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Mário de Andrade gay?

Ao lermos a biografia de um escritor ligado aos movimentos de vanguarda da literatura da primeira metade do século XX, a sensação de contradição é inevitável. Autores que trabalharam pela implosão da estrutura narrativa do romance de talhe oitocentista, podem ter as suas vidas narradas como uma harmoniosa sucessão de eventos, perfeitamente articulados, oferecendo assim uma visão coerente de suas existências?

Em especial a partir da segunda metade do século XX, os pesquisadores da literatura brasileira têm sido pródigos na interpretação das trajetórias de nomes expressivos do assim chamado modernismo brasileiro. Sem contar os estudos monográficos, de história e crítica literária, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Patrícia Galvão e Clarice Lispector, apenas para citar alguns, já foram biografados, por vezes em mais de uma obra. Em meio a levas e levas de biografias, permanecia uma ausência: Mário de Andrade.

Rios de tinta correram na escrita de ensaios e o Macunaíma já passava dos 90 anos de idade quando veio a lume a sua primeira biografia. Demora que já era, há muito tempo, motivo de especulação. Por que não se publicava uma biografia deste autor central da inteligência brasileira do século XX? Em uma virtual banca de apostas, uma das explicações mais bem cotadas para esse silêncio seria uma salvaguarda de sua vida pessoal, garantida pelos curadores de seu acervo, verdadeiros guardiões de sua memória. Biografar Mário de Andrade obrigaria o autor a explorar temas que sempre vêm à baila, tais como a sua sexualidade, as suas experiências com drogas, o seu alinhamento político, as suas estratégias de controle do legado modernista.

E Jason Tércio, como se virou com esta camisa de onze varas que é publicar a biografia de Mário de Andrade? A obra é vazada em uma prosa elegante e sem qualquer experimento linguístico ou formal. O que ele oferece, ao arrepio das preocupações de Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica[2], é uma narrativa perfeitamente encadeada, conferindo lógica e coerência a todos os eventos que compõem a vida de Mário de Andrade. Tudo começa com o pai, tipógrafo com pendores de poeta, passando pelos familiares mais chegados que apresentaram ao menino a música e a religião. Fica a sensação, deixada pela narrativa biográfica, de que tudo direcionava Mário de Andrade para a vocação que perseguiria durante toda a sua vida: o intelectual brasileiro com apetite insaciável. O literato, o historiador da música e das artes, o professor e esteta.

De temas considerados difíceis de abordar em se tratando de Mário de Andrade, como, por exemplo, a sua sexualidade, Jason Tércio procura se esquivar. Talvez fosse oportuno o biógrafo, em passagens em que o tema da sexualidade se impõe, dar um passo atrás e ponderar os motivos que levam os pesquisadores a demonstrar pruridos ao tratar do assunto. Ao invés disso, ele prefere insistir em um suposto triângulo de amores platônicos. Anita que amava Mário que amava Tarsila que amava Oswald… Tércio, ao tratar do interesse de Mário de Andrade em Tarsila do Amaral, chegou a protagonizar uma passagem, por assim dizer, mediúnica. Ao falar de um baile futurista do Automóvel Clube, afirmou: “Mário dançou a noite inteira, extasiado, mas pensando em Tarsila, que já estava novamente em Paris, com Oswald”.[3] É, para dizer o mínimo, uma temeridade afirmar isso sem uma referência à carta ou diário que permita supor o que se passava pela cabeça do biografado. Licenças poéticas como essa são desnecessárias, para dizer o mínimo.  

Gostaria de insistir neste ponto. Uma matéria publicada por Marcelo Bortoloti na revista Época de junho de 2015 ajudou a reacender a discussão sobre os temas interditos na memória de escritores brasileiros, como Bandeira e Mário de Andrade. O jornalista narra a situação de cartas e documentos de Manuel Bandeira, que ficaram cerca de uma década após a sua morte sob a guarda de sua antiga companheira, Maria de Lourdes. Este pequeno tesouro bibliográfico, cerca de 1400 documentos, entre cartas e poemas eróticos de Bandeira ainda inéditos, foi doado para a Fundação Casa de Rui Barbosa. Ao lado de técnicos e pesquisadores, Plinio Doyle, bibliófilo e então diretor do arquivo literário da fundação, ao avaliar a documentação resolveu proibir o acesso ao seu conteúdo. Como descreve Bortoloti, dentre esses documentos estava “uma carta escrita por Mário de Andrade em 1928, falando abertamente de sua homossexualidade. O tema era espinhoso porque, embora houvesse muitas referências indiretas sobre o comportamento sexual do escritor, a família do autor e alguns pesquisadores preferiam esconder o assunto”.[4] A carta, publicada por Manuel Bandeira em 1958, só veio a lume parcialmente.[5] O autor de Estrela da Manhã suprimiu a parte mais “picante”, a fim de preservar a memória de Andrade. Atualmente, essa documentação só pode ser pesquisada sob autorização prévia da família e de pesquisadores responsáveis pelo acervo.  

Em um breve e algo evasivo posfácio à Em busca da alma brasileira, Marcos Antônio de Moraes, um dos mais reconhecidos especialistas na obra mariana, especialmente no estudo de sua epistolografia, acaba por reforçar essa ideia. Longe de saudar o esforço de Jason Tércio em oferecer uma narrativa da vida de Mário de Andrade, opta pelo elogio contido. Logo nas primeiras palavras, destaca que “Mário de Andrade moldou, em sua vasta correspondência, em relatos testemunhais e em personificações literárias, uma singular autobiografia”.[6] Estaria em sua amazônica obra de missivista tudo aquilo que de sua vida nos é dado saber?

Seja pelo efeito da curiosidade, como daquele que espia pela fechadura ou tenta ler por sobre os ombros de alguém distraído, seja pela curiosidade de entender os meandros das reflexões de um grande autor, a leitura de cartas e diários é quase irresistível. No entanto, mais do que isso, escritos dessa natureza permitem que compreendamos muitas das estratégias de criação de redes e de consagração social e simbólica, adotadas de modo mais ou menos consciente ao longo de suas carreiras. São escritos de natureza tutelar, indicam o modo mediante o qual o autor deseja ser representado e lembrado.

É indiscutível o controle narrativo de Mário de Andrade em suas milhares de cartas. Tomado, segundo Lêdo Ivo em artigo célebre, de um “complexo de Alberto de Oliveira”[7], o poeta parnasiano que o teria traumatizado ao não lhe responder uma carta pedindo conselhos quando ainda era um jovem “autor sem livro”, Mário de Andrade responderia a todos que o escrevessem. Mesmo que resida também nessa afirmação um bom tanto de mito, ao compulsarmos os inúmeros volumes da correspondência ativa e passiva de Mário constatamos a presença de inúmeros jovens aspirantes a escritores, cativados pela atenção a eles dedicada pelo mestre. Estratégia de consagração que a ele garantiu um papel formador para gerações de escritores, além de uma posição privilegiada no jogo de posições disputado pelos intelectuais brasileiros na primeira metade do século XX.[8]

Uma biografia, no entanto, pode oferecer sentido ao conjunto dos jogos de memória e esquecimento. Cabe ao biógrafo, no entanto, resistir ao canto de sereia das interpretações canonizadas. Mesmo que Em busca da alma brasileira não seja uma biografia crítica e que, aqui e ali, sintamos falta de algumas discussões que coloquem em perspectiva o que significa biografar um autor como Mário de Andrade, é louvável o trabalho de Jason Tércio, cuja leitura é mais do que recomendada.

 

Jason Tércio. Em busca da alma brasileira. Biografia de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

 

 

         

 

 

 

[1] Doutor em História pela UFRGS, com estágio de Pós-doutorado realizado na USP. Autor de “Tupi or not Tupi. Nação e nacionalidade em José de Alencar e Oswald de Andrade”, pela EDIPUCRS.

[2] BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: ______. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus Editora, 2005.

[3] TÉRCIO, Jason. Em busca da alma brasileira. Biografia de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. p. 207.

[4] BORTOLOTI, Marcelo. A correspondência secreta de Mário de Andrade. Revista Época, 26/06/2015. Consultado em https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/06/correspondencia-secreta-de-mario-de-andrade.html.

[5] MORAES, Marcos Antonio de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2001.

[6] MORAES, Marcos Antonio de. Posfácio. In: TÉRCIO, Jason. Em busca da alma brasileira. Biografia de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. p. 501.

[7] Ivo, Lêdo. Lição de Mário de Andrade. Vol. 24. Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1952.

[8] Sobre esse tema, consultar: MICELI, Sergio. Mário de Andrade – a invenção do moderno intelectual brasileiro. In: ______. Vanguardas em retrocesso. Ensaios de história social e intelectual do modernismo latino-americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


 Sobre Éder Silveira

É doutor em história pela UFRGS e professor adjunto na UFCSPA.