nos dar o sentido da cidade. Na estreiteza miniaturista das suas referências, na sua meticulosidade topográfica, na sua historicidade paciente, se percebe que não havia aquele sublime gosto da vida de relação, nem aquela disponibilidade imaginativa que, desleixando os dados da miniatura, penetra mais fundo nas causas intestinas, nas verdades peculiares, no eu irreconciliável de uma civilização, de uma cidade, de uma classe. Por certo há muito mais Rio nos folhetins de França Júnior ou de João do Rio, há muito mais o quid dos bairros, das classes, dos grupos, na obra de Lima Barreto ou no Cortiço. Sem datas, sem ruas e sem nomes históricos.

Mas haverá alguma utilidade em procurar no genial inventor de Brás Cubas o que ele não teve a menor intenção de nos dar! Como arte, ele foi o maior artesão que já tivemos. E esta é a sua formidável vitória e maior lição. Ele vence, ele domina tudo, pelo artista incomparável que soube ser. Tomando a sério a sua arte, Machado de Assis se aplicou em conhecê-la com uma técnica maravilhosa. É impossível se imaginar maior domínio do métier. Fonte de exemplo, fonte de experiência, treino indispensável, dador fecundo de saúde técnica. Agora, mais do que nunca, neste período de domínio do espontâneo, do falso e primário espontâneo técnico em que vivem quase todos os nossos artistas, teríamos que buscar em Machado de Assis aquela necessidade, pela qual todos os grandes técnicos são exatamente forças morais.

 

ii

Procuro sempre nos críticos de Machado de Assis alguma referência especial ao poema das Americanas que o poeta chamou de “Última jornada”. Não creio exagerar, na admiração enorme que tenho por esses versos, uma das mais belas criações do mestre e da nossa poesia.

As Americanas, como concepção lírica, são no geral muito fracas. Pertencem àquela fase de cuidadosa mediocridade, em que o gênio de Machado de Assis ainda não encontrara a sua expressão original. Aliás esse período inicial, tanto da prosa como da poesia machadiana, se caracteriza menos pela procura da personalidade que do instrumento e do material. Antes de se querer criador, Machado de Assis exigia de si mesmo tornar-se ótimo artífice. É a perfeição da linguagem que o preocupa mais. E, como notou Manuel Bandeira, no momento em que alcança uma expressão mais livre de personalidade, com as Ocidentais, porta das grandes obras, Machado de Assis abandona a poesia. À sua inteligência já formada, terrivelmente realista, à sua desilusão guardada no humorismo, à sua nenhuma ingenuidade ante os homens e a vida, a poesia mais confiante, primordialmente e por essência com os joelhos atados ao confessionário, não interessava mais. Se ainda por meio dela pôde nalguns dos amargos poemas das Ocidentais criar poesia verdadeira, não condizia já agora com as exigências da poesia, com seu não conformismo instintivo, seus apelos às forças subterrâneas do ser, seu dom de magia e de escureza criadora de fantasmas e gritos, o homem que se recusava o dom precioso da cegueira e de poder se embebedar de vida. É curioso, aliás, verificar que, com esse abandono, Machado de Assis leva a poesia até às portas do Parnasianismo e a deixa aí. Para que os outros a degenerem… Teria descoberto que, com a estética parnasiana, a poesia abandonava o melhor do seu sentido?…

Por si, não precisara do Parnasianismo para cuidar da forma e da expressão vernácula. Toda a sua primeira fase se apresenta como um longo e minucioso aprendizado técnico. Se o criador ainda hesita, o artista avança voluntarioso na sua determinação de adquirir uma técnica perfeita.

Talvez a mediocricidade geral das Americanas tenha impedido à crítica salientar a beleza altíssima de “Última jornada”. E é mesmo estranho que o poeta, numa época e dentro duma temática que só lhe deram poesias frágeis, tenha de repente alcançado tamanha força de ideação lírica e forma poética tão lapidar. Na forma, sempre é certo que ele já construía por esse tempo fortes e sonoros versos, porém nunca ele os fez mais belos e perfeitos que nesse poema. Nem mesmo nas Ocidentais.

