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A ARTE BRUTA

O primeiro “representante” da brutal art (ignorando os antecessores, que a praticaram antes do movimento ser reconhecido), foi o suíço Adolf Wölfli [1864-1930], criador de vasto trabalho musical e de artes plásticas. Desenvolveu uma doença psiquiátrica, após ter sido abusado física e sexualmente na infância, e ter se tornado órfão aos 10 anos.

Cresceu em lares adotivos, trabalhou como lavrador e entrou brevemente no exército, mas logo foi condenado por uma tentativa de abuso sexual infantil e preso. Solto, voltou a cometer crime semelhante, sendo então internado, em 1895, no manicômio judicial Waldau, em Berna (Suíça), onde passou o resto de sua vida adulta. Sofria de psicose, com alucinações intensas. Em algum momento após ser internado, começou a desenhar; seus primeiros trabalhos sobreviventes (muitos foram destruídos por ele próprio) datam de 1904.

Um médico de Waldau, Walter Morgenthaler, com um interesse especial no trabalho de Wölfli, publicou em 1921 o livro Ein Geiteskranker als Künstler, fazendo o mundo da arte se interessar por Wölfli; em 1945, o ainda pouco conhecido Jean Dubuffet, criou a expressão Brutal Art (muitas vezes traduzido também como Outsider Art) para denominar seu estilo artístico; e apontou Wölfli como o primeiro representante do movimento, que consistia em arte feita livre de qualquer influência de estilos acadêmicos e vanguardistas – como muitas vezes se trata de obra de doentes psiquiátricos, que costumam usar o que têm à mão, acabaram adotando muitos materiais inusitados.

Pensando apenas nas artes plásticas, poderíamos dividir a brutal art em dois grupos, os “legítimos” (que não tiveram nenhum tipo de influência do “sistema de arte”, em sua maioria doentes psiquiátricos, isolados do mundo) e os “acadêmicos” (que tiveram acesso a outros estilos artísticos, mas trabalham uma estética fortemente influenciada pela brutal art original. Analisemos o uso dos materiais “exóticos” em ambas as “categorias” da brutal art, ignorando a fotografia (de Miroslav Tichý, por exemplo), a música (do próprio Wölfli e outros, como Wesley Willis, o cinema (de nomes como Merhige e Jodorowsky, além de alguns experimentos de Pasolini e David Lynch) e a literatura (grande parte da obra de Glauco Mattoso, Cheiro do Ralo de Lourenço Mutarelli, Copromancia de Rubem Fonseca, Histoire de la Merde, do francês Dominique Laporte). Entre os “legítimos”, destaca-se o próprio Dubuffet, apesar de suas pesquisas estéticas (foi responsável pela criação do movimento e fez uso de materiais “exóticos” como asas de borboleta, em “Pequenos Personagens e Cão”, de 1953, e “Jardim Nacarado”, de 1955).

No começo dos anos 1950, surgiu outro nome significativo, Martín Ramírez, esquizofrênico catatônico, que fez diversos desenhos e colagens, usando sacos de papel, pedaços de papel higiênico e páginas de livro coladas com uma cola artesanal a base de batatas e saliva (como Wölfli, passou a vida internado, e seus desenhos foram descobertos por um professor de arte que visitou o manicômio). Antes, houve nomes como a hoje célebre pintora Aloïse Corbaz (1886-1964) que recebeu, como outros, material de pintura de seus médicos (Aloïse, por exemplo, realizou todas as suas obras com lápis de cor).

Entre os “acadêmicos”, ou seja, os que se influenciaram pela brutal art para criar suas obras grotesco-brutalistas, há muitos artistas que usaram excrementos como matéria-prima, como o alemão Martín von Ostrowsk e seus trabalhos com fezes e esperma (se tornou conhecido ao fazer um retrato de Hitler usando suas próprias fezes). Há ainda a famosa Merda de Artista, de Piero Manzoni, criada em 1961 (90 pequenas latas com as fezes do criador, etiquetadas com o texto “Conteúdo: 30 gramas; sem conservantes, produzido e enlatado em maio de 1961, por Piero Manzoni. Made in Italy”), e um trabalho de Cildo Meireles, intitulado “Ku Kha Ka Kha” (com flores e merda: em finlandês, ku kha é flor e ka kha, cocô), utilizando 112 vasos com rosas (falsas e verdadeiras) e 112 urinóis com fezes (falsas e verdadeiras). Com o mesmo material, há Christopher Ofili e o designer INSA, ambos trabalhando com estrume de elefante (Ofili estudou pinturas rupestres no Zimbabwe, no começo dos anos 1990, e então começou a fazer inúmeras obras contendo estrume, às vezes diretamente na tela, em forma de nódulos esféricos secos e, às vezes, usando-as envernizadas como suporte para os destaques tridimensionais dos quadros; uma de suas pinturas, The Holy Virgin Mary, exibida no Museu de Arte do Brooklyn, em 1999, foi alvo de um processo judicial  movido pelo então prefeito de Nova York, Rudy Giuliani; a pintura mostrava uma Madona Negra, cercada por imagens de filmes blaxploitation, closes de genitália feminina cortada de revistas pornográficas e estrume de elefante esculpido de forma a lembrar querubins e serafins (o artista brasileiro Vik Muniz também fez sua própria Virgem Maria imprópria, usando colagens de mulheres peladas). Após o escândalo, Bernard Goldberg classificou Ofili como a 86ª. entre as 100 pessoas que estão estragando a América; e Giuliani declarou: “Não há nada na Primeira Emenda que apoie projetos horríveis e nojentos como esse”. Mesmo assim, suas obras continuaram a ser vendidas por valores altos, e a obra em questão hoje é propriedade de David Walsh, estando em exposição permanente em um museu em Hobart, na Tasmânia. Em resposta ao trabalho de Ofili, o designer INSA criou um sapato feito de resina misturada com fezes de elefante, que está hoje exposto na Tate de Londres.

