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Vieira essencial

A conhecida coleção da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, “O essencial sobre…”, dedica um volume duplo, 101-102, ao Padre Antônio Vieira (1608-1697). Como é especialmente adequado a uma coleção destinada a dizer nem mais nem menos do que “o essencial” sobre um autor e sua obra, escalou-se para escrever o livro um estudioso com autoridade firmada e juramentada sobre a matéria, cuja visão da obra de Vieira é ao mesmo tempo eruditamente abrangente e informadamente especializada. Falo do catedrático de Coimbra, durante longos anos Diretor da Biblioteca da Universidade, o Professor Aníbal Pinto de Castro. O mesmo homem que está, com justiça, nas mesas de abertura e encerramento dos principais congressos portugueses e internacionais de homenagem aos quatrocentos anos de nascimento do jesuíta, comemorado neste 2008.

O Professor Aníbal é autor também de outro livro que pretendia dizer o essencial sobre Vieira, lançado por ocasião da última grande efeméride do autor, em 1997, nos trezentos anos de sua morte: António Vieira: uma síntese do barroco luso-brasileiro. Não se tratava de um livro pequenino como este, mas ao contrário, bem grande, de capa dura, com muitas reproduções e imagens de época, que ornamentavam as informações e análises que trazia – o que, tudo somado, tornava-o um belo table book. Até há pouco ainda o trazia sobre minha mesa de centro, na sala de visitas, ao lado de outros livros de mesma aparência. Só o retirei de lá à espera dos novos belos volumes que devem ser publicados agora, quando do quarto centenário.

O novo livrinho dedica sete de seus oito capítulos a uma rápida e precisa passagem pela biografia de Vieira. O seu guião é composto pelas duas obras decisivas do historiador João Lúcio de Azevedo (1855-1933): a coleção das Cartas (1925-1928), e sobretudo a História de António Vieira (1918-1920). Também com relação às divisões da longa vida de Vieira, o Professor Pinto de Castro tende a seguir as clássicas divisões de João Lúcio. Assim, começa pelo relato do que se passa entre o nascimento em Lisboa e a entrada na Companhia de Jesus da Bahia, que, adianto, o Professor Aníbal não acredita ter sido planeada contra a vontade dos pais, como suspeita o historiador.

Em seguida, passa ao seu período de formação jesuíta na Bahia e em Olinda. Aí, ainda à maneira de João Lúcio, cujo modelo historiográfico estava informado pelo método do “realismo crítico” germânico, o Professor Aníbal refere a “mentalidade” a dominar a Companhia, a qual, por sua vez, deveria forjar a “forma mentis” de seus membros. De qualquer maneira, o fórceps da educação jesuítica ajusta-se ao que é tratado como caráter próprio e espontâneo de Vieira: afetivo, sujeito a achaques e arroubos passionais, suscetível sempre aos voos sobressaltados da imaginação demasiado lépida e atrevida. É um retrato “moral” certamente derivado do tom voluptuoso do germanismo da virada do século 19, mas é verdade que até agora nenhum outro esboço obteve foros mais verossímeis do que esse, no ramerrame dos estudos vieirianos.

O terceiro capítulo trata do tempo em que Vieira atuou como diplomata e pregador do Rei D. João IV, seu grande protetor, que o envia a diversas cortes da Europa a tentar estabelecer alianças e ações capazes de sustentar a autonomia do pequeno Portugal diante da beligerância dos grandes de Europa. O capítulo seguinte é dedicado ao seu retorno ao Brasil, desta vez como visitador do Maranhão. O Professor Aníbal, fiel ao modelo de João Lúcio, dá-lhe o título (que tem valor de epíteto) de “O missionário”. Embora se aplique com justiça às ações do jesuíta no Maranhão, sempre guarda a mesma impropriedade de todas essas divisões mais ou menos estanques e esquemáticas do modelo de João Lúcio: tende a separar o inseparável, ou ajuntar em etapas o que se dá de maneira complexa e muitas vezes concomitante. Em contrapartida, o método tem a vantagem inegável de submeter todas as circunstâncias do período a uma dominante única que esclarece, mesmo simplificando, a matéria complicada de uma ação indiferente a áreas especializadas.

O quinto capítulo é dedicado ao tempo do seu processo inquisitorial, quando a derrota da facção joanina da corte, ao fim do período da regência de D. Luísa, faz com que a Inquisição finalmente angarie apoio político para iniciar o processo contra Vieira. No centro das acusações estão as suas ideias “judaizantes”, que, enfim, significavam o aproveitamento do cabedal judeu na sustentação do reino, e implicava a “mudança dos estilos” da Inquisição, com as chamadas “abertas e publicadas”, além da suspensão do confisco dos bens. Tais medidas caíam mal em todas as ordens do reino, afora atuar como amplificador da natural indisposição entre dominicanos e jesuítas.

Em seguida, claro, Roma. São todos capítulos tão corretos como previsíveis, tendo em vista o modelo cronológico-etapista. O Professor Pinto de Castro refere os triunfos oratórios que Vieira conquista na corte da Rainha Cristina da Suécia, que abdicara do trono de seu país para ganhar o foro de Rainha na capital do mundo. Destaca ainda as expectativas do jesuíta de obter isenção do tribunal inquisitorial, o que logra completamente graças a um breve papal, e de tornar a Portugal na condição de conselheiro político e privado do rei, o que nunca mais lhe foi concedido.

O sétimo capítulo traz estampado no título o patetismo muito ajustado à visão que João Lúcio popularizou, e que se mantém praticamente incólume até hoje: “À espera da morte”. O Professor Aníbal comenta a frustração de Vieira por D. Pedro II nunca mais tê-lo chamado para palpitar nos negócios reais mais sérios. A desilusão teria, até, feito com que quisesse tornar ao Brasil, e mais precisamente à Bahia da sua infância. Por fim, pincela o período que passa na capital da colônia até o dia da sua morte. De minha parte, conquanto admire os efeitos sempre comoventes da arquitetura patética, tenho minhas ressalvas à imagem de “vencido da vida” construído por João Lúcio à imagem da “Geração 70”, em Portugal. Contra o que nos acostumamos a pensar, não me parece que ela quadre com exatidão ao Vieira do período posterior a Roma.

Para começar, cabe não esquecer que durante esse longuíssimo período de suposta “espera da morte” – que o retém vivo por mais de 20 anos! –, Vieira não apenas escreveu a versão definitiva e imortal de seus sermões, até então saídos quase sempre em publicações piratas, que considerava adulteradas e distantes de sua voz, como continuou se correspondendo com os grandes de Portugal e do mundo, palpitando sobre tudo. E escrevia a obra latina que ficou conhecida como Clavis Prophetarum, à qual ainda não soubemos dar uma edição completa. E combatia com garra a entrada dos paulistas na Bahia, bem como o controle italiano da Companhia no Brasil, para não falar que se meteu em várias brigas políticas locais, a ponto de ser acusado de mentor da conspiração que levou ao assassinato do governador. “Espera da morte”? Quem dera fosse ela tão animada assim para todos nós.

O último capítulo é dedicado à análise da obra de Vieira. O Professor Aníbal faz aí um balanço apaixonado e vibrante, do qual não discordo. E concordo especialmente, como escrevi tantas vezes, com a ideia da existência de uma profunda unidade na obra de Vieira, ainda pouco considerada em uma fortuna crítica aturdida pela ideia de um Vieira múltiplo e contraditório. No entanto, já não é difícil ver que boa parte dessa visão esquizofrênica do jesuíta advém do mau entendimento do funcionamento de categorias de uma época que não conhece a especialização dos saberes, a morte de Deus, o Estado laico, a igualdade entre as gentes, o relativismo religioso ou antropológico, o ceticismo cientificista, a democracia representativa etc.

Gosto menos quando o Professor Aníbal deixa oscilar a unidade ao sabor de velhas fórmulas estilísticas como a dialética barroca do claro-escuro. Gosto ainda menos quando, para não deixar perder o vibrato cívico da peroração, sopra a tuba sonorosa do Vieira que representa “uma das manifestações mais altas da capacidade criadora do espírito lusíada”, “da nossa portugalidade”. Do tom retumbante só me alivia o peito que o Professor Aníbal não fale em “brasilidade”, categoria irmã que, no Brasil, não poucas Academias fizeram vibrar em nome de um Vieira de gênio “brasileiro”, ou no mínimo “luso-brasileiro”. Por mim, acho que Vieira podia passar sem esse tipo de investimento de representação substancialista cívica, pois seja “espírito”, “portugalidade” ou “brasilidade”, é tudo invenção bem menos viva e poderosa do que a escrita dos textos que, estes sim, são de Vieira e de mais ninguém.


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos