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Luis Dolhnikoff poeta

O poeta paulistano Luis Dolhnikoff vive longe da civilização. Mais precisamente no Pântano do Sul, uma praia isolada de Florianópolis. Vem daí o título do livro que acaba de lançar pela Quatro Cantos.  Impressões do pântano completa uma trilogia composta por Lodo (Ateliê, 2009) e As rugosidades do caos (Quatro Cantos, 2015, finalista do Jabuti 2016). Cada poema do livro (e dos livros), de diferentes formas, remete ao caos, ao pântano que se tornou o mundo contemporâneo.

Toda utopia hoje mora no impossível. Dentro do real, do centro mesmo da real realidade, o poeta, atento, alvo de tudo, parece que escreve com os dentes trincados de raiva. O único que lhe interessa é uma completa cumplicidade. Ele interage com as coisas que erram.  

Chega a ser indecente essa tarefa justamente porque é (sempre foi?) indecente a vida, a dialética e os sujos conluios da política, como também são impróprias a dor e a flor dos encontros e desencontros. Um espelho do caos. Esse tipo de poesia passa longe do belo, porque o belo passa longe. O leitor não se sente à vontade ao deparar-se com essa poética crua. Dolhnikoff escarnece e parece mostrar, atônito, que traz as mãos vazias. Mas nada lhe escapa, pois tudo interfere e machuca.

A poesia de Dolhnikoff é ácida até o deboche: “enquanto ela faz pão \ faço poemas \\ o pão alimenta o corpo \ o poema \ a ilusão \ de que possa gerar alguma merda”. E assim começa o livro. O poeta escreve com dinamites, com uma certíssima lucidez, toda hora cínica.

Também porque a irrelevância humana é gritante, e os apetrechos, os artefatos da engrenagem, parece que tudo sabem e tudo dominam, contudo, as máquinas, ao mesmo tempo que não temem a morte, também não usufruem, não são capazes de aprender com a dimensão da alegria, das lágrimas de amor e do ódio. “Computadores não podem saber o que é um anjo”, provoca o poeta.

Ateu, Dolhnikoff não deixa de procurar Deus, que quase se faz presente nos versos. Como as coisas mais ou menos triviais, portas, cães que latem (pode parecer óbvio, mas não é), e o mistério que reside na singeleza de um ovo. Dialogando com Fernando Pessoa: “nascemos de ovos: \ se a alma existe \ ela é pequena \\ pouco ou \ nada \ vale a pena”. Drummond também entra na roda: “tinha um erro no meio do mundo”, o poeta rebate, matreiro. E vai além: “tenho um par de botinas \ velhas e marrom \ muito parecidas \ com as de van gogh \\ se eu cortasse uma orelha \ seria uma imitação \ mas não seria uma solução”. A poesia atravessa o que perdura e o que fenece. Ela serve para fazer conexões entre coisas díspares, entre dessemelhantes.

Dolhnikoff corteja o incerto e não despreza o lado lúdico quando escreve, mesmo quando aborda os lados obscuros do mistério, ao questionar diretamente o abstrato que orienta budistas e até ateus. Cabe na poesia, ultrapassa a poesia algo do imponderável que talvez esteja nas raízes do cristianismo, nos evangelhos canônicos, no monoteísmo, nas palavras do Corão e na placidez nada absurda do budismo, temas aqui de poemas: o poeta encara de frente o breu e a suposta luz de todos eles – que não encontra, diga-se.

Mas que a alma persiste, isso é quase inegável. Dolhnikoff sugere que existem certos fantasmas que moram nas dobras: no coração das máquinas. Sempre cínico, ele arremata os seus “discursos filosóficos” de maneira peculiar: “o budismo \ descobriu o diagnóstico \\ não creio \ na sua crença em qualquer possível cura \\ a mente \ é ela mesma \ a consciência \\ o caminho \ não é a meditação \ mas a demência”.

Dolhnikoff, com sua poesia, impacientemente joga sua isca, pesca o peixe que vier, e o devolve às águas. O peixe\leitor, no caso, volta ao mar, mas volta subversivo, inquieto, mais atento e menos passivo. Sim, a boa poesia e o bom poeta não brincam em serviço.

São os olhos dos artistas, são os olhos dos poetas que nos recolocam diante e dentro das coisas. Pode parecer estranho e paradoxal, mas sem esperança, sem mínimas doses de lirismo – ainda que um lirismo oculto, velado, latente – toda e qualquer poesia perde o sentido. Atento a isso, Dolhnikoff não despreza essa quase falácia. Ele nos faz crer que existe um lirismo rude, controverso, mas persistente.

Sim, o poeta não deixa de esquadrinhar o que nos move e nos atormenta: o amor. Ele vai, ele pira em busca dos motivos, da falta dele, do amor como um todo. O poeta pergunta: “onde se funda o amor?”. E encontra, ou inventa, lugares inusitados, armadilhescos, onde por vezes cresce essa luz que alucina: “na gruta úmida da garganta”; “no fogo líquido do sangue”; “na noite morta do céu da boca”.

Mas é mesmo o cotidiano, a barbárie, o real, o dia a dia que é a matéria-prima dos poemas de Impressões do pântano. Ele escreve para os da sua tribo e os seus versos nunca são neutros, flácidos ou indiferentes. O aço de algo forte prevalece no real e na poesia de Dolhnikoff, que mistura Julio Cortázar, Van Gogh, Carlos Drummond, Régis Bonvicino e Paulo Leminski numa “padaria poética” que nos oferece o biscoito mais fino e a mais doce e amarga cachaça. Polifônica, lisérgica, na poesia de Dolhnikoff aparecem mesmo alguns ecos de Roberto Piva. E sim, no final das contas ele entrega o jogo: “A poesia talvez seja uma das poucas capacidades humanas a se salvar da grande perda distópica final”. “A poesia é irrelevante.” “A irrelevância da poesia não é irrelevante.”

Nada nos alcança, tudo nos ultrapassa, e a poesia serve, quando muito, para recolher os escombros depois de todas as tempestades. Foi-se o tempo das rimas fáceis. Não tem sobrado pedra sobre pedra. Poetas do calibre de Luis Dolhnikoff sabem precisar, sabem dizer do teor de açúcar ou do tanto de acerbo que existe em cada coisa mensurável.

AB: Você chegou a dizer que escreve para “tentar dar conta poeticamente da grande confusão contemporânea”. Fale mais sobre isso.

Não há uma resposta curta, mas encurtada. No final do século XX, depois do fim das certezas clássicas, das grandes utopias políticas e das vanguardas artísticas, os poetas ficaram sozinhos, atomizados, por sua conta, cara a cara com o confuso mundo contemporâneo, esvaziado de todas as referências, tanto temáticas quanto formais. As duas principais reações foram o retorno a um eu lírico apequenado, a uma poesia centrada no próprio poeta e em seu cotidiano, uma reação fácil, autoexplicativa, e explicativa também do fato de a poesia atual interessar quase que somente aos próprios poetas, e uma nova poesia engajada, aquela que “se desengaja da linguagem poética para servir à mensagem de uma causa” (hoje, o politicamente-correto). Ambas alicerçadas em certo retaguardismo formal, que no limite não passa de prosa cortada aleatoriamente e margeada à esquerda. Ficam de fora tanto o mundo contemporâneo quanto a poesia que com ele se meça.

AB: Você deixa transparecer na maioria de seus poemas uma certa raiva, ou indignação. Faz sentido a observação? Se sim, em que medida essa atitude, essa postura interfere na sua produção poética?

Exasperação, talvez. O motivo simples é o mundo ser uma merda. O complexo é a resposta acima. Não bastasse ser uma merda, o mundo atual ainda é uma merda confusa. E isso interfere quase que totalmente, e necessariamente, na minha produção poética. Porque não sou sociólogo. Não preciso nem quero buscar certa neutralidade ideal face ao “objeto de estudo” – que, no meu caso, é na verdade objeto de enfrentamento estético. Se o mundo é uma merda, que o seja. E que seja tratado de acordo. Acrescento apenas que o “quase” acima se deve à pequena parte da minha obra que não tenta enfrentar o mundo, mas a beleza. Quando ela é o tema, não há nenhum raiva e indignação alguma.

AB: No poema “A máquina do mundo desmontada” você diz, ou constata: “tinha um erro no meio do mundo”. Que desacertos, que enganos, que absurdos são esses?

O erro no meio do mundo é haver uma pedra no meio do caminho. Caminhos existem para ser atravessados. Um caminho impedido é um anticaminho, é menos que um nada, porque não é neutro, é a afirmação de um vazio, de uma negação. De um erro. O mundo é um conjunto de mais caminhos empedrados do que seria aceitável, ou correto, ou justo, ou desejável. Dizendo de outro modo: que merda fez a espécie humana para ter uma existência tão atribulada? Não sou cristão, logo, o pecado original não me diz nada. Também discordo de Camus: o absurdo da existência, o suicídio, ou a revolta etc. Se resposta existe, está na biologia: nascemos com cabeça, tronco, membros e instinto de sobrevivência. “Vive-se / porque se sobrevive // sobre viver / nada mais a dizer”, como digo no poema “Hino mínimo do ateu”. Simples assim. Sem prejuízo do absurdo.

AB: Como é a sua rotina como escritor, como poeta? Como você avalia o cenário político\cultural brasileiro?

Sou de São Paulo, a repugnante, mas vivo há anos no Pântano do Sul, uma praia isolada de Florianópolis, ainda de pescadores. Em suma, longe da civilização. Divido mais ou menos os dias entre trabalho civil, revisões, preparações, traduções, crítica, e minha criação literária. Não acredito em prosa poética ou poesia em prosa. Isto dito, também escrevo ficção. Estou terminando um romance passado em São Paulo na segunda metade do século XX, “1999”. Quanto ao cenário político-cultural brasileiro, creio ser o filho senil de uma direita engrandecida pelo apequenamento da esquerda e de uma esquerda apequenada por uma sucessão de grandes derrotas históricas no fim do mesmo século XX. A esquerda abandonou a luta pelo poder político-econômico e adotou a luta pelo “poder” sociocultural. O problema é que o verdadeiro poder é o econômico-militar.

ANATOMIA DO AMOR

onde se funda o amor?

na flor invisível do perfume de flúor
que da boca aberta desabrocha?
na flor visível dos lábios?
nas pétalas musgosas das mucosas?
na noite morna do céu da boca?
na luz leitosa dos dentes?
no molusco musculoso da língua?
na gruta úmida da garganta?
no calor sem chama que a torna rubra?
no fogo líquido do sangue?

onde se fixa o amor?

nos ocos escuros do coração
não

na esponja airada dos pulmões
nões

no tubo tosco da traqueia
neca

no vazio esguio do esôfago
nego

no maquinal mecanismo do diafragma
nada

no antro amargo do estômago?
no pão aguado do pâncreas?
nos favos sanguíneos do fígado?
no vão viscoso da vesícula?
no coágulo lasso do baço?
no esgoto torto do intestino grosso?
no verme enovelado do fino?
na usina de urina dos rins?
na botija de mijo da bexiga?
no cavo tinto da cava?
na gosma da gordura?
na borra da bosta?
no oco do cu?
no vazio da alma?

na necessidade
sem fim ou meio
de preenchê-lo
de preencher-se
que o mesmo amor insuflara

UM POETA

um poeta
antes de o mundo saber
de sua recente existência
é um poeta apenas
por dizer a si mesmo ser
um poeta

em seguida anuncia
a poética novidade
a uma bela amiga

então tem de escrever

para fazer também o mundo saber

para seguir
perseguir
prosseguir
o talho do seu trabalho de criação

para um país de analfabetos?
para parir um novo manual de sexo anal?
um anuário de sexo manual?
para um mundo surdo à sua língua muda?
para meter o cu na língua?
para ver se muda o mundo?
para descrever o novo
velho capitalismo de consumo
a consumir todos os sentidos com o sumo
sumo dos cérebros?
para ouvir o silêncio da alma?
para acalmar a ânsia, a insônia, a insanidade?
para flanar pela cidade?
para reclamar da sociedade?
para regurgitar a saciedade?
para falar da fome?
para pedir a paz?
para perdoar os pais?
para desprezar o país?
para encarar o ralo sujo da história
tampado pelos trapos ensanguentados
das utopias?
para chamar o encanador?
para se entupir de dor?
para acalmar o medo, aclarar a noite, aclamar o que não era ou fosse?
para desvelar a verdade, a beleza, a arte?
a arte da verdade?
a verdade da beleza?
a beleza da verdade?
a verdade da arte?
para tentar surpreender a longa sombra de um fantasma de qualquer grandeza passada?
para não afundar no lodo saturado de himalaias de pequenezas?
para calar o cão do caos?
para mijar nos cantos da página?
para pastar na grama da gramática?
para passar o tempo?
para passar as férias?
para passar a limpo?
para não passar por idiota?
para repassar a história?
para recordar os mortos?
para aportar em algum porto?
perolar os porcos?
espantar o touro das circunstâncias?
tecer a mortalha do amor e amortecer o temor da morte?
para ecoar o ritmo dos tiros disparados pelo coração explodindo?

André di Bernardi é natural de Belo Horizonte, é jornalista e poeta, autor de A hora extrema, O ar necessário e É quase noite no coração daquelas águas, entre outros.