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O alienista de Machado de Assis – Ieda Lebensztayn

Pressupostos: Belle Époque, arte e crítica

 

Publicado na revista A Estação entre outubro de 1881 e março de 1882 e incluído no volume Papéis avulsos em 1892, O alienista, conto-novela de Machado de Assis, é um pouco anterior ao período de 1890 a 1920, baliza temporal dos estudos da Belle Époque. Mas, como todo grande texto artístico, dá forma a impasses semelhantes aos vividos na Belle Époque e também aos atuais.

Lê-se em um ensaio de André Nunes de Azevedo uma imagem-síntese desses impasses, a qual dialoga, em seu teor tragicômico, com a realidade configurada literariamente em O alienista; já o título do ensaio condensa contradições: “A Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro: a modernização da cidade como forma de sedução estética a serviço de um horizonte de integração conservadora sob a égide da civilização”. Como explica André, a Reforma Urbana Federal foi promovida entre 1903 e 1906 pela elite cafeicultora paulista, que ocupava a Presidência da República com Rodrigues Alves, e pelo Clube de Engenharia: realizou a reformulação do porto da capital federal e a abertura da Avenida Central, com a Biblioteca Nacional, o Teatro Municipal. Visava a atrair mão de obra imigrante, para suprir a carência de braços na lavoura paulista de café, impactada pela Abolição da escravatura. Inspirada na modernização feita por George-Eugène Haussmann em Paris, a reforma do prefeito Pereira Passos implicou desalojar a população pobre para a periferia e proibir a circulação de mendigos e de ambulantes. Pelas ruas havia grande contingente de escravos, os chamados escravos de ganho e escravos prestadores de serviços públicos, além de imigrantes, que lutavam por sobreviver.

André Nunes nos conta que Pereira Passos se tornou popular a ponto de sua foto figurar em uma marca de caixa de fósforos. E a reforma incluiu a construção de mictórios públicos adornados com maçanetas de bronze, que logo foram roubadas. Há melhor metáfora para a modernização/civilização feita de retrocesso? Num país de formação escravocrata, com uma vasta população de escravos e pessoas em luta por sobreviver, a suntuosidade é incompatível com necessidades básicas – como bronze em maçanetas de mictórios. Essa higienização que priva as pessoas pobres de seu espaço – e aqui já anuncio a Casa Verde do Alienista – aponta que a doença a ser tratada é a social.

O que dizer da atualidade de O alienista? Um caminho é pensar na palavra pessoa e na reversibilidade entre eu e o outro.

“Sou eu!” Não parece loucura o fato corriqueiro de que, ao ouvirmos essa simples frase, conhecendo a voz que a emitiu, saibamos quem é a pessoa que nos bate à porta? Todo mundo pode dizer “Sou eu!”, e o olhar do outro nos define: singularmente, somos identificados pela voz. Não à toa, a palavra pessoa vem de per-sona: é a máscara pela qual soa uma voz única. Ao mesmo tempo, persona são as máscaras do teatro, os vários papéis sociais, familiares, profissionais, desempenhados pelas pessoas. Daí também as palavras personagem, personalidade (Cf. ORTEGA Y GASSET, 1973; ARENDT, 1993). Assim, uma combinação de singularidade e de faces sociais, suscetível ao vento das circunstâncias, constitui as pessoas. E, espectro dialético da ciência, a presença do avesso e da dúvida nos lembra que, em francês, se la personne é a pessoa, personne significa ninguém.

O alienista, de Machado de Assis, nos faz pensar em múltiplas questões atuais: a importância e os limites da ciência; o exercício tirânico do poder; a angústia entre prisão e liberdade; a reversibilidade entre os sentidos de loucura e razão; as dúvidas quanto à ciência, à fé e às virtudes; a prevalência de interesses particulares e do capricho, acima de princípios éticos e coletivos.

No artigo “Uma correspondência em nova série”, conta Álvaro Lins (1958) que um amigo o incentivara a escrever uma ficção a respeito de um fato divertido, porém melancólico, comum no Brasil: homens sérios da vida pública serem chamados de loucos por indivíduos irresponsáveis. Ao recusar a demanda, o crítico ressalta que ela já tinha sido contemplada no teatro por Luigi Pirandello em Così è (se vi pare) [Assim é, se lhe parece] e num conto estendido em novela que antecipava a arte do italiano: O alienista, de Machado de Assis. Tal observação de Álvaro Lins concentra marcas da escrita machadiana: o humour que provoca risos e contém lágrimas, construído sobre a lógica feita de absurdos, própria da realidade brasileira e ao mesmo tempo universal.

“Itaguaí é o meu universo” (ASSIS, 2008). Essa afirmação do alienista Simão Bacamarte e as estratégias do narrador em terceira pessoa de evocar crônicas itaguaienses para atestar a verossimilhança de sua história, bem como de estabelecer um paralelo de episódios locais, como o Terror e a Revolta dos Canjicas, com as fases da Revolução Francesa, compõem uma forma peculiar machadiana, de humour crítico: ele nos possibilita, jocosa e melancolicamente, ver semelhanças e desproporções entre realidades brasileiras e estrangeiras, criando uma compreensão quanto às iniquidades conservadas desde a formação colonial brasileira, e quanto aos motores egoístas das ações.

O próprio uso da expressão francesa Belle Époque e a inspiração na reforma haussmanniana de Paris nos fazem lembrar essa estratégia da ironia machadiana, de aproximar realidades que têm alguma semelhança junto com desproporção. Nesse sentido, vale a leitura do ensaio “Machado de Assis, tradutor de si mesmo”, de Alcides Villaça (1998), que analisa o conto “A cartomante” e suas simetrias, que distinguem e dissolvem valores, promovendo a relativização de tudo.

Tais “traduções machadianas”, observa Alcides, constituem um processo crítico de criação concebido desde as Memórias póstumas de Brás Cubas. Com base na recepção crítica de tal obra, que, junto com Papéis avulsos, marca o início da melhor produção machadiana, conhecida como segunda fase, Alfredo Bosi (2006) apresenta as quatro dimensões que configuram uma obra de arte: representação social, expressão subjetiva, construção e transitividade com o leitor. O estudo de cada uma dessas dimensões, fecundas em sua especificidade, demanda dialeticamente o das outras, mas nas obras de arte elas são indissociáveis. Por isso, a tarefa crítica é perfazer o círculo hermenêutico entre o todo e as partes, considerando essas quatro dimensões, num movimento analítico-interpretativo avesso a dogmatismos.

 

Alfinete em barra de seda: bico fechado, instante de liberdade

 

Em seu todo, bem como na singularidade de situações múltiplas de suas partes, O alienista encena a expressão de dilemas psicológicos referentes à loucura, observados e experienciados pelo protagonista Simão Bacamarte, e, a um tempo, a representação social do tratamento conferido à loucura pelos poderosos e pelo povo, por meio de uma construção cambiante que, ao definir as significações de loucura e de razão e as reverter em seu contrário, desestabiliza os sentidos, provocando o riso e a reflexão do público.

O modo como estão amalgamadas as questões psicológicas e sociais salta à vista logo na descrição dos loucos de Itaguaí e da indiferença a eles concedida pelos vereadores. Aos loucos “furiosos”, o trancamento no quarto em casa até morrerem vale a síntese irônica de ser-lhes a vida um “benefício” passível de ser “defraudado”. Decerto a vida trancada não representa grande benefício, mas nunca é demais lembrar a imagem machadiana das “Primas de Sapucaia!”, conto que configura a reversibilidade frequente entre o que parece benefício e se revela infortúnio. Já a liberdade garantida aos loucos “mansos” diz bem da etimologia da palavra mansuetude, “estar na mão de quem manda”, daquele que dá a mão para ser beijada pelos súditos (mandar, de manus dare, “dar a mão”).

[…] A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua.

Assim, trancados os furiosos e soltos os dóceis, o cuidado da vereança com os loucos era mantê-los invisíveis, o que denota as implicações políticas que cercam o não se governar a si.

A criação da Casa Verde, asilo de loucos concebido pelo alienista Simão Bacamarte, também deixa ver, em múltiplos aspectos, a imbricação de fatores psicológicos, políticos e econômicos em situações que redundam na conservação do poder nas mãos das camadas dominantes. Instituir novos impostos foi a estratégia da vereança para “subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doudos pobres”; no entanto, exigiu imaginação dos políticos, afinal “tudo estava tributado em Itaguaí”. O humour machadiano nos mostra essa prática de taxação que atende aos interesses dos poderosos, tão comum na realidade brasileira, fazendo-nos rir da naturalidade com que se estabelece um imposto sobre o uso de plumas nos cavalos de coches mortuários e o tempo do enterro.

Impostos: a forma verbal do particípio tornada substantivo traduz a dupla dimensão, de submissão política e exploração financeira, com que tiranias como a de Simão Bacamarte e o cárcere da Casa Verde se exercem. Entretanto, conforme a perspectiva irônica sugerida pelo título da terceira seção do conto: “Deus sabe o que faz!”. Tal será a observação satisfeita, “com muita resignação” segundo o narrador, de Dona Evarista ante o êxito do marido, referindo-se ambiguamente à plausível e abençoada eficácia científica que teria o tratamento dedicado por ele aos loucos, mas também ao lucro monetário auferido pelo casal.

Antes do contentamento de Evarista, magistralmente se desenha uma dança dela com Simão, cujos passos são desejos, afetos e interesses, insinuados aqui, silenciados e adiados acolá, adivinhados e realizados enfim. Melancólica, estimada mas preterida pela ciência, a mulher se queixa de viuvez, tamanha a obsessão do marido pelos loucos: “– Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos…”. Embora ansiosa por romper o fato de “nunca dos nuncas” ter visto o Rio de Janeiro, ela soube aguardar que o alienista lhe sugerisse viajar na companhia da tia:

– Irá com sua tia – redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.

Em sua atitude “racional” para com o marido que lidava com loucos, ao perguntar pelos gastos que a viagem acarretaria, a mulher tem a oportunidade de confirmar que estavam ganhando muito. O narrador se esmera na descrição superlativa daquela riqueza e em seu efeito sobre Dona Evarista, concluindo com a palavra “opulência”: “deslumbrada” com a “via láctea de algarismos”, ela exclama a Deus ao avistar nas arcas os “montes de ouro”, “mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões”. Qual um refrão, Simão Bacamarte repete, ao ouvido da esposa, a frase que remetia à sua priorização da ciência frente ao casamento, mas agora as reticências, constituindo “a mais pérfida das alusões”, apontam para os montes de ouro, que ela comia com seus olhos negros: “– Quem diria que meia dúzia de lunáticos…”.

Como a condensar o sentido do conto, a cena que descreve a comitiva que acompanhou Dona Evarista na viagem ao Rio sintetiza, sutilmente, a realidade brasileira assentada nos disparates, aceitos e normalizados, da desigualdade social. Além da mulher do alienista e de sua tia, a esposa e um sobrinho do boticário, um padre conhecido de Bacamarte de Lisboa, mais “cinco ou seis” pajens e quatro mucamas compunham a comitiva. En passant não atentamos para este fato, mas bem poderíamos desfrutar da mordomia de tal jornada, afinal para cinco turistas havia exatamente ou quase o dobro de serviçais. O narrador nos faz rir das lágrimas de Dona Evarista: mesmo que sinceras, moviam-nas a despedida de um marido alheado e uma viagem desejada. Sobretudo para Bacamarte só a ciência importava, e a sua preocupação de haver ali, na multidão que cercava a comitiva, “algum demente” em meio à “gente de juízo” nos leva a indagar qual o juízo dessa gente, qual a razão de uma comitiva de cinco pessoas que tem tantos pajens e mucamas.

A “teoria nova” concebida pelo alienista enquanto a esposa viajava – segundo a qual a loucura é “um continente”, não apenas “uma ilha perdida no oceano da razão” – abre espaço para o narrador analisar formas de divulgação de fatos que se enquadram à perfeição no contexto da confusão entre loucura e sanidade: comuns em pequenas cidades brasileiras, como também nas grandes e em estrangeiras, antigas e atuais, hoje incrementados pela fluidez do Whatsapp, tais modos de comunicação frequentemente ignoram a distinção ética entre verdade e mentira, tendo largo alcance político, ao erigir ou destruir reputações.

Caracterizado como bajulador, o boticário Crispim Soares defende difundir a teoria de Bacamarte por meio da matraca. Explica o narrador que a matraca era tocada por homens contratados para andarem pelas ruas, nos povoados desprovidos de imprensa, com o propósito de fazerem anúncios. Então nos oferece o caso exemplar de um vereador contrário à criação da Casa Verde: graças à matraca, reputavam-no domador de cobras e macacos, embora jamais tivesse domesticado sequer um bicho. Nada de novo sob o sol, hoje a matraca fala a língua das fake news: “E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século”.

Na medida em que Bacamarte instituiu o “terror”, prendendo muita gente na Casa Verde, outra forma de comunicação foi notada: as “versões populares”. Incrédulo quanto aos argumentos científicos do médico, o povo atribuía aquela sanha de encarcerar os outros a diversas motivações, como vingança, cobiça, castigo divino, monomania de Bacamarte, até a um plano secreto do Rio de Janeiro, voltado a impedir o progresso de Itaguaí – a chamada teoria da conspiração. Em síntese, tratava-se da atividade diária da “imaginação pública”, capaz de criar inúmeras explicações sem explicar nada.

Na sequência da novela, outra situação envolvendo Dona Evarista, uma mucama e uma de suas “crias” configura os disparates normalizados da sociedade brasileira de base escravocrata, em que apenas por um instante é concedido a um jovem escravo ter razão. Como o alienista, vendo loucos por todos os lados, transformara a Casa Verde num cárcere privado para grande parte da população, o barbeiro Porfírio liderou a Revolta dos Canjicas, trezentas pessoas a bradarem pela morte do médico déspota. Objetiva, a descrição do momento em que Dona Evarista recebe a notícia dessa rebelião contém, nos detalhes do diálogo e dos gestos das personagens, indícios da desigualdade social brasileira, observados e representados artisticamente. Recebe o leitor a notícia de que a mulher trouxera trinta e sete vestidos do Rio de Janeiro e, enquanto experimentava um deles, duvidou de uma de suas “crias”, o “moleque assustado” que lhe veio anunciar a ira dos revoltosos. A quantidade de vestidos de seda adquiridos, sinal do luxo e desperdício da classe dominante, se coaduna com os gestos de desconsiderar como “patuscada” o anunciado levante contra injustiças e, ao mesmo tempo, de se preocupar tão só em mudar a posição de um alfinete e em pedir que a mucama, de cócoras a seus pés, confira a barra do vestido. Mais do que ignorar as palavras do rapaz, Dona Evarista lhe dirige um grosseiro “Cala a boca, tolo!”. E também desfaz da opinião da mucama Benedita, de que estava boa a barra: o problema da mulher do alienista é a costura do vestido “um pouco enviesada”, a necessidade de “descoser para ficar igualzinho”.

Apesar de a possibilidade de transformação social no país se resumir à mudança de posição de um alfinete, e a igualdade vislumbrada ser a da barra de vestidos de seda, o narrador constrói um lampejo de razão, eis a loucura, para o “moleque”, “cria” de Evarista: enquanto o “terror” diante dos uivos dos manifestantes a paralisava, coube a ele “um instante de triunfo, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele”. Irmão mais velho da menina Lucrécia do conto “Caso da vara” (cf. VILLAÇA, 2006), que tossia para dentro, esse menino tem um triunfo “entranhado” e por um instante apenas. Habituado à realidade hostil, à necessidade de jurar em suas afirmações, alvos de desconfiança, viveu a alegria moral momentânea de ter a realidade jurando por ele, conforme a aguda observação machadiana.

Líder da revolução, o barbeiro Porfírio, embora lucrasse com a aplicação de sanguessugas na Casa Verde lotada, dizia que o interesse particular deve dar lugar ao interesse público.[1] Conhecida do leitor de Machado de Assis, a raridade da prática dessa ponderação faz o narrador sublinhar que tal passagem referente a Porfírio era “uma das laudas mais puras desta sombria história”. Porém, ele mostrará que, ao longo da sublevação, o barbeiro sente também a ambição de tornar-se “senhor de Itaguaí”.

O alienista dá forma às contradições, às idas e vindas frequentes no mundo político que, no entanto, não alteram a estrutura do poder. Capricho ou certo sentimento de classe: as crônicas itaguaienses não deram conta de explicar o porquê de parte da guarda haver abandonado a função de proteger o governo e aderido à revolução dos Canjicas. Contudo, em momento algum Bacamarte perde seu poder: à derrubada violenta da Casa Verde o governante Porfírio, “Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo”, prefere um acordo com o alienista. Resultado: é visto como louco por este e acusado de ter sido comprado pelo ouro do médico. Ressalte-se que, conservado seu ouro, Bacamarte abrira mão de receber o estipêndio votado pela Câmara e seguia trabalhando pela ciência. Sua lisura se comprovava, aos olhos do povo, com a prisão da esposa, observada como demente desde a viagem ao Rio: a antiga modéstia se tornara apego ao luxo, com direito à hesitação entre um colar de granada e outro de safira.

A tortura moral vivida por Crispim é capítulo especial do humour machadiano: como poderia o boticário decidir entre a alma bajuladora – que lhe impunha apoiar o alienista, apesar de ameaçado de prisão e de morte – e a autoconservação da vida, que lhe recomendava afastar-se daquele déspota odiado do povo? Mantido o poder do médico, a tortura moral de Crispim vale seu encarceramento na Casa Verde.

 

O equilíbrio da imperfeição moral

 

Escoando a areia do tempo na narrativa, delineado o abismo de estarem quatro quintos da população de Itaguaí presos no manicômio, vem o assombro: Simão Bacamarte, com sua ciência, entende que a verdadeira doutrina era a oposta e decide, pois, libertar as tantas pessoas que reputara loucas e encarcerar as que demonstravam equilíbrio.

Se o próprio fato estatístico mostrava que “normal e exemplar” é o “desequilíbrio das faculdades”, a astúcia narrativa logra rir da lógica naturalizada dos vereadores: Bacamarte aceita a cláusula criada por eles mesmos, segundo a qual não poderiam ser presos. Que melhor prova de não padecerem de perfeição moral do que legislarem em causa própria? Já ao vereador Galvão, moderado e contrário a esses privilégios concedidos aos vereadores, só se podia prescrever o encarceramento.

Mas agora eram raros os confinados pelo alienista, e demorado seu exame dos casos até os prender. Visto o equilíbrio como patologia cerebral, a Casa Verde constituiu o destino do padre Lopes, do juiz de fora e até do barbeiro Porfírio, então arrependido da ambição que o levara a liderar a Revolução dos Canjicas, causa de mortes e ferimentos.

Terreno fértil da ficção machadiana, a situação narrativa da terapêutica que cura os dotados de equilíbrio sintetiza o próprio movimento do todo da novela: classificados os loucos segundo sua perfeição moral, Bacamarte lhes incutia gradualmente o sentimento oposto, até lhes restituir a razão. A um modesto, por exemplo, oferecia adornos, joias, títulos honoríficos, tentando-o com a vaidade, o melhor remédio. A instabilidade de sentidos, o apego a instituições junto com a primazia do capricho e da flutuação de interesses, a opção pelo caminho inverso – os passos de O alienista encontram os de “A Igreja do Diabo” (1883), de Histórias sem data, ecoando as palavras finais de Deus: “– Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.

A salvação do padre Lopes é outro capítulo especial do humour machadiano, que põe a nu a prática de certas autoridades como esse representante da Igreja, de afetar honestidade e erudição, mas incluir inverdades e corrupção em seus atos. Sabedor de que padre Lopes desconhecia o hebraico e o grego, o alienista o incumbiu de realizar uma análise crítica da versão da Bíblia dos Setenta, usada pelos judeus de língua grega. De forma concisa, o narrador expressa que a análise foi feita, ou seja, a perfeição moral do padre tinha brechas, o que o salvou: “ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade”.

Por fim, constatando não ter sido responsável pela cura daqueles cérebros, afinal o desequilíbrio estava latente neles, Simão Bacamarte sofre terrível “tempestade moral”, ao concluir que não havia loucos em Itaguaí, o que equivalia à ruína de suas teorias. Mas logo “suave claridade” lhe alumia a fisionomia: ele percebe que os traços do “perfeito equilíbrio mental e moral” definidores de um “acabado mentecapto” residiam nele próprio, tornando-se o último e único morador da Casa Verde, até à morte. O contraste entre imagens da natureza que incorporam os dilemas psicológicos do alienista – a “tempestade moral” e a “suave claridade” – configura as contradições dessa personagem.

 

A arte da ampulheta: o normal o gira vira

 

Tendo até aqui analisado sobretudo o jogo de desejos, interesses e necessidades e as contradições das personagens, com ênfase nas dimensões de representação social    e de expressão subjetiva imbricadas na novela, cumpre retomá-las aos olhos da vertente de transitividade com o leitor, em especial de alguns ensaios da fortuna crítica, e destacar como tais vertentes se articulam por meio de elementos essenciais da construção formal.

Na fortuna crítica de O alienista, salientam-se os estudos de Jean Pierre Chauvin (2005), Ivan Teixeira (2008), Eugênio Gomes (1949), Alfredo Bosi (1979) e de Roberto Schwarz (2014).

Destaque-se a imagem da ampulheta: retomada de Aspects of the Novel de Edward Forster, por Antonio Candido no “Esquema de Machado de Assis” (1968), é fecunda para traduzir a forma de O alienista. À medida que o tempo escoa, os incontáveis grãos de sandice vão deixando vazia Itaguaí, até lotarem o ambiente da Casa Verde. Ou seja, conforme a imagem da ampulheta, o vidro superior, que transparecia plenitude, logo estará vazio; já o vidro inferior, que nada continha, se mostrará cheio. Onde a segurança dos fatos?

Potenciando essa instabilidade de morada dos grãos, basta virar a teoria-ampulheta, e sucederá o reverso: o vazio recém-cheio da Casa Verde se esvaziará; e, vice-versa, as ruas se repovoarão. Libertos os loucos, Simão Bacamarte encarcera os raros equilibrados. Cheio-vazio, vazio-cheio, cheio-vazio…

Inexorável, a passagem do tempo, ao tomar a forma ampulheta do conto-novela machadiano, preenche-nos o vazio de sentido, como anuncia a epígrafe de Papéis avulsos:

[…] Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.

Poeta, o crítico Augusto Meyer (1958), como a completar a figura da ampulheta, criou bela imagem para a forma de O alienista: “Caminhamos sobre um fio de linha muito frágil, esticado entre dois abismos, e o nosso equilíbrio é um acaso resultante da vaga neutralização de duas loucuras que se entrechocam. Equilíbrio? Não se pode mais falar em equilíbrio, entramos no reino do delírio sistemático, da ‘lógica do absurdo’ a que se refere Tertuliano”. Observa Meyer como a objetividade do entrecho, a lentidão da narrativa, sua ironia contida e uma “graça irresistível mas apagada e modesta” tecem esse frágil fio entre dois abismos que provoca “espantosa vertigem” no leitor.

 

Tautologia, vírgula: arte

 

Considerando, pois, a forma de O alienista como uma ampulheta feita de dois abismos transpostos segundo a “lógica do absurdo”, é preciso atentar para um detalhe da arte do conto: na passagem da versão publicada na imprensa, em A Estação, para a forma perene do livro, Machado de Assis fez uma significativa alteração, substituindo o verbo pontuar por virgular.

Analisado o texto machadiano em suas várias dimensões articuladas de composição e em diálogo com a fortuna crítica – a representação das disparidades e conservação da sociedade brasileira de origem escravocrata, a expressão subjetiva do terror da loucura, da revolta contra opressores, dos jogos de desejos e interesses, a construção formal das reviravoltas da ampulheta de abismos numa lógica absurda –, é produtivo estabelecer um movimento hermenêutico entre o todo e as partes do conto-novela com base nessa passagem alterada por Machado de Assis. Ela tem lugar na seção IV, “Uma teoria nova”, mas pode ser lida à luz das três viravoltas do texto e iluminá-las: “Todo o tempo que lhe sobrava [a Simão Bacamarte] dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos”.[2]

Já aí se desenha a loucura do protagonista, que será confirmada na viravolta final da narrativa. Repare-se o uso do verbo conversar tendo “as gentes”, um coletivo no plural, como objeto, a sinalizar a obsessão do médico antes pelo objeto científico do que pelas pessoas. E a hipérbole dos “trinta mil assuntos” sobre os quais ele versava indicia sua loucura, externada pelo olhar amedrontador que “virgulava” as falas. Digno de nota, o olhar que virgula as falas é o do cientista ocupado em separar, discriminar, classificar os vários tipos de loucos.

Ao mesmo tempo, essa passagem concentra elementos da segunda viravolta: o médico que conversa as gentes dedica mais tempo para identificar os casos raros de equilíbrio moral e ponderar com moderação a respeito deles. Realiza o significado etimológico de seu nome: Simão é “aquele que ouve”, “ouvinte” (do hebraico Shim’on​, derivado de shamá, “ele ouviu”). Nesse sentido, virgular as falas com o olhar é assustador porque inclui o tempo de mediação pertinente à busca de compreender o outro.

Por fim, virgular é criar pausas, buscar tempo e ar para respirar – o que o próprio Simão Bacamarte não tinha, em sua obsessão por uma teoria da loucura, expressa precisamente na tautologia “a ciência era a ciência” (V – “O Terror”). A tautologia é uma Casa Verde, prisão de que não se escapa.

Duas palavras em especial se repetem na narrativa para caracterizar atitudes tanto do alienista como da população de Itaguaí, vira e mexe tidos por dementes: extraordinário e assombro. Extraordinária e assombrosa era a paciência de Simão Bacamarte, mas também os fenômenos por ele observados em muitos enfermos e as reações à prisão e à soltura das pessoas. Amigos da sandice, o extraordinário é o que foge à ordem, ao convencional, e o assombro fica entre as luzes e sombras da admiração, do espanto, do terror.

E absurdo, que vem de “surdo, desagradável ao ouvido, incompreensível”, é outra palavra que ecoa do humour machadiano de O alienista. Quando padre Lopes reprovou como absurda a teoria de confinar os loucos na Casa Verde, o riso de Bacamarte, embora discreto, somou desdém mas também comiseração, fonte de ética, pelos vencidos. Vindo à mente a loucura legada pelo filósofo Quincas Borba a Rubião, junto com a teoria de Humanitas – sintetizada em “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas” –, tem-se a medida da totalidade absurda figurada pelo cientista tautológico.

Por isso, absurdo, o gesto final de Simão, de trancar os ouvidos à mulher e trancar-se na Casa Verde, é antinatural e nega seu próprio nome. Contudo, os ouvidos fechados contrastam com os “olhos acesos” da convicção científica do “ilustre” médico, que se entrega por mais bastante tempo ao estudo e à cura de si mesmo, até morrer sem alcançar nada. Simão absurdo, seu sobrenome Bacamarte, significando arma, contém a palavra arte.

 


Referências bibliográficas

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VILLAÇA, Alcides. Querer, poder, precisar: “O caso da vara”. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, USP; Editora 34; Imprensa Oficial, n. 6-7, p. 17-30, 2006.

VILLAÇA, Alcides. Machado de Assis, tradutor de si mesmo. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 51, p. 3-14, 1998.

 


Ieda Lebensztayn é crítica literária, pesquisadora e ensaísta. Mestre em Teoria Literária e doutora em Literatura Brasileira pela USP. Fez pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e na Biblioteca Brasiliana Mindlin / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (BBM/FFLCH-USP). Autora de Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis (Hedra, 2010). Organizou, com Hélio de Seixas Guimarães, os dois volumes de Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares (Imesp, 2019). Com Hélio e Luciana Schoeps, Primeiras edições de Machado de Assis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (Publicações BBM, 2022). E, com Thiago Mio Salla, os livros Cangaços, Conversas (Record, 2014) e O antimodernista: Graciliano Ramos e 1922 (Record, 2022).

[1] Recorde-se, do Memorial de Aires (1908), a reflexão que envolve a libertação dos escravos e a chegada de carta do filho postiço: “Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular”.

[2] Outra alteração empreendida por Machado foi extrair o trecho final da versão estampada em A Estação, que ria da transitoriedade da vida e da glória (cf. PIRES, 2017).