Corpo a corpo: contato e diferenciação
O que há de vir é o catálogo da mostra palavras e obras de Silvana Leal, exibida no Museu de Arte de Santa Catarina, entre maio e julho de 2012. A mostra reúne, em parceria com Bené Fonteles, a fotografia, o vídeo, o poema e a instalação. Todos aparecem como desdobramentos de um conto chamado “Molusco habitante” que está no primeiro livro de Silvana, Erotismo proibido nos lábios (em palavras).1 No conto, o molusco é gestado na linguagem, é a palavra que conforma a placenta na qual irá nascer; anos depois, no vídeo que integra a exposição, representa-se o nascimento desse ser inventado; na instalação, a nova vida se veste, desfaz-se da matéria que lhe deu origem para desfilar em novos trajes: o molusco excede a matéria da palavra e se desdobra em variados suportes artísticos. O conto é decomposto e recomposto em poemas emoldurados na parede, em imagens e objetos. O corpo do texto é levado ao limite da agonia e ao seu próprio desaparecimento para gerar novas vidas. No “Manifesto de um nascimento moluscular. Um possível roteiro”, explica-se o movimento: “a arte quer desdobrar à matéria/a arte quer-se coragem/corpo-desafio”.2
Se de matéria falamos, pensemos com Henri Bergson como ele a define: um conjunto de imagens que, por sua vez, são “uma existência situada a meio caminho entre a ‘coisa’ e a ‘representação’.3 Não seriam nem a “realidade” do objeto em si e nem a figuração que dele fazemos; seriam algo como uma existência em aberto, como um devir, uma virtualidade a ser atualizada. O corpo é matéria, ele faz parte do mundo material e coexiste com outros corpos; entre nosso corpo e as imagens exteriores a ele, há troca de movimentos; a multidão de formas visuais que percebemos no espaço solicita nossa atividade e a essa solicitação atendemos com o movimento do corpo, estabelecendo contato: “O contato parece ser o único meio de que dispomos para fazer agir nosso corpo sobre os outros corpos”.4
Proponho refletir num segundo momento deste texto sobre o corpo a corpo entre os objetos de arte e seus espectadores ou leitores e, por hora, pensar esse contato que se dá entre as artes e seus materiais singulares, essa dança ou esse jogo de atração e repulsão em que a fotografia se quer poema, mas é imagem; em que a poesia se quer música, mas é palavra. Jean Luc Nancy diz que as artes se fazem umas contra as outras, que elas nascem de uma mútua relação de proximidade e exclusão e que suas respectivas obras agem e se sustentam nessa dupla relação.5 O contato entre as artes não suprime sua heterogeneidade, mas é como se a singularidade de cada uma se desfizesse e recompusesse na exploração e na exposição de suas diferenças.
No conjunto de criações de Silvana Leal, as artes se desdobram umas nas outras, transformam-se ou se deslocam expondo as transições, as mudanças de um estado a outro, de um suporte a outro. Erotismo proibido nos lábios (2001) começa cindido, prosa e poesia de um lado, fotografia de outro. Em Todocorpo (2006), a palavra é quase suprimida para se expor contida no papel fotográfico: “o corpo do poema está contido na imagem”, é uma “poesia de conteúdo plástico”, gritam as poucas palavras que lemos. Reúnem-se a esse organismo, o vídeo e a performance, os corpos que intervêm no espaço e que, por sua vez, exibem a intervenção que sofrem: encaixados ou espetados como estão. E Todocorpo torna-se, ainda, música, numa sinfonia de autoria de Alberto Heller. A multiplicidade está posta à mesa e há entre todos esses elementos um movimento de expansão em ondas, que avançam e recuam e sempre se reconfiguram de nova maneira.
Desdobrar a matéria é estendê-la, um ato que é espacial e temporal. A extensão se dá no espaço e na duração e esta é, essencialmente, multiplicidade. Ao ler o Bergsonismo, Gilles Deleuze o constata, mas se pergunta: “qual é a multiplicidade própria ao tempo?”,6 ao qual responde: uma multiplicidade virtual, ou seja: há um só tempo, porém, uma infinidade de fluxos atuais ou de fluxos que o atualizam. Se a arte é criação de espaço-tempo, podemos nos apropriar dessa lógica para pensar que haveria uma arte e uma infinidade de fluxos artísticos? Talvez seja algo nesse sentido que Nancy coloca ao questionar a noção de Arte em singular; ela não existiria como tal, mas sim como um conjunto de práticas que se diferenciam;7 haveria tantas artes quanto técnicas artísticas, de modo que se pensariam como singularidades heterogêneas em uma pluralidade que as agrupa. Assim colocado, digamos que a matéria artística se desdobre ou se estenda em “séries ramosas ou ramificadas”8 como é próprio do tempo ou da duração se expandir: movendo-se como multiplicação e diferenciação.
Na leitura que Deleuze faz de Bergson, a duração, o tempo e o movimento se identificam com a contração e a distensão dos corpos que se atualizam como virtualidades num processo de diferenciação. Deleuze dirá: “É o próprio da virtualidade existir de tal modo que ela se atualize ao diferenciar-se e que seja forçada a atualizar-se, a criar linhas de diferenciação para atualizar-se”.9 As artes, em sua singularidade-plural, atualizam-se na criação e extensão da diferença entre elas. Assim como a vida se atualiza potencialmente como diferença, uma vez que esta é “o novo, a própria novidade”.10 É preciso criar o novo de novo para mover a vida e é atualizando o passado como diferença que o fazemos. Somente um ser capaz de memória pode se desviar de seu passado, não torná-lo repetição e criar o novo. Lembrar para esquecer. Lembrar para mudar.
Há aí um potencial libertário, a possibilidade de “detonar um explosivo” e utilizá-lo para movimentos cada vez mais potentes; é esse o “sentido físico” que Deleuze atribui à liberdade.11 A liberdade de criar para fora das fronteiras erigidas, a ousadia de transgredir e inventar o novo. “A arte quer desdobrar a matéria/a arte quer-se coragem”,12 talvez seja dessa ousadia de transpor os limites de gêneros, meios ou suportes artísticos que nos fala a coragem desse verso.
Corpo a corpo: memória e sensação
Em O que há de vir, há uma série de “meia-dúzia de objetos-imagem para o livre exercício dos seres”. São composições de objetos, fotografias e palavras que configuram pequenas instalações e cujos títulos reunidos conformam um poema assinado por Silvana e Dennis Radünz; um poema que faz desaparecer todos esses objetos-imagem nas palavras que os nomeiam:
I – salto para caminhar com pássaros no céu
II – salto próprio para amar
III – pá para catar coisas de criança
IV- colher para colher coragem
V – faca para impropriedades
VI – um mar para livrar a mente
Um par de sapatos branco e outro vermelho, uma pá e uma colher recolhidas na areia, uma faca de ponta fina. Que lembranças carregam esses objetos? Em que situação foram encontrados? Por que são relevantes? É no contato com as fotografias e as palavras que suas significações se abrem e é no encontro com o espectador que elas acontecem. Nesse encontro se ativa a memória de cada um, o espaço e o tempo passados que coexistem em nós e aos quais nos levam essas composições. Somos provocados a atualizar esse passado que é eternamente em nós, que se mantém quieto até o momento em que algo o punge. Somos tentados a imaginar que história está contida nesses objetos, seus percursos, seus usos, as mãos e os pés pelos quais passaram. A memória é a força desse encontro, é a potência que impulsiona o movimento.
Bergson diz que a memória é a sobrevivência de imagens passadas que se misturam à percepção do presente,13 ou seja, é aquilo que persiste em nós ao longo do espaço e do tempo e que volta a se tornar presente no momento em que percebemos, em que entramos em contato com outro corpo, outra imagem. A percepção é como a ação virtual das coisas sobre nosso corpo e de nosso corpo sobre as coisas.
Deleuze chama a essa sobrevivência de uma espécie de “estado virtual”, de latência que se atualiza na percepção. O presente se apresenta, assim, como o grau mais contraído de nosso passado, como o momento em que o reduzimos para reencontrá-lo ou para recriá-lo. O passado se atualiza como criação, selecionamos e escolhemos nele aquilo que queremos trazer à tona e como o queremos reviver. Nessa operação, a matéria, o corpo com o qual entramos em contato, é um passado infinitamente dilatado, é a força que contém a memória latente a ser atualizada.
Pensemos nos baús que “guardam memórias da paisagem”,14 uma representação do objeto artístico como caixa de memória que se atualiza na percepção. Abrimos o baú e a cada vez que o fazemos recriamos a paisagem, inventamos a imagem ali presente – que manifesta a ausência do que vemos – a partir do que delas já estava inscrito em nosso corpo.
Perguntamo-nos como as artes entram em contato umas com as outras, pensamos que em sua existência espaço-temporal, movem-se por multiplicação e diferenciação. Perguntamo-nos como entramos em contato com os objetos artísticos e notamos que os percebemos pela memória. “Não há percepção que não esteja impregnada de lembranças”, diz Bergson;15 ela consiste em algo como a soma dos dados imediatos e presentes dos sentidos e os milhares de detalhes de nossa experiência passada. A memória seria a principal contribuição da “consciência individual” na percepção, uma vez que é por sua ação que se abre um espaço de indeterminação entre o estímulo e a reação. Enfrentado a uma imagem, o corpo hesita, escolhe e se move de modo refletido sobre a matéria. Esse é o “poder refletor” da percepção, que se articula ao “poder absorvente” da afecção. Assim como não haveria percepção sem lembrança, não haveria percepção sem afecção. A capacidade de avaliação e de decisão do corpo, apresentada por seu “poder refletor”, se associa a seu poder de lutar e de assimilar a dor à qual é exposto.
O contato com o objeto artístico é muitas vezes a exposição à dor. O artista experimentador faz experimentar a dor. Expõe o corpo à sensação, entendida como afecção, um fenômeno que flui do corpo para fora e não do exterior para o interior. Deleuze dirá que a sensação é uma “operação de contrair em uma superfície receptiva trilhões de vibrações”.16 É o que nos provocam as artes, fazem nosso corpo vibrar; e esta ação se abre numa multiplicidade tão ampla quanto a variada gama das artes: soar como a música, mover como a dança, ecoar como a palavra, estremecer como o cinema, comover como a escultura, excitar como a fotografia… Essa lista se desdobra múltipla, diversa e intercambiável. Um mesmo objeto artístico é capaz de provocar sensações diferentes; a combinação e a inovação dos meios reunidos para criar esse objeto pode potencializar essa provocação.
Bergson diz que a percepção tem sua “verdadeira razão de ser na tendência do corpo a se mover” e que o movimento é “antes o transporte de um estado que de uma coisa”.17 Frente à arte, o corpo se move, o corpo muda de estado. Que mudanças de estado experimentamos no contato com as artes? Talvez uma delas seja a diluição da distinção entre o sujeito que percebe e o objeto percebido. Segundo o filósofo, a memória une a ambos e por sua ação o objeto se torna aquilo que o sujeito percebe dele. Quantas vezes passamos diante de uma imagem sem que ela nos toque até que um belo dia a mesma imagem sempre frente a nossos olhos se faz notar, como se a memória passasse a selecioná-la como algo significativo, como se ela finalmente tivesse se inscrito no corpo? O sujeito que percebe, por sua vez, não sai nunca o mesmo depois de uma experiência artística marcante.
Outra mudança pode ser um devir criança, a exposição a uma situação em que nos desvencilhamos da “ação eficaz”, da reação inibida e adequada às exigências da vida social. Quanto mais adulta a percepção mais ajustes ela cria entre a memória e as necessidades imediatas de ação. A criança reage espontaneamente aos estímulos e, como no estado onírico, se desembaraça desse encargo. A arte pode nos recolocar na vida do sonho e da infância, retirando-nos da rigidez à qual o corpo é educado na vida civilizada.
Todocorpo, de Silvana Leal (2006),18 apresenta um fazer fotográfico que se denomina Onirografia, a “grafia dos sonhos”. Ela diz que “é a busca da poesia na memória de origem”, é o exercício da escrita dos sonhos na fotografia e a provocação da percepção onírica, da memória espontânea, da liberdade infantil de poder ser inadequado ou incorreto. Quem sabe a mudança de estado à qual as artes nos convidam seja uma concessão de liberdade para ser o que não se é, para transgredir e ultrapassar as fronteiras do que nos constitui e nos reabrir.
Notas
[1] Leal, Silvana. Erotismo proibido nos lábios (em palavras e em imagens). Brasília, 2001.
[2] S. Leal, O que há de vir. Da mostra palavras e obras. Florianópolis: Museu de Arte de Santa Catarina, 2012 (Catálogo), p. 23.
[3] H. Bergson, Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 2.
[5] Nancy, Jean-Luc. Las musas. Tradução de Horacios Pons. Buenos Aires: Amorrortu, 2008, p. 137.
[6] G. Deleuze, Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 63.
[12] Leal, O que há de vir, p. 23.
[13] H. Bergson, Matéria e memória, p. 69.
[14] Leal, O que há de vir, p. 32.
[16] Deleuze, Bergsonismo, p. 58.