O que primeiro ressalta, na dicção do poema, é a firme desenvoltura com que o poeta funde a tradição de uma linguagem castiça, mesmo levemente arcaizante, com a metrificação romântica. Aos acentos de quarta e oitava no decassílabo, tão preferidos pelos românticos, se intercala mais discreta a acentuação heroica na sexta sílaba, dando ao poema um movimento de grande riqueza rítmica. Nem o tambor excessivamente “heroico” do verso clássico, nem aquela sensaboria melosa que resulta da sequência de muitos versos com acentuação de quarta e oitava.

Os versos são quase todos admiráveis como beleza formal. Ricos de sons, nobres na dicção, nem preciosos nem vulgares na escolha dos termos. Percebe-se um sereno desimpedimento que não hesita em usar imagens conhecidas e lugares-comuns, desses que dão à obra-de-arte, se habilmente empregados, um sabor tradicional de boa linhagem. De tal forma Machado de Assis é hábil nisso que a sensação obtida é de uma obra clássica, no melhor sentido da concepção, em que ao casto sabor de antiguidade se ajunta um sentimento de perfeição exemplar.

A segurança com que o assunto se desenvolve é também notável. Só se poderia desejar talvez que a fala do guerreiro fosse um bocado mais curta. O morto, na sua caminhada aérea, para a “noite dos imortais pesares”, era daqueles que não agradavam muito a Machado de Assis, um derramado… No resto, a gradação da ideia me parece perfeita: um primeiro terceto fixa a noção do assunto. Mortos a esposa e o seu guerreiro, eles se vão deste mundo. Segue imediatamente a pintura do quadro, os dois seres voando, pouco a pouco se afastando um do outro. Embora tratando de índios, Machado de Assis, que já toma a liberdade de descrevê-los mortos e dotados sempre de seus corpos, adota ainda a mais nítida divisão cristã de inferno e paraíso. Veremos adiante de onde lhe nasceram estas liberdades conceptivas. Após essa descrição que é de esplêndida beleza de forma, o guerreiro inicia o seu lamento. A evocação que faz (versos de 27 a 40) é da maior beleza. Logo a seguir, apenas com um terceto, também magistral pelo apropósito com que se intercala entre a evocação e a descrição do drama que lhe segue, o poeta antecipa o fim da história. A gradação é admiravelmente adequada e nos liberta da medíocre curiosidade pelo fim do caso. A descrição, como falei, se derrama um pouco demasiadamente. Machado de Assis como que se entrega à tradição romântica de descrever. Ainda assim, e sempre entre versos lindíssimos, surgem manifestações sintéticas de descrição, perfeitamente comparáveis àquela esplêndida energia descritiva que Gonçalves Dias atingiu nas partes centrais do “I-Juca Pirama”.

Num aparente descuido, Machado de Assis faz o guerreiro dizer da esposa (versos 56 e 63) que, ao resolver voltar para a taba dos pais, tinha o rosto “carregado e triste” e ao mesmo tempo partia “leve e descuidada”. Será contradição em versos tão trabalhados? As duas imagens contraditórias são sempre psicologicamente explicáveis. Não se trata de atos simultâneos. É o rosto que “um dia” ela volve “carregado e triste” para o lado onde ficava a taba nativa, e só depois disso, um terceto intercalado imaginando as razões que a moviam, é que ela resolve partir. Fixada esta resolução, ela parte “leve e descuidada”, o rosto se lhe descarregara, a tristeza desaparecera, e ela fugia para a felicidade que a chamava.

Findo o reconto do drama surge o esplêndido final, versos realmente maravilhosos pela beleza da forma e das imagens, sem uma palavra demais, de um castiçamento rijo de expressão, tensos, perfeitíssimos. Só um “derramamento” admiravelmente expressivo: uma primeira e única vez no poema, surge o ritmo ternário dos adjetivos. Antes, quando muito dois adjetivos qualificavam a moça, “mísera e ditosa”, “fugitiva e amada”. Mas agora é a derradeira vez que o guerreiro contempla a moça já longe, quase a mergulhar na aurora. E ansioso ele se apressa em cobri-la dos valores que a elevam em seu amor desesperançado: há uma afobação em qualificar, uma incontinência desabrida, um como que pavor de esquecimento das qualidades sublimes da “doce, mimosa, virginal figura”. A incontinência de qualificativos, no caso, é de ótimo valor psicológico, um verdadeiro achado de expressão.           

O que teria levado Machado de Assis a criar esta isolada obra-prima? quem o teria inspirado?… A mim, tenho como certo que foi Dante, no episódio de Paolo e Francesca. Que Machado de Assis conhecia a Divina comédia não tem dúvida. Pelo menos do “Inferno” tinha mesmo estudo muito particular, pois lhe traduziu um dos cantos mais estranhos, o em que vem aquela pérfida fusão de homens e serpes. É difícil imaginar a razão que teria levado o poeta a escolher justamente esse Canto XXV pra traduzir. Talvez já aquela mesma ironia, aquela mesma falta de generosidade da sua concepção crítica da vida e dos homens. Essa pérfida invenção de homens-serpentes talvez não fosse desagradável, talvez não fosse exatamente o “inferno” para o humorista frio.

Na “Última jornada” há reminiscências pequenas e, reconheço, discutíveis, do Canto V do “Inferno”. Este começa, por exemplo, com o verso:

 

Cosi discesi dal cherchio primaio

 

e Machado de Assis começa o seu:

 

“E ela se foi nesse clarão primeiro”.

 

Pura coincidência talvez. Mas outras coincidências ou reminiscências prováveis aparecem. A imagem “Como um tronco do mato que desaba, tudo caiu” evoca irresistivelmente o “E caddi come corpo morto cade”, tanto mais que entra brusca no contexto machadiano, sem nenhum preparo, sem nenhuma concatenação necessária de ideias. E Machado de Assis insiste no movimento lento e sereno do seu par nos ares. Também Dante, que pusera os seus castigados num ventarrão de tempestade (“La bufera infernal che mal non resta. […] Voltando, e percotendo li molesta”) instintivamente se apieda e apieda o vento, ao virem Paolo e Francesca: “E paion si al vento esser leggieri”. Não tem dúvida, porém, que estes elementos seriam por si insuficientes para dar o Canto V como base inspiradora da “Última jornada”, mas outros intervêm, tanto na forma como na ideação, que me parecem decisórios.

Machado de Assis emprega exatamente o mesmo corte estrófico de Dante. É a única vez que o emprega, além da tradução dantesca que nos deu. Ora o terceto é muito pouco usado na poética portuguesa, tanto tradicional como do tempo. Os nossos principais românticos não me lembro agora que o tenham praticado uma vez só. A escolha da forma poética do terceto, que a qualquer um evoca irresistivelmente Dante, me parece consequência natural de uma inspiração dantesca.

E tanto mais que a imagem principal do poema é a mesma nas duas poesias: os dois corpos de casais amantes e desgraçados voando pelos ares. Além disso, o fato de Machado de Assis, em vez de se prender a qualquer concepção mais logicamente ameríndia, fazer dos seus mortos recentes seres sempre dotados de corpo e espírito e adotar a divisão cristã de céu e inferno, obedece exatamente à concepção dantesca. E finalmente, ainda há que lembrar a invenção genial de Dante, a que Machado de Assis corresponde. Em Dante só um dos amados fala; toda a descrição do caso é feita por Francesca. Em Machado só o guerreiro fala. Nos dois pares o outro ser conserva um silêncio de esplêndida e terrível expressividade. Há um ilogismo em relação ao teatral, à dialogação, à vida que em ambos os casos, talvez mesmo ainda mais em Machado de Assis que em Dante, é da maior força poética. A esposa nem perdoa nem se apieda nem

censura, nada: afasta-se e mergulha de todo na aurora. Um Rostand, um Bilac mesmo, e certamente um Martins Fontes, não deixariam de dialogar. A coisa tal como está parece imperfeita, contra a lógica da vida e da arte. Mas nos dois grandes cantos, o silêncio do companheiro tem um poder de grandeza, de desequilíbrio, que é um golpe magistral de tragédia.

Mas, inspirada em Dante, a concepção é bem de Machado de Assis já, e o coeficiente machadiano é que vai dar ao poema o seu valor essencial. Uma primeira variação, que é de profundo significado machadiano, cria o “erro” genialmente poético da “Última jornada”. Em Dante os dois seres são bons; em Machado de Assis são maus.

Com efeito, a mulher índia é principalmente má. Tem aquela perversidade impiedosa que me fez dizer no artigo anterior que em Machado de Assis as mulheres são piores que os homens. Porque é ela, sem razão perceptível, sem razão sensível pois que sempre amada, quem abandona o esposo e vai-se embora. O próprio poeta indaga, sem resolver, a razão dessa partida. O guerreiro só por si não é mau, fica mau. Foi enceguecido pela fuga da companheira que ele a matou com suplício.

No entanto ele será o castigado; ele é que um poder invisível derruba; ele quem irá padecer na região fria. Qual a razão deste castigo injusto? Por que a índia ingrata não é castigada também?… Dentre os casos facilmente inventados, facilmente lógicos das Americanas, sem nenhuma “necessidade” propriamente poética, “Última jornada” se desgarra violentamente. Neste poema o caso é por assim dizer sofrido pelo poeta, e tem aquele “mal inventado” tão frequente nas verdadeiramente grandes invenções. É o dom de poesia… A invenção não se origina propriamente de uma história a contar, de um caso que é uma realidade possível de suceder, mas de uma intuição íntima do poeta, da inquietação de um ser que se define e procura o sentido imanente das coisas, a triste alma das coisas. Aquele sentimento de fatalidade e pessimismo, aquela maldição de trágica impossibilidade de perfeição moral e alegria, que domina toda a obra de Machado de Assis, já neste poema se desvenda.

Essa a definição, essa a intuição que o leva a se inspirar na imagem dantesca e a derivar desta, a história que “Última jornada” relata. De forma que esta história não tem a menor preocupação de se basear na lógica da vida ou da moral preestabelecida. A origem do caso não deriva de nenhum confronto de interesses de viver, claramente definidos, e nitidamente deduzidos uns dos outros, mas de um sentimento-pensamento, de um transe lírico que consegue se abstrair e cria livremente, fora de qualquer concatenação logicamente vital. Daí o seu desnorteante, o seu admirável, o seu mistério fecundo – essa potência de atração, de domínio, de hipnotização, de enfeitiçamento, de sugestividade que o poema tem. E esta é a força, a essência mesma da verdadeira poesia.

 

iii

            É preciso concluir. De tudo quanto me dizem a obra e os críticos de Machado de Assis, consigo ver, com alguma nitidez arrependida e incômoda, a genial figura do Mestre. Ele foi um homem que me desagrada e que eu não desejaria para o meu convívio. Mas produziu uma obra do mais alto valor artístico, prazer estético de magnífica intensidade que me apaixona e que cultuo sem cessar. A lembrança do homem faz com que me irrite frequentemente contra a obra, ao passo que o encanto desta exige de mim dar a quem a fez um amor, um anseio de presença e concordância a que meu ser se recusa. E a minha nitidez, por isso, é desacomodada e se arrepende de ser tão nítida. Bem desejaria não apenas duvidar de mim (sempre duvido) mas ter a certeza de que essa nitidez é interessada, fruto do tempo e das minhas exigências pessoais. Porém não chego a ter certeza disto, antes sinto e quero em mim uma opinião perfeitamente filosófica, que contemple Machado de Assis na sua realidade finita e permanente.

Eu sei que o Mestre se imaginou um desgraçado. O seu pessimismo, o seu humorismo, a sua obra toda; o cuidado com que, na vida, procurou ocultar os seus possíveis defeitos, as suas origens, os elementos da sua formação intelectual e a sua doença. Por uma espécie de pudor ofendido, ele se revoltou; e a lição essencial da sua vida e da sua obra literária são o resultado dessa revolta. Mas, Machado de Assis foi um vitorioso. Tudo o que ele quis vencer, embora na vida cerceando as suas vitórias, a um limite que o nacional desapego aos racismos poderia alargar, tudo o que ele quis vencer, venceu. Conseguiu uma vitória intelectual raríssima, alcançando que o considerassem em vida o representante máximo da nossa inteligência e o sentassem no posto então indiscutivelmente mais elevado da forma intelectual do país, a presidência da Academia.

Assim vitorioso na vida, ela ainda o foi mais prodigiosamente no combate que, na obra, travou consigo mesmo. Venceu as próprias origens, venceu na língua, venceu as tendências gerais da nacionalidade, venceu o mestiço. É certo que, pra tantas vitórias, ele traiu bastante a sua e a nossa realidade. Foi o antimulato, no conceito que então se fazia de mulatismo. Foi intelectualmente o antiproletário, no sentido em que principalmente hoje concebemos o intelectual. Uma ausência de si mesmo, um meticuloso ocultamento de tudo quanto podia ocultar conscientemente. E na vitória contra isso tudo, Machado de Assis se fez o mais perfeito exemplo de “arianização” e de civilização da nossa gente. Na língua. No estilo. E na sua concepção estético-filosófica, escolhendo o tipo literário inglês, que às vezes rastreou por demais, principalmente nessa flor opima de saxonismo, que é Sterne.

Nisto, aliás, escapou a Machado de Assis, que, de alguma forma, ele estava “mulatizando”. Com efeito, na admiração pela Inglaterra, procurando imitá-la, Machado de Assis continua insolitamente na literatura aquela macaqueação com que a nossa Carta e o nosso parlamentarismo imperial foram na América uma coisa desgarrada. A França seria, como vem sendo mesmo, o caminho natural para nos libertarmos da prisão lusa. A Espanha e a Itália eram, na latinidade, “peculiares” por demais; ao passo que, na base da originalidade francesa, estavam exatamente o amor da introspecção, o senso da pesquisa realista, o gosto do exótico, o nacionalismo acendrado e o trabalho cheio de precauções que seriam pra nós o caminho certo da afirmação nacional. Mas aí Machado de Assis errou o golpe (ou o acertou pra si só…), preferindo a Inglaterra, que lhe fornecia melhores elementos pra se ocultar, a pruderie, a beatice respeitosa das tradições e dos poderes constituídos, o exercício aristocrático da hipocrisia, o humour de camarote. Branco, branco, ariano de uma alvura impenitente, Machado de Assis correu um perigo vasto. Mas com o seu gênio alcançou a sua mais assombrosa vitória: e, em vez de soçobrar no ridículo, na macaqueação, no tradicionalismo falso, conseguiu que essa brancura não se tornasse alvar. Antes, rico de tons e de fulgurações extraordinárias, o “arianismo” dele opõe o desmentido mais viril a quanto se disse e ainda se diz e pensa da podridão das mestiçagens.

Mas assim vitorioso, o Mestre não pôde se tornar o ser representativo do Homo brasileiro. Por certo que Gonçalves Dias, Castro Alves, o Aleijadinho, Almeida Júnior, Farias Brito e tantos outros o são bem mais, nas constâncias em que já conhecemos reconhecidamente o homem brasileiro. A generosidade, o ímpeto de alma, a imprevidência, o jogo no azar, o derramamento, o gosto ingênuo de viver, a cordialidade exuberante. Se objetará que Machado de Assis, neste ponto, foi vítima da sua desgraça, confeccionado em máxima parte, no caráter, pelo que sofreu. Mas o defeito grave do homem não estará justamente nisto?… Machado de Assis, vencedor de tudo, dado mesmo que fosse individual e socialmente desgraçado, como o foram Beethoven ou Camões, uma coisa não soube vencer. Não soube vencer a própria infelicidade. Não soube superá-la, como esses. Vingou-se dela, mas não a esqueceu nem perdoou nunca. E por isso foi, como a obra conta, o ser amargo, sarcástico, ou apenas aristocraticamente humorista, ridor da vida e dos homens. Mas também por isso lhe faltam qualidades brasileiras, as qualidades que todos somos geralmente, em nossas mais perceptíveis impulsividades. Quereis prova mais clara disso que o número especial da Revista do Brasil, dedicado a Machado de Assis? Os estudos, muitos deles excelentes, foram imaginados com visível intenção apologética. Mas quase todos eles deixam escapar alguma restrição, algum alheamento, se falam do homem. É que esses brasileiros não se acomodam passivamente com a pequena contribuição de alma brasileira existente no homem Machado de Assis.

Mas, noutro sentido, a contribuição brasileira do Mestre foi bastante farta. Escasso de nós em si mesmo, ele nos deu, no entanto, como já se tem dito, uma boa coleção de almas brasileiras e uma língua que, apesar de castiça, não é positivamente mais o português de Portugal. Talvez isto contra a sua própria vontade… Sim, se não reconheço Machado de Assis em mim, em compensação sou Brás Cubas, noutros momentos sou Dom Casmurro, noutros o velho Aires. Tenho encontrado dezenas de Virgílias e de Capitus. E qualquer um de nós traz um bocado do Alienista em si…

Como arte, Machado de Assis realizou o Acadêmico ideal, no mais nobre sentido que se possa dar a “academismo”. Ele vem dos velhos mestres da língua, pouco inventivos, mas na sombra garantida das celas tecendo o seu crochê de boas ideiazinhas dentro de maravilhosos estilos. Assim os Bernardes e os Frei Luís de Sousa criaram um protótipo da escritura portuguesa tanto intelectual como formal. Isso é que Machado de Assis desenvolveu. No tempo em que os Camilos, os Eças, os Antônio Nobre estavam derrubando muros pra alargar o campo da inteligência literária de Portugal, Machado de Assis estava afincando os mourões de um cercado na vastidão imensa do Brasil. Está claro que viveu as necessidades do seu tempo, é um oitocentista. Mas, profundamente, o que ele melhor representa é a continuação dos velhos clássicos, continuação tingida fortemente de Brasil, mas sem a fecundidade com que Álvares de Azevedo, Castro Alves, Euclides e certos portugueses estavam… estragando a língua, enriquecendo-a no vocabulário, nos modismos expressionais, lhe dilatando a sintaxe, os coloridos, as modulações, as cadências, asselvajando-a de novo para lhe abrir as possibilidades de um novo e mais prolongado civilizar-se.

Machado de Assis, em vez, era ainda o homem que compunha com setenta palavras. Era aquele instrumento mesmo de setenta palavras, manejado pelos velhos clássicos, que ele adotava e erguia ao máximo da sua possibilidade acadêmica de expressão culta da ideia. Da ideia oitocentista. O que Vieira conseguira, tornar a sua linguagem a expressão máxima da língua culta portuguesa do tempo antigo, Machado de Assis o conseguiu também para os tempos modernos. Tempos modernos! Tempos que vieram até a Grande Guerra, pois que os contemporâneos já nos parecem bem outros. E Machado de Assis não os profetiza em nada, na acadêmica obediência e observação dos protótipos.

Seus contos e mesmo os dois memoriais, a parte principal da obra dele, são uma Nova floresta. Machado de Assis é um exemplar do academismo, e não foi à toa que se tornou o fundador justificatório da Academia. Como um acadêmico, era um desprezador de assuntos. Era um estético. Era um hedonista. Há contos dele movidos com tão pouca substância, tão sem uma base lírica de inspiração, que se tem a impressão de que Machado de Assis sentava para escrever. Escrever o quê? Apenas escrever. Sentava para escrever um gênero chamado conto, chamado romance, porém não tal romance ou tal conto. E é porque tinha no mais alto grau uma técnica, e bem definida a sua personalidade intelectual, que saiu este conto ou aquele romance.

Deste conceito de academismo resultaram as melhores obras-primas do Mestre. Tinha ele a fatalidade do contista? Do homem que é obrigado a se realizar dentro da psicologia do conto, à maneira de um Maupassant, de um Poe, de um Boccacio e das Mil e uma noites? Certamente não. Machado de Assis dominava magistralmente a “forma” do conto, não, porém, a sua “psicologia” mais essencial. E neste sentido nem será o nosso maior contista. E terá sido o nosso maior romancista? Absolutamente não. Não só, neste caso, lhe faltava a psicologia do romance como também a forma. Foi acaso o nosso maior poeta? Aqui então a própria pergunta é um absurdo. Mas há uma outra resposta mais verdadeira que dar a todas estas perguntas impertinentes. É que Machado de Assis, se não foi nosso maior romancista, nem nosso maior poeta, nem sequer maior contista, foi sempre, e ainda é, o nosso maior escritor. E por isso deixou, em qualquer dos gêneros em que escreveu, obras-primas perfeitíssimas, de forma e de fundo, em que, academicamente, a originalidade está muito menos na invenção que na perfeição. Obras imortais em que, como em nenhumas outras já produzidas pela nacionalidade, sente-se aquela síntese, aquele ajustamento exato de elementos estéticos tradicionais, com que nas obras-primas de caráter acadêmico a beleza se cristaliza e se torna imóvel. Não é possível ir mais alto, e a perfeição se isola na infecunda tristeza da imobilidade.

Machado de Assis é um fim, não é um começo e sequer um alento novo recolhido em caminho. Ele coroa um tempo inteiro, mas a sua influência tem sido sempre negativa. Os que o imitam, se entregam a um insulamento perigoso e se esgotam nos desamores da imobilidade. Fazer de Machado de Assis um valor social, não será forçar um socialismo de ilusão em busca de ídolos?… Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido e muito honesto, afastando de si os perigos visíveis. Mas as obras valem mais que os homens. As obras contam muitas vezes mais que os homens. As obras dominam muitas vezes os homens e os vingam deles mesmos. É extraordinária a vida independente das obras-primas que, feitas por estas ou aquelas pequenezas humanas, se tornam grandes, simbólicas, exemplares. E se o Mestre não pôde ser um protótipo do homem brasileiro, a obra dele nos dá a confiança do nosso mestiçamento, e vaia os absolutistas raciais com o mesmo rijo apito com que Humanitas vaiou o sedentarismo das filosofias de contemplação. E se o humorismo, a ironia, o ceticismo, o sarcasmo do Mestre não o fazem integrado na vida, fecundador de vida, generoso de forças e esperanças futuras, sempre é certo que ele é um dissolvente apontador da vida tal como está.

E é por tudo isto que a esse vencedor miraculoso não lhe daremos as batatas de que teve medo e antecipadamente zombou. Damos-lhe o nosso culto. E o nosso orgulho também. Mas estou escrevendo este final com uma rapidez nervosa… Meus olhos estão se turvando, não sei… Talvez eu já não esteja mais no terreno da contemplação. Talvez esteja adivinhando…

 

Fonte desta edição: ANDRADE, Mário de. “Machado de Assis”. In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, s/d., pp. 89-108.

Versão original: “Machado de Assis – I”, “Última jornada – II”, “Machado de Assis – III”. Diário de Notícias, “Vida Literária”, Rio de Janeiro, 11, 18 e 25 jun. 1939, 1o Suplemento, p. 2 [Ao final das partes I e II, havia uma lista de livros recebidos pelo autor]. Transcrições da parte I: “Machado de Assis”, Roteiro, São Paulo, 21 jun. 1939; Hoje, São Paulo, n. 18, pp. 62-8, jul. 1939.

 

Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares (1908-1939). Organização de Ieda Lebensztayn e Hélio de Seixas Guimarães, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019, vol. 1.

 

Leia ensaio do Alcir Pécora sobre este ensaio de Mário de Andrade

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/09/origem-social-raca-e-repudio-modernista-moldaram-visoes-sobre-machado.shtml