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Padre Vieira: uma exegese do capital

“(…) sobre as grandes notícias, que diz que tem
da Escritura, e Santos Padres,
persiste nas opiniões que eles rejeitam,
por não deixarem com elas porta aberta
 à introdução de erros, e esperanças judaicas,
como {ele declarante faz com} evidente perigo (…)”
(Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, 24º Exame)

A leitura dos trinta autos do processo inquisitorial de Vieira[1] deixa claro, para mim, que o Tribunal do Santo Ofício, nas diferentes qualificações acolhidas em Coimbra, acerta o alvo ao menos num ponto decisivo. É aquele em que afirma que o jesuíta quer conciliar o judaísmo, ou a admissão de algumas de suas práticas, com lugares das Escrituras restritos à exegese católica, com o propósito de agradar ou favorecer sobretudo a expectativa dos judeus batizados. Isto está dito em muitos passos e matérias do processo; por exemplo, na censura mandada ajuntar a ele em 16 de julho de 1666, referindo o tema vieiriano do “Quinto Império”:

“Quem porém não verá que para muitos será plausível a proclamação de um tal reino milenário acima de todo o mundo com tanta paz temporal que ninguém resistirá temporalmente e o que é mais, com tanta paz espiritual que o Diabo não terá absolutamente nenhum mérito para então tentar os homens subjugado durante todo aquele milênio — em que por isso ensina quase todos os homens a se salvar. Isto agradará sobretudo verdadeiramente aos judeus a quem promete ver os seus que são da mesma tribo, restituídos em dez tribos irem com eles próprios para a terra das antigas promessas na maior soberba. Acima de tudo, porém, agradará aos judeus batizados a quem se diz que podem impunemente esperar o seu Messias contanto que exteriormente não falem ou procedam contra o Evangelho”[2].

De maneira mais resumida, o mesmo está dito no Exame 27, onde se registra que Vieira queria “fazer {lícitas, e} compatíveis coisas entre si encontradas, como é o ser juntamente Judeu, e Cristão, a lei de Cristo, com a de Moisés, e as cerimônias de uma, e outra; (…)”[3]

Tirante o malicioso evidente das frases, parece-me que a fortuna crítica de Vieira, desde então, tem sido menos precisa na determinação desse objetivo fundamental, diria mesmo, inalienável de seus escritos, qual seja o de favorecer deliberadamente a acomodação de “esperanças judaicas” com tópicas escriturais utilizadas pela tradição hermenêutica justamente para condená-las como “erro” e “perfídia”[4]. Apenas que, desta constatação, não se segue absolutamente a “má tenção” que, de maneira profundamente injusta, imputa-lhe o Tribunal. É rigorosamente inverossímil supor no Padre Antônio Vieira qualquer intenção dúbia em relação à fé ou à Igreja Católica, qualquer vontade herética “de se perverterem os Cristãos Católicos {e se confirmarem os Judeus em sua perfídia, e cegueira}”(como se anota no Exame 24)[5], desde que se tenha em mente o óbvio: a sua vida inteira dedicada às missões nas brenhas do Brasil, a renovada obediência que sempre prestou à Companhia, mesmo nos momentos difíceis em que esteve ameaçado de ser expulso de seu grêmio, e, enfim, a persistente preocupação com a “missão cristã de Portugal” no mundo, entendida como esforço de criação de condições favoráveis ao fortalecimento do reino e à expansão universal da fé.

Mesmo na matéria controvertida do Quinto Império, o paraíso terreal iminente cujo anúncio Vieira julga poder ler no corpo das Escrituras, nada nela contraditou jamais a aceitação do governo espiritual do Papa. Este fato, aliás, reconheceu-o a própria Inquisição portuguesa, em nova qualificação, de que foi relator Frei Teodósio da Cunha (1662-1742), doutor em Teologia, lente de Coimbra e membro dos Eremitas de Santo Agostinho.[6] Em documento precioso, datado de 25 de abril de 1729, dado à luz por Mário Nunes Costa, o agostiniano pronuncia-se da seguinte forma a respeito da possibilidade de se publicar a sentença da Inquisição contra Vieira, bem como a apologia que o jesuíta escrevera das proposições censuradas, que acabara por tornar ainda mais pesada a sentença:

“Li por mandado de V.Sria. este manuscritto, em que se contem  a sentença do Santo Officio dada contra o Pe. Antonio Vieyra da Compa. de Iesu, e lida publicamte. ao mesmo Pe. na sala do Santo Officio da cidade de Coimbra em 23 de dezembro de 1667; e juntamte. a Apologia das proposiçõis de que foy arguido o mesmo P. e sobre que cahio a sentença. E me parece que o tal manuscrito não contem couza alguma, por que deva ser prohibido (…)”[7].

O parecer seguro de Frei Teodósio alivia Vieira das culpas denunciadas na sentença, e, na direção oposta, levanta sobre os qualificadores a suspeita de rigor excessivo por motivos injustificados. Assim, refere o comentário de Cornélio, A Lápide, sobre a de outros doutores, que não condena teses de teor milenarista como necessariamente heréticas:

[Em relação ao tempo futuro de] “(…) paz, e felicide. prometida a Igra. em q~ não ha de haver heresias, ou inimigos que a perturbem, mas hu~a sandide. constante sem necesside. de reforma ha de durar por mil annos antecedtes. ao Antichristo, em q~ no Apocalypse se diz q~ ha de estar Satanaz preso pa. não tentar, ou perturbar os home~s, não respeita esta opinião por heretica, ou erronea (…)”[8].

O mesmo tipo de observação faz a respeito da proposição em torno da existência do Quinto Império, que, para o qualificador, não é suposição herética se concebido “distincto accidentaliter” e não “substantialer do 4º”[9].  Comentário semelhante reserva para a afirmação vieiriana de que Rei português haja de ser o primeiro Imperador dele:

 “(…) não me parece que merece censura alguma; e só a merecerá de proposição temerária, se affirmar isto absolutamte. e não so como sosppeyta, como opinião provavel, como parece queria o P. Vieyra (…)”[10].

Também afirmar Vieira que há de ressuscitar um Rei de Portugal para ser instrumento da redução dos infiéis todos à fé de Cristo, segundo o parecer de Frei Teodósio da Cunha, não constitui “proposição heretica, nem erronea, ou sapiens hoeresim, pois não he contradittoria de alguma proposição legitimamte. deduzida de huma de fè, e outra evidente, ou ao menos mui provavel”, embora seja “temeraria por carecer de fundamto. grave”[11].

Mas nem era preciso chegar a isenção tão ampla de culpas, pronunciada por autoridade institucional do Santo Ofício. Está perfeitamente claro nos papéis do processo de Vieira que não havia nenhuma “má tenção” contra a Igreja ou a cristandade católica, nem havia, como admite expressamente o próprio 2º Assento do Santo Ofício, de 18 de Outubro de 1667, que orientou a sentença condenatória, qualquer indício de prática de judaísmo de sua parte. O primeiro atenuante da sentença aí relatado, reza justamente que “em todos esses autos, se não prova legitimamente contra o Réu, fazer ele, ou dizer coisa (alguma formalmente) herética, ou judaica, sobre que a suspeita, ou presunção acima dita de heresia, ou judaísmo {possam assentar} e vestirem-se daquelas qualidades que o direito requer, e aprova (…)”[12].

Contudo, afora a evidente distorção ou, essa sim, má tenção em querer fazer de Vieira um herético – na ocasião do processo, para perdê-lo, e em nossos dias, muitas vezes, para louvá-lo como transgressor e libertário –, parece-me importante não perder de vista que as teses proféticas de Vieira desejam, resumidamente, isso mesmo que o Tribunal diagnostica: ser atraentes para os cristãos novos. Para usar uma analogia de proporção, eu diria: tais teses desejam ser tão atraentes para os cristãos novos, nas práticas do espírito, vale dizer, como fórmula de convivência intelectual, religiosa e moral com os católicos portugueses, quanto poderia sê-lo a isenção do confisco de seus bens no tocante à matéria temporal. Quero dizer com isso que a afirmação profética do Quinto Império contempla uma parte essencial da argumentação de Vieira destinada a convencer os judeus de que deveriam retornar a Portugal e, lá, empregar o seu cabedal, pois apenas àquele Estado estava destinado um papel compatível com o futuro previsto pela crença judaica.

