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A poesia na “era digital”

O artista norte-americano Kenneth Goldsmith publicou agora em 2016, no Brasil, a obra trânsito*. O livro é uma versão em português de Traffic, lançado em 2007 nos Estados Unidos, dublada agora, no caso, por dois jovens poetas, que ainda sondam um caminho mais próprio. Uso o termo “dublado”, pois foi assim que o livro foi exposto no papel por seus tradutores. Também em sua apresentação, na internet, lê-se que o trabalho é composto “de textos que transcrevem os engarrafamentos transmitidos por uma rádio de trânsito em São Paulo na véspera de um final de semana prolongado”, acrescentando-se que “a versão brasileira dublou o mecanismo do original, chegando a um texto que, entre o ready-made e a crônica, transforma o material descartável das ondas de rádio em livro”.

Partindo do pressuposto de que qualquer coisa pode ser “antipoesia”, Goldsmith propõe sua teoria de como lidar com a linguagem na Era Digital. A esse respeito, leia-se Uncreative Writing: Managing Language in the Digital Age (2011). Em teoria, Goldsmith levanta pontos que valem a pena ser explorados, em geral ligados ao lado mais subversivo de sua prática poética, envolvendo até mesmo questões legais, como a do plágio; o lado agitador e provocativo disso tudo.  Entretanto, o que vemos em trânsito é este material antipoético, conceituado na obra acima mencionada, sendo utilizado de modo inofensivo e, digamos, antigo. Mas não é preciso grande esforço para encontrar sentido em uma teoria que fala sobre gerenciar a linguagem na Era Digital e mesmo assim produz 200 exemplares de matéria um tanto duvidosa em papel. Recorde-se, no original, são dez mil páginas de transcrição do áudio de uma rádio de trânsito vendidas como livro de poesia.

Não obstante a posição de leitor, entende-se que a transcrição do áudio da rádio poderia causar mais impacto em ambiente virtual, uma vez que essa escritura conta com a possibilidade de ser tratada sob o ponto de vista de que o real, no caso, é o virtual, e o impacto real do papel (com seu peso, massa e consequências), é o poema, com sua operação simbólica, assumindo o lado virtual da coisa, e não o poema em si, aquilo com que tingimos a folha em branco. As palavras impressas na folha pouco importam e é relevante que seja assim, o que sobra então é o “gesto” de editar papel, que, no entanto, poderia da mesma forma estar em branco e repercutir por meio do impacto negativo. Goldsmith transforma em poesia aquele sentimento que nos faz desligar o rádio depois de notar que aquelas informações sobre trânsito não dizem respeito ao caminho que se está fazendo e mais atrapalham sua concentração do que ajudam a fugir do congestionamento. Poderia até ser interessante.

Além do mais, “queimar” árvores ou o que quer que seja não é nem de longe um tabu na produção de Kenneth Goldsmith – um artista pelo menos polêmico (o que não há no Brasil).  Veja-se toda uma discussão recente sobre ele porque se apropriou da autópsia de um rapaz negro – assassinado por policiais brancos – chamado Michael Brown para transformá-la em outro de seus poemas conceituais – numa espécie de performance do abjeto. No caso de trânsito, a performance seria propriamente a do abnóxio.

Outro ataque de trânsito é ao tempo. Na mesma linhagem artística centenária, Marcel Duchamp causou impacto com “A Fonte” sem exigir daquele que contempla mais que o instante do choque de encontrar um objeto improvável no lugar de uma obra de arte tradicional. Já em trânsito, o leitor deverá estar preparado para abrir mão de uma boa dose de minutos necessários para ler três boletins velhos sobre o trânsito abarrotados de notícias frias, informações defasadas, propagandas e comentários do âncora ou do repórter, em linguagem empobrecida de mera referência, sem construção poética – afinal é mais um ready-made.

Tomando por princípio o questionamento inerente à obra de Goldsmith, agimos à semelhança de um bombeiro que combate um incêndio com um lança-chamas. É um questionamento artístico válido. Em outra camada de leitura, sua obra leva, repito, ao ponto de se perguntar se não há formas mais eficientes de questionar o “ eu romântico ou o eu lírico” e a “poluição da linguagem” – que quase sempre nos escapa aos olhos no que o autor chama de Era Digital. Em formato digital, Goldsmith poderia ter mostrado o real impacto do peso da linguagem, saturando o leitor da mesma forma, sem precisar fazer isso de maneira impressa.

Em outras palavras, não é preciso usar papel para fazer spam. Mas parece ser exatamente isso que pretende Goldsmith: mostrar como toda essa carga de ruído indiscriminado diário é capaz de causar tédio, por meio de uma “crônica”, e nos conduzir a outros problemas ainda maiores, mesmo que se trate apenas de um ou dois pares de breves boletins sobre o trânsito. Resta realçar que seja uma versão compacta. Além de a original transcrever 24 horas de áudio, ela é parte de uma “trilogia americana” que fala também sobre “meteorologia” e “beisebol”, que pertence ainda à uma obra maior, que inclui também a publicação de um ano do jornal The New York Times, ainda inédita no Brasil.  Em 2011, Goldsmith – poeta laureado do MoMA de Nova Iorque, fez uma leitura na Casa Branca, diante do presidente Obama e da Primeira-Dama, incluindo excertos de Traffic. Tal leitura palaciana de Goldsmith revela, ao menos, quão cooptada está a “vanguarda” norte-americana.

 

* Editora Luna Parque

 

 

Keneth Goldsmith na Sibila:

http://sibila.com.br/critica/a-autopsia-de-um-poema-de-kenneth-goldsmith/11761

Keneth Goldsmith na Casa Branca:

https://youtu.be/hMSvrIPhA4Y

 


 Sobre Fabio Riggi

Jornalista, canhoto. Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 e 1959.