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Canalha!

“He was a Poet, sure a lover too”
(“I stood tip-toe upon a little hill”, Keats)

Canalha! (Bertrand Brasil, 2007, 320 p.) é o mais recente apanhado de crônicas do escritor gaúcho Fabrício Carpinejar, 36 anos. O livro desbancou Rubem Alves e a culinária de Déa Rodriguez da Cunha Rocha na categoria Contos e Crônicas do Prêmio Jabuti 2009. A ele se segue Diário de um apaixonado, definido no site do autor como “uma versão masculina do álbum ‘Amar é…’”.

A apresentação, creio, é o melhor do livro. A capa, com sua solução visual equilibrada e simples, sintetiza bem a proposta do título. O “canalha”, aqui, está distante do tipo caricatural de Nelson Rodrigues, mas, antes de procurarmos a conotação mais apropriada desse termo, passemos os olhos sobre as orelhas. Estas caíram nas mãos de Xico Sá, que pinta a obra das mais variadas comparações e pequenas subversões.

Para Xico, o livro todo é composto de frases geniais como “Ser chamado de ‘canalha’ por uma voz feminina é o domingo da língua portuguesa.” É nessa canalhice lírica, ainda segundo Sá, que Carpinejar combate os “porcos chauvinistas” e “a idiotice do politicamente correto”. Trata-se de mais que um canalha, trata-se de um “filho da puta” “docemente safado”, “o álbum branco dos Beatles”.

Na folha de rosto, lê-se “Retrato poético e divertido do homem contemporâneo – crônicas”, o que nos leva a imaginar o que Fabrício Carpinejar entende por crônica. Assim, chegamos a uma primeira questão.

O que é uma crônica?

O termo vem do latim e é utilizado por essa sua relação particular com o tempo. A princípio por se tratar de uma narrativa que se utilizava dos fatos na ordem em que eles se sucederam. No seu uso contemporâneo, a apropriação do tempo na prosa invadiu o cotidiano, especialmente por meio da imprensa, permitindo dentro desse gênero a participação do escritor (o operário da escrita) na rotina do leitor.

No regulamento do Prêmio Jabuti, define-se a categoria da seguinte forma: “crônica: narrativa curta, baseada geralmente em assuntos do cotidiano ou de interesse geral, caracterizando-se pela transitoriedade dos temas abordados”. Aqui, a dificuldade está em descobrir o que se quer dizer com “transitoriedade dos temas abordados”.

Essa definição aplica o conceito do tempo na matéria-prima do texto, e não em sua forma ou performance. Isso quer dizer que a crônica passa a ser entendida como uma narrativa sem obrigatoriedade de manter um roteiro linear, nem de acompanhar o ritmo diário dos indivíduos urbanos. O interesse do gênero foca no interesse imediato do público, que é transitório. Ou seja, a crônica vira um texto que morre logo após ser lido, vira embrulho de peixe.

Até onde sei, o livro de Carpinejar nasceu livro, não veio de algum periódico. A narrativa é bem simples e linear, mas não demonstra nenhuma preocupação com a raiz desse tipo de escrita, não pretende ser uma memorialística de figuras nobres, de feitos notáveis, nem nada do tipo.

Concluo que, se fôssemos pensar em uma árvore genealógica da nossa crônica, a atividade de Fabrício na imprensa até influencia o ritmo de sua escrita, mas não se aplica à função digestiva do texto. De qualquer forma, a obra está dentro das condições descritas no regulamento do Jabuti.

E não pretendo, com isso, afirmar que essas condições impliquem uma conotação banal. Pelo contrário, quero crer que o julgamento de valor implícito na premiação valoriza a qualidade e a perenidade de uma obra, qualquer que seja sua “categoria”.

Em tempo, função digestiva do texto: a crônica, com sua leveza, é parte do café da manhã do leitor. Atualmente, busca-se, com uma crônica, ingerir palavras que ajudem a conduzir o expediente. Ou seja, ao ser ingerida, a leitura deve ser digerida. Um texto que desaparece após sua ingestão não chega ao estômago, não realiza sua função fisiológica.

Sem querer forçar a comparação, uma boa crônica de Machado de Assis é de rápida e fácil digestão, transitória, e é perene. Para este escritor, uma despretensiosa associação entre o leitor e o carapicu, um peixe pequeno e pouco valorado, atravessa questões políticas e sociológicas com o interesse de “flagrar o escritor às voltas com uma definição de leitor que ultrapasse a empiria e aponte para uma figuração complexa construída a partir de mediações entre seres, digamos, históricos e ficcionais”[1].

E o mesmo ocorre com uma “amendoeira” para Carlos Drummond de Andrade ou com uma garrafada imaginária, a partir da qual Nelson Rodrigues sobrecarrega de humor radiofutebolístico seu elogio à ficção em detrimento da realidade visual do “videoteipe”, conduzindo uma divagação sobre o próprio ato de narrar dentro de uma crônica esportiva.

O que é um canalha?

Tanto nas palavras de Carpinejar como em suas (poucas) crônicas sobre essa personae, não se trata do canalha das pornochanchadas, nem a figura traiçoeira de Nelson Rodrigues. Trata-se de uma maneira mais ou menos lírica e adolescente de amar. É um ser avesso a passeios noturnos, à solteirice, à canalhice, por assim dizer. Uma justaposição de bom marido e politicamente incorreto.

Em uma entrevista, lemos o autor dizer:

Hoje o canalha é diferente do Don Juan. O Don Juan coleciona mulheres, quer fama. O canalha quer, sobretudo, a fama da mulher. Ela vai dizer: como eu fico bonita com ele! Ele faz com que a mulher se descubra a partir dele, e ela fica endividada de ter se descoberto com ele. E conclui: eu só consigo ser assim com ele. É uma dependência para toda a vida. […] O canalha não é mais o cara que quer comer a mulher. Ele dá para a mulher o poder e ela não percebe que está caindo em uma cilada[2].

O canalha, aqui, é o homem que compreende a mulher e o corpo feminino sem abdicar de sua masculinidade, ao menos em tese. Diante de Jô Soares, Fabrício Carpinejar ensaiou uma diferença entre o canalha e o cafajeste. Enquanto o cafajeste “faz uma propaganda enganosa” mentindo “para conseguir o que quer”, “o canalha é o pós-graduação do sem-vergonha”, e “vai dizer desde o princípio, ‘eu não presto!’”. Ou seja, a mulher se entrega ao canalha porque “tem todos os defeitos do mundo, mas ele é verdadeiro”[3].

Esse “adorável canalha” aparece logo na primeira crônica do livro. E retorna apenas na página 40, e cada vez mais esporadicamente. Em alguns momentos, temos alguma malícia que nos lembre sua sinceridade politicamente incorreta, como no texto sobre “As tampinhas do leite”. Uma ou outra crônica deixa o amor de lado por um instante.

De resto, há uma infinidade de lugares-comuns, relatos de fossas, dor de cotovelo e declarações de amor. Logo, conforme a definição de Carpinejar, a obra está mais para “cafajeste” que “canalha”, pois sugere que vamos ler algo e nos deparamos com outra coisa. Chama-se Canalha!; se quisesse também poderia se chamar Corno!.

Em alguns momentos, o texto lembra músicas românticas de duplas sertanejas, em outros, algum tipo de autoajuda ou aconselhamento amoroso. Exemplo: “É um drama rever de quem se gostava comprometida. Seria sorte se apenas os cotovelos doessem – é todo o corpo. Toda a ausência do corpo dela no seu”[4].

Outra característica é a generalização. Frases contendo “o homem é assim”, “as mulheres fazem aquilo”, “os homossexuais são assado” são frequentes. Durante a entrevista a Jô Soares, Carpinejar confessa: “Sou escritor porque me deram muitos apelidos. Os apelidos são os embriões de personagens”. Essa variedade, esse um que são muitos não aparece nos parágrafos de Canalha!.

O que aparece é: “Os gays são mais fiéis do que os próprios homens”; “Os gays não pensam sempre em sexo (os homens pensam muito mais)”; “O homem é treinado a pensar em sexo ou a pensar que é homem”[5]; “A mulher é feita de narração”; “Diferente do homem, a mulher avisa seu corpo”[6]. Para uma obra que pretende quebrar os rótulos, o que se vê constantemente é o contrário.

Em algum momento, uma imagem como “pássaros ofendendo vizinhos são carteiros de seus pressentimentos” traz mais interesse. “Duas vezes monogâmico” começa bem, com um caso curioso tendo Drummond por protagonista, e para nisso. Da mesma maneira, “Ciúme e ciúmes” contém algum atrativo: “Ciúme ressuscita línguas mornas”. Mas é seguido de uma série inesgotável de clichês escondidos em paralelismo e paradoxos:

Quem não mentiu por ciúme?

Quem não falou a verdade por ciúme?

Ciúme pode aumentar o amor.

Ciúme pode arrebentar o amor.

Foi pelo ciúme que descobri que amava. Foi pelo ciúme que descobri que odiava.

O ciúme tranquiliza. O ciúme atormenta.

Etc. etc. A prolixidade de Fabrício Carpinejar o tornou redundante. O humor é frívolo demais, a confissão é verborrágica, não há invenção. Ao explicar o tom despretensioso na crônica “Pintassilgo”, o autor parece insistir na confusão entre a simplicidade de uma linguagem palatável e superficialidade. Há aqui um brio para a imortalidade como o das parábolas de Paulo Coelho.

Além disso, essa despretensão não condiz com a proposta de montar um “retrato poético e divertido do homem contemporâneo”, que é, no máximo, um “retrato de algum sujeito contemporâneo”. Dizem que as mulheres quietas são as melhores sob quatro paredes, e talvez valha essa máxima para o amor, faça-se mais, fale-se menos. Assim, desde Orfeu, nascem os poetas.


Notas


 Sobre Fabio Riggi

Jornalista, canhoto. Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 e 1959.