A reformulação do conceito de sujeito, a partir das culturas extra-ocidentais, levada a cabo, hoje, pelo perspectivismo, campo de estudos pós-lévi-straussiano, poderá ser útil para esclarecer – no contexto de uma discussão a respeito do excesso, do informe, do contraditório, do oxímoro, do antitipo — os limites do “humano” e o papel dos tabus nas diferentes culturas, delimitando, assim, quais são, dos vários contatos entre os corpos (o humano com o animal, o inorgânico, o artificial), os contatos aceitáveis (fusões) e os inaceitáveis (cisões), neste caso por representarem o abjeto, a aberração, o crime etc.
No seu ensaio “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”, incluído no livro Gilles Deleuze: uma vida filosófica, organizado por Eric Alliez (Ediora 34, 2000), o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro afirma que “a distinção clássica entre natureza e cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa”. Definindo o escopo da sua discussão, o antropólogo brasileiro também esclarece: “A florescente indústria da crítica ao caráter ocidentalizante de todo dualismo tem advogado o abandono de nossa herança conceitual dicotômica, mas as alternativas até agora se resumem a desideratos pós-binários um tanto vagos; prefiro, assim, perspectivizar nossos contrastes contrastando-os com as distinções efetivamente operantes nas cosmologias ameríndias.”
No centro das cosmologias ameríndias deparamos, guiados pela crítica etnológica de Lévi-Strauss e seus herdeiros, com a complexa relação entre a subjetividade humana (e outras subjetividades, como deuses, espíritos, mortos) e os animais, relação que o perspectivismo tentará deslindar. Será possível fazer, a partir dessas cosmologias, uma releitura da cena na qual olhos humanos se debruçam sobre os bichos, grandes e pequenos, e vêem neles “algo mais”, o oxímoro, o antitipo etc. Segundo a visão de mundo ameríndia, “os animais são gente, ou se vêem como pessoas”. Ou seja, eles possuiriam uma forma interna humana, a qual só os xamãs (seres transespecíficos) poderiam perceber. “Essa forma interna”, esclarece Viveiros de Castro, “é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal.” Os seres animados compartilhariam, como se pode deduzir, uma mesma essência, apenas sua forma visível difere, mas ela é enganosa, pois, no fundo, é uma “roupa” que se pode despir (concepção provavelmente panamericana). Como esclarece Viveiros de Castro, “se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado original de indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia.” A comunicação entre humanos e animais pressupõe uma origem comum.
“A diferenciação entre ‘cultura’ e ‘natureza’, que Lévi-Strauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados dos humanos ou por eles mantidos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais.”
A partir dessa breve apresentação da cosmologia ameríndia, citando as palavras de Viveiros de Castro, creio que importa destacar a discussão em torno da “continuidade” entre natureza e cultura (ambas “são parte de um mesmo campo sociocósmico”) e suas implicações para a representação de animais e plantas nas mitologias: “Uma só ‘cultura’, múltiplas ‘naturezas’”.
Ou seja, a cosmologia ameríndia, no que diz respeito aos animais, implica o processo de “desanimalizar” seus personagens naturais, tal como também sucede, mutatis mutandis, nos bestiários e nas fábulas em geral. Por isso, nos mitos, “