Assim, exemplarmente, Vieira concilia a vinda do Messias, e a consequente reunião dos judeus dispersos pelo mundo, com o aparecimento do Príncipe Encoberto português, fundador deste novo Império espiritual e também temporal, que possibilitaria a recondução da gente de nação às suas terras. As teses expostas na célebre carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, dirigida à Rainha-regente D. Luísa de Gusmão, por intermédio de seu confessor o Bispo do Japão, em abril de 1659 — que foram depois esmiuçadas, refundidas, modificadas, mas sobretudo sutilizadas, ao longo do processo inquisitorial –, agem sempre na mesmíssima direção. É o que se pode comprovar na sessão em que o Padre Vieira, segundo o escrivão do Tribunal,  admite ter dito o seguinte:

“(…) que para convencer aos Judeus, não se lhes havia de negar absolutamente o poderem ainda ser restituídos à sua pátria; antes se lhes havia de provar com as Escrituras, que esta restituição, se a houvessem de ter, havia de ser por meio da Fé, não do Messias, que eles esperavam, senão do verdadeiro Messias Cristo IESU, que já veio”[13].

E o mais notável é que as tais provas escriturais acomodam-se perfeitamente, em seu discurso, com outras que descobrem correspondências cabais entre as expectativas sebásticas, admitidas ou toleradas, e as judaicas, execradas pelo Tribunal. Assim, no processo, consta o quanto Vieira estaria disposto a “conceder” aos cristãos-novos:

“(…) convertendo-se os ditos Judeus inteiramente à Fé do mesmo Cristo, tendo-o por verdadeiro Deus, e Messias prometido, não seria inconveniente conceder-lhes, que na suposição da dita Fé Católica, esperassem juntamente o ser restituídos ainda à sua pátria, por meio de alguma pessoa, da sua, ou de outra nação; assim como em Portugal, não encontra, nem encontrava a verdadeira Fé Católica dos Portugueses o esperarem muitos deles no tempo da sujeição de Castela, o haverem de ser eximidos dela, e restituídos a sua antiga liberdade, por meio de el-Rei Dom Sebastião, ou de outro Príncipe”[14].

Mas se a situação alegada de extremo risco da soberania nacional justificaria o máximo ajuste de esperanças messiânicas judaicas e portuguesas, tanto mais manifesta é a decorrência prática que Vieira extrai dela: a de que o instrumento fundamental para reparar-se o “estado miserável” do Reino, na ordem temporal, era inequivocamente o capital judeu. E isto não apenas pelo seu montante, que reputava contudo como sendo de “grande número de milhões”, mas também pelo talento incomum da “gente de nação” em empregá-lo. O remédio judaico está tão presente nas reflexões de Vieira a respeito do Estado português, que, já na Proposta que faz a D. João IV, em julho de 1643, portanto mais de vinte anos antes de seu processo, o jesuíta sugeria-lhe justamente que:

“Se vossa majestade for servido de os [cristãos-novos] favorecer e chamar, será Lisboa o maior império de riquezas, e crescerá brevissimamente todo o reino a grandíssima opulência, e se seguirão infinitas comodidades a Portugal, juntas com a primeira e principal de todas, que é a sua conservação”.[15]

O gênio comercial único que o jesuíta supõe nos judeus é descrito, em estilo agudo, por meio da equivocação da palavra “inteligência”, usada com o sentido de “indústria”, isto é, como capacidade de ajustar vantajosamente necessidade e custo,  e também com o de “entendimento secreto”, vale dizer, como probabilidade de ter notícias confiáveis e recentes sobre as políticas econômicas dos mais diferentes reinos, por meio de uma rede de informações sigilosa estabelecida entre a gente de nação em todo o mundo. É o que escreve no mesmo Papel:

“Ajudar-se-á também vossa majestade da inteligência destes homens, porque não só por sua indústria se podem trazer das nações estrangeiras por muito acomodado preço as coisas necessárias para a guerra, mas também por suas inteligências secretas se poderão saber os desígnios e granjear as notícias dos reinos estranhos, sem as quais se não pode bem governar o próprio.”[16]