Outra famosa representante da merda na arte é a artista americana Susan Bell, que recicla as fezes de seus cavalos, produzindo esculturas de animais para ornar jardins; as peças se decompõem lentamente, servindo de adubo. No Brasil, além do Cildo Meireles, também há o mineiro Mizac Limírio, que usa bosta de vaca para compor seus quadros (ele emoldura os excrementos em telas com o fundo trabalhado com pigmentos naturais, terra, pó de arenito e esmalte sintético).

“Somos feitos de merda, sangue e urina”, afirmou Agostinho de Hipona. Não faltam, de fato, artistas usam sangue como material principal, como é o caso de Hermann Nitsch e Otto Müehl, que criam suas obras sanguíneas desde os anos 1960/1970.  Outros exemplos, um pouco mais recentes, são Jordan Eagles (conhecido como “o artista do sangue”), criador de obras como New Blood, Signs of Life, e Hemosapien; embora Eagles use apenas sangue animal. Ao contrário de Vincent Castiglia, que já doou cerca de 12 litros do próprio sangue para produzir uma paleta de tons de ferrugem, e faz trabalhos usando essas tintas há mais de dez anos. No Brasil, há pintora Karin Lambrecht, que nos anos 1990 fez uma sequência de trabalhos baseados nas manchas de sangue derradeiras do abate de carneiros.

Quanto à performance, há nomes internacionais da body art, como a francesa Gina Pane, o estadunidense Chris Burden e a cubana Ana Mendieta, que começaram a atuar entre os anos 1960/1970, usando o próprio corpo, sangue e resíduos como materiais para a construção de suas obras. Mas talvez quem melhor tenha sabido usar o sangue como material seja Pier Paolo Calzolari, como em sua recente Painting as a Butterfly, em que cuspiu fogo sobre uma tela pintada de vermelho. Um nome atual brasileiro, que mantém vivo o “brutartismo” por meio de performances viscerais e sangrentas é Raissa Vitral (Coletivo Coiote), que já criou desde performances com galinhas às performances-práxis que se tornaram célebres como atos de militância política. Em 2014, na UFF, Raissa costurou a própria vagina; e em uma Jornada Mundial da Juventude, se masturbou usando uma Virgem Maria, quanto enfiava uma cruz em seu cu.

Aproveitando o ensejo em falar da performance que Raissa Vitral fez cortando a cabeça de uma galinha viva, eu gostaria de abrir um parágrafo (embora muito pouco para um assunto também tão polêmico e complexo; mas pretendo futuramente me dedicar em um texto inteiro só sobre esse assunto) para citar alguns casos onde a brutalidade chega ao ponto de se utilizar de animais vivos como “material”.

Quando se pensa em tudo o que já foi feito em termos de brutal, e em tudo o que surge todos os dias, no mundo da arte e à sua margem, além das coisas que surgem na internet, como os muitos “artistas anônimos”, presentes tanto na surface quanto na deep web. Algumas bizarrices incluem as pastas creepy e o caso recente de uma “obra ao acaso” que surgiu à venda no eBay: um cocô de pássaro com o rosto de Michael Jackson, com lance inicial de 500 dólares.  Segundo seu “criador”, Brandon Tudor, ele estava dirigindo em uma rodovia quando a matéria-prima de sua obra atingiu o para-brisa do carro. Caso muito semelhante ao de Homer Simpson, que, após um acidente, vai parar no carro de uma especialista em brutal art, que resolve expor a obra de Homer; nas palavras dela: “Brutal art é um tipo de arte que pode ser feita por um doente mental, um caipira ou um macaco”; ao que ele responde: “Na escola sempre diziam que eu parecia um doente mental, um caipira ou um macaco”. Talvez. Mas isto não a diferencia muito de artistas multimilionários da arte “conceitual” contemporânea, como Damien Hirsch e seu tubarão metido num grande tanque de vidro com formol. Na verdade, a arte atual, bruta ou não, é apenas mercado. E o mercado é bruto, burro e coprológico.