Um detalhe delicioso da vivência em Macau prende-se com a pronúncia da língua portuguesa por parte dos macaenses, ou “portugueses de Macau”, e pelos chineses que aprenderam o nosso idioma e o dominam com relativo à vontade. As diferenças são mínimas, e ao fim de algum tempo tornam-se quase imperceptíveis. A adaptação ao território leva-nos mesmo a utilizar com frequência algumas expressões que no início nos causavam alguma estranheza, e eu próprio dou por mim a dizer coisas que há vinte anos consideraria no mínimo “estranhas”. O processo de “macanização” da língua aparece quase sem que demos por ele, mas sem prejuízo da fluência ou do vocabulário. Resumindo este ponto, não só não se desaprende, como se aprende mais qualquer coisinha. Ficamos a ganhar.
Para quem só agora chega ao território, é possível que estranhe a pronúncia. O mais importante é evitar atitudes de arrogância ou desprezo, e caso ocorra um mal-entendido, repetir, explicar e tentar fazer-se entender com clareza, sem dar a entender que se está a “educar” o nosso interlocutor. É um mito que os macaenses ou os chineses lusófonos trocam o “r” pelo “l”, e dizem “lua” em vez de “rua”. Esse é um estereótipo fomentado pelos americanos. Alguns dos atentados ao português, muitos com resultados hilariantes, são normalmente cometidos por chineses que têm apenas um conhecimento muito básico da nossa língua.
É preciso ter em conta que muitos residentes são bilíngues, e para muitos deles a língua mais falada é o Cantonense, que tem uma articulação muito diferente da nossa. Existem casos de duplo-semilinguismo, um fenômeno que os linguistas identificaram em indivíduos que aprendem dois idiomas em simultâneo, acabando por não falar nenhum deles na perfeição. Atualmente os pais macaenses optam por inscrever os filhos no ensino veicular em língua chinesa, cuidando que sejam fluentes pelo menos nesse idioma. Uma opção pragmática, uma vez que Macau foi entregue por Portugal à República Popular da China em 1999. É necessário adaptar-se à nova realidade, por muito derrotista que esta decisão nos pareça.
Certamente que muitos leitores já ouviram falar do “patuá”, um dialeto local que era falado pela comunidade macaense até meados do século XX, e que hoje tem uma expressão residual. O “patuá” era considerado pelos puristas uma perversão do português, ou português mal falado, e o seu uso era desencorajado. Atualmente o “patuá” ocupa um lugar de culto, e tem-se trabalhado no sentido de torná-lo patrimônio intangível da humanidade. O grupo “Doçi Papiaçam di Macau”, que apresenta anualmente uma peça de teatro neste dialeto, tem feito um esforço para manter o “patuá” a mexer. O “patuá” não será propriamente um português adulterado, mas diria antes que é um português “improvisado”. Como caiu em desuso, estagnou, e o “patuá” que se fala atualmente é muito semelhante ao que se falava há cem anos, usando expressões que ao ouvido do português atual parecem um tanto antiquadas. O “patuá” é mais que tudo o cruzamento do português com a articulação do cantonense. Se fosse comida, seria o arroz frito com bacalhau.
Mas falando dos detalhes, expressões idiomáticas, regionalismos e tudo isso que dá ao português de Macau um sabor especial. Já falei aqui do uso do “r”, que os portugueses nascidos e criados no território têm alguma dificuldade em pronunciar nos casos em que o som é mais acentuado. “Carro” fica “caro”, “burro” fica “buro”, “carreira” fica “careira” e por aí afora. Já tentei fazer amigos macaenses pronunciar o duplo “r” corretamente, mas é complicado para eles. É uma situação com paralelo na dificuldade que os estrangeiros têm em pronunciar os tons em cantonense, e que tantas vezes nos fazem dizer disparates, mesmo sem querer. Para quem percebe aonde quero chegar, evito sempre pronunciar os números sete e nove em cantonense, e quando o faço não consigo escapar à risada marota dos meus amigos sinófonos.
Além da pronúncia deficitária do “r”, existe outra dificuldade com o ditongo “ão”, que soa sempre a “an” – é o caso de “cão=can”, “razão=razan”, “sabão=saban”. É um fenômeno mais raro que o do “r”, mas mesmo assim facilmente identificável. Como a língua cantonense consiste de palavras monossilábicas, há quem se atrapalhe com algum do nosso vocabulário mais composto. É famosa a dificuldade dos portugueses de Macau em dizer “politécnico”, que sai quase sempre “politénico”. Outras palavras como “cabeleireiro”, “miscigenação” ou “toxicodependência” não saem sem dar luta, ou pelo menos sem alguma hesitação. Mas isto está longe de ser um atropelo propriamente dito; exemplos destes entre portugueses de Portugal são também mais frequentes do que seria desejável.
Quanto ao vocabulário local, existem preciosismos que convém conhecer para evitar confusões. Em chinês uma prostituta é também chamada de “galinha”, e um prostituto é um “pato”, designações também adotadas pelos portugueses de Macau. Portanto, não se recomenda que se diga que uma mulher faladora “parece uma galinha”, ou a um homem que foi enganado num negócio que “caiu que nem um pato”. São expressões que devemos abandonar quando chegamos a Macau. Uma lanterna é um “foco”, troçar, fazer pouco é “lambar”, uma mulher intrometida é uma “chuchumeca”, graça ou piada é “chiste”, molho de soja é “sutate”, e o nosso típico arroz de tomate é por aqui mais conhecido por “arroz refogado”. Estes são apenas alguns exemplos de preciosismos locais.
Um dia falava com um amigo macaense e usei a expressão “mau hálito”, que o deixou meio confuso. Depois de me explicar melhor, foi-me dito que o que chamamos de “hálito” é aqui mais conhecido por “bafo”. Há outros casos em que uma palavra é por aqui mais conhecida por um dos seus sinônimos; assim “guloso” é “comilão”, “vaidoso” é “chique”, “delicioso” é “saboroso” e por aí afora. Isto não signifique que a maioria das pessoas não entenda o significado de alguma destas palavras, mas o uso da expressão mais utilizada facilita a conversação, especialmente se for em grupo. Existem termos do calão local que me habituei a usar quase inconscientemente, e que não se podem exatamente incluir no que se considera “boa educação”. Quando me refiro a alguém que leva um ralhete ou uma repreensão, digo que “levou piçada”. No outro dia apanhei o elevador lá no edifício onde trabalho e deixei escapar a um colega macaense que o dito cujo “estava putas cheio”, o que deixou uma senhora portuguesa que lá se encontrava de boca aberta. Não sei bem por quê, pois o elevador estava mesmo no limite da capacidade, e além do mais o que eu disse foi “putas de cheio”, e não “cheio de putas”.
Existem expressões que são traduzidas diretamente do chinês, que funciona como que uma “sombra”. É vulgar ouvir os pleonasmos “subir para cima”, “descer para baixo” ou “sair para fora”. Ouve-se muito a expressão “comer droga” em vez de “tomar droga”, ou simplesmente “drogar-se”. Quando dizemos uma obscenidade ou fazemos algum comentário menos apropriado levamos com um “você é muito feio”. Este não é um comentário à nossa aparência física, mas sim ao que acabamos de dizer: tornamo-nos tão feios quanto as nossas palavras. Existe uma comida local que consiste numa costeleta de porco frita entalada num papo-seco a que todos chamam “chu pa pau” – portugueses, macaenses e chineses. É impossível traduzir o nome deste petisco para português. Não é uma bifana, e não faz muito sentido chamá-la de “sandes de costeleta de porco”. Diz-se “chu pa pau” e todos sabem do que se trata. O “chu pa pau” é o ponto de encontro das culturas do território.
É divertido aprender todas estas “petites choses” que tornam Macau tão especial. Não tenha pressa em saber tudo, e mesmo os exemplos que citei neste artigo são apenas uma pequena amostra. Tenho a certeza de que ainda nem sei da missa a metade, e há um mundo de surpresas à minha espera. Para melhor se integrar em Macau faça como nas passagens de níveis sem guarda: pare, escute e olhe. E esteja sempre disposto a aprender, e, como nos ensinou o bom Buda, não se iniba de demonstrar a sua completa ignorância. E assim podemos encostar a cabeça ao estofo da cadeira e desfrutar melhor dessa experiência única que é Macau.