E conclui a mais invariável de suas conclusões, a par da recomendação do emprego perfeitamente honesto da razão de Estado por parte dos governantes dos Estados católicos:

“Enfim, senhor, Portugal não se pode conservar sem muito dinheiro, e para o haver, não há meio mais eficaz, que o do comércio, e para o comércio não há outros homens de igual cabedal e indústria aos de nação.”[17]

Com efeito, há algo de essencialmente étnico na maneira de Vieira conceber “os negócios”, ou “o dinheiro”, termos que entende fundamentalmente no interior da riquíssima semântica seiscentista do “judeu”. Por isso mesmo, nessa concepção étnica, há muito de arcaico e de estranho ao mundo burguês — diferentemente do que dizem os que gostam de pensá-lo como um pensador avant la lettre, no caso, antecipador de tendências ilustradas ou revolucionárias. A meu ver, engana-se, por exemplo, um crítico como Otto Maria Carpeaux, que o pensa de um ponto de vista em que o século XVII funciona como “época de transição”, e, com base nessa perspectiva teleológica, interpreta as “pompas monárquico-religiosas”, que tipifica sob a rubrica de “Barroco”, como “espécie de pseudomorfose do aburguesamento”[18]. Nessa perspectiva, em que a história evolui numa única direção e com hora marcada, ele pode concluir que, como horizonte de chegada, “o verdadeiro Encoberto do sebastianista Vieira seria o burguês”[19].

Para discordar fontalmente desse viés interpretativo, de que Carpeaux é só um dos nomes conhecidos — e deixando de lado a impropriedade específica da aplicação do termo “sebastianista” a Vieira –, basta considerar que o jesuíta jamais parece ter imaginado, em qualquer de seus escritos conhecidos, que o capital pudesse ter determinações materiais próprias, ou mesmo, que costumasse ser surdo à sereia sutil da teologia, o que é, convenhamos, básico em matéria de verossímil historicamente ajustado de “burguês”. E, com efeito, apenas quem, como o jesuíta, jamais admitiu a autonomia das produções econômicas, num mundo que crê verdadeiramente sacramentado com a presença de Deus — Ser e causa de ser de todos os signos –, julgaria poder convencer o capital a aplicar-se aqui ou ali, confiadamente, com o seguro quase exclusivo das especulações proféticas. Um seguro, aliás, cujo único lastro palpável era, e é ainda, o tremendo domínio da língua – quando não fora o da lábia, como teria assinalado agudamente D. João IV, diante das razões sempre invencíveis alegadas por seu valido.

Seja como for, os autos do processo inquisitorial deixam ver que a formulação profética do Quinto Império, tal como pensada por Vieira, fornece amplamente a sustentação teológica da principal assertiva política em jogo: a acomodação de judeus e cristãos-novos no reino. Em termos mais precisos, tal formulação trata de conciliar aspectos importantes da crença judaica ao corpo profético do catolicismo de modo a que tanto os judeus se convençam do interesse de tornar a Portugal, quanto os portugueses admitam o valor cristão e conjuntamente político-econômico dessa convivência.

Penso que, muito sinteticamente, as profecias de Vieira moldam-se no interior desse quadro. Ele as fabrica com o mesmo tipo de convicção que argumenta a respeito da conveniência da reforma nos “estilos” da Inquisição, de modo a obter o investimento de recursos da “gente de nação” no Estado falido e, ao mesmo tempo, conseguir afastar os falsos “escrúpulos” e os supostos “inconvenientes” cristãos em aceitá-lo. Para o jesuíta, nada pode ser mais fiel à doutrina do Evangelho que esse ajuste salvador, o qual descreveu certa vez, em carta a D.João IV, como o ato cristão de “dissimular a cizânia”:

“(…)Cristo Senhor nosso falando em próprios termos, aconselha que se deve dissimular a cizânia para sustentar as raízes do trigo, entendendo por cizânia os infiéis, e por trigo os católicos, como afirmam todos os doutores; e no mesmo lugar repreende o Senhor, o falso e mal entendido zelo, dos que, com perigo da conservação do trigo, queriam arrancar a cizânia e mandou que a deixassem estar e crescer, junto da mesma seara.”[20]

Desde logo, penso que seria equivocado chamar a essa construção exegética conciliatória de “ideológica”, no sentido contemporâneo usual de “falsa consciência”: não se trata absolutamente de fantasiar um lado, o teológico e profético, para disfarçar ou dourar a pílula do outro, o político e econômico. Não fora a verossímil e sincera crença de Vieira na finalidade cristã possível dos empregos judaicos seria inconcebível que ele tomasse manifestamente o lugar do capital como objeto de uma exegese tão ousada, isto é, duramente disputada segundo os procedimentos e lugares da própria tradição exegética. Ou, ainda mais, seria improvável que aplicasse anos de sua vida, dois dos quais recluso em uma cela, a reclamar pena e tinta para elaborar explicações magnificamente complexas, às quais, contudo, não votasse valor algum. Ora, muito pelo contrário, Vieira julgava-as matérias “novas e não vulgares”, capazes de “abrir novos fundamentos” da verdade, possíveis de ser tratados apenas após os seus “quarenta anos de estudo” das Sagradas Escrituras, buscando nelas, como diz, “não as flores senão as raízes e trabalhando por alcançar o verdadeiro, genuíno e literal sentido com que foram escritas e ditadas pelo Espírito Santo”[21].

Vieira, não resta dúvida, julgava o assunto da Quinto Império, traduzido em suas tantas proposições a respeito da acomodação judaica na escatologia salvífica católica, um tema gravíssimo e, mesmo, como escreve com todas as letras na Petição ao Conselho Geral do Tribunal do Santo Ofício, de 21 de setembro de 1665, um assunto digno de um Concílio inteiro da Igreja:

 “E algum houve que considerando a grandeza e importância de muitas das ditas matérias e a utilidade que do conhecimento delas se pode seguir à universal Igreja e à conversão de muitas almas de Ateus, Gentios, Judeus, e de todo o outro gênero de infiéis, e hereges, julgou e disse que eram merecedoras as ditas matérias, de que na Igreja se fizesse um Concílio para maior qualificação delas”[22].

Além disso, para conhecer o extraordinário empenho de Padre Vieira na matéria, basta lembrar que estava patente, a certa altura do processo inquisitorial, que tão logo abdicasse da discussão dessas questões teologicamente espinhosas, aumentariam muito as suas chances de abreviá-lo e de ver-se finalmente restituído ao beira-mar de que sua saúde parecia depender. E o jesuíta simplesmente não abre mão de sua defesa e disputa, a despeito de todo o sangue que alegava cuspir, dia após dia. Por tudo isso, parece razoável admitir que o Padre Antônio Vieira acreditava, sim, na alta façanha teológica, não apenas política, de suas interpretações proféticas. Acreditava, portanto, na Providência a manejar o dinheiro segundo a finalidade católica da criação, no desígnio divino a regular os negócios a favor de seu rebanho. O “dinheiro” de que fala, pois, não é absolutamente o mesmo do burguês: longe de funcionar como um instrumento laico, ele é tão encoberto e sobrenatural quanto o Vice-Cristo do Quinto Império ou o Sacramento da Eucaristia.

Em suma, se é possível dizer que as exegeses do futuro produzidas por Vieira eram atos verdadeiramente beatos de construção da sustentação teológica, necessária e inalienável do plano de fortalecimento do Estado católico moderno e da Igreja Romana, também é razoável supor que, por meio delas, julgava-se apto a convencer os “homens de negócio”, como ele próprio estava convencido, de que o melhor fundo para aplicação de seu cabedal passava por Portugal, cuja ruína não deveria ser senão momentânea.

Observa-se, pois, quão equivocado andava o Tribunal no tocante à atribuição de culpa de “maquiavelismo” a Vieira. O tour-de-force profético-econômico mostra suficientemente que ele participava essencialmente da linguagem comum dos inquisidores, aquela que não reconhecia uma razão autônoma ao governo político e ainda menos ao comércio ou ao dinheiro, isenta de considerações religiosas e morais. Ora, as praças de França, Holanda e Inglaterra, às quais mais acorriam comércio e dinheiro naquele período, sabiam dispensar-se das distinções escolásticas para buscar modos próprios e consistentes de multiplicar-se. Estavam bastante cientes das atrações efetivas do mercado que se firmava com suas próprias leis –, não importa o que mais demonstrasse o engenho vibrante ou apocalíptico dos oradores sacros. Assim, a crença infinita de Vieira no poder de germinação da palavra cuja semente é Deus, o seu esforço para especificar os distinguos teológicos, os quais, por sua vez, coexistiam com um conhecimento apenas superficial das soluções produzidas pelo novo tabuleiro europeu da riqueza econômica, tudo isso ressalta a sua adesão não ambígua aos fundamentos do catolicismo militante, definitivamente contrários à autonomização das razões materiais.

Bem pesadas as coisas, portanto, a condenação sofrida pelas idéias de Vieira na rede das qualificações do Santo Ofício pouco ou nada tem a ver com um capítulo do fracasso ou da hesitação no avanço do espírito burguês na Península. Decididamente, o jesuíta não serve como figura da consciência pré-ilumista barrada pelo obscurantismo inquisitorial. Se quisermos falar em consciência, parece-me, de direito, atribuir-lhe aquela de um homem de fé que defende a hegemonia do Estado Católico, e cuja estratégia passa necessariamente pela acomodação das diferenças étnico-religiosas no seio da Monarquia temporal.

A verdadeira exegese do capital a que Vieira procede em seus escritos é parte essencial dessa estratégia, e, a rigor, evidencia-se que “capital”, enquanto tomado como matéria exegética,  é termo ostensivamente distinto daquele que empregamos no presente. Tendo isso em mente, a sentença do Tribunal, controlado por dominicanos, revela sobretudo contradições internas ao catolicismo do final do XVII, quando se dispersa o espírito da unidade contrarreformista em disputas nacionais e querelas paroquiais. Ademais, neste momento, já são muitas as dificuldades de se tomar um partido claro frente às tradições místicas e costumes variados com que vai-se defrontando o próprio desdobramento internacional da militância da Igreja. Agora, a anterior unidade contrarreformista fica obrigada a reinterpretar-se por esse mesmo contingente de crenças e práticas diversas, de modo a alcançar contornos mais flexíveis e acomodatícios, e, enfim, mais persuasivos. Isto, claro, desde que permanecesse insistindo em sua vocação de política católica e, por definição, universal. A disposição de Vieira nunca foi outra.

 

 

Pátio da Inquisição, Coimbra, Portugal

https://www.youtube.com/watch?v=rPpy6U_jX

Leia a respeito das sinagogas de Coimbra

http://questomjudaica.blogspot.com/2013/12/coimbra.html

 

     [1]Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição (ed.A.F.Muhana): SP, Editora Unesp/Fundação Cultural Estado da Bahia, 1995.

     [2]Idem, p. 408.

     [3]Idem, p. 311.

     [4]São termos presentes, por exemplo, no Exame 24, de 14 de maio de 67; in: Autos…, op. cit., p. 279.

     [5]Idem, ibidem.

     [6]O documento está transcrito no artigo de Mário Nunes Costa, Fr. Teodósio da Cunha, qualificador do Pe. António Vieira em 1729, in Arquivo de Bibliografia Portuguesa, Coimbra, 1(2), 1955.

     [7]Idem, p. 43.

     [8]Idem, p. 44.

     [9]Idem, p.45.

     [10]Idem, ibidem.

     [11]Idem, ibidem.

     [12]Autos…, op. cit., p. 442.

     [13]Idem, p. 310.

     [14]Idem, p. 310-11.

     [15]Proposta feita a El-Rei D. João IV em que se lhe representava o miserável estado do reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa pelo Padre Antônio Vieirain Escritos Históricos e Políticos, SP, Martins Fontes, 1995. Citação à p. 292-3.

     [16]Idem, p. 293.

     [17]Idem, p. 294.

     [18]“Aspectos ideológicos do Padre Vieira” in: Sobre Letras e Artes, organizado por Alfredo Bosi; SP, Nova Alexandria, 1992. Citação à p. 56.

     [19]Idem, p. 58.

     [20]“Proposta feita a el-rei D.João IV (…)”, op. cit., p. 296.

     [21]“Petição ao Conselho Geral da Inquisição portuguesa, in: Os Autos…, op. cit., p. 120.

     [22]Idem, p. 125.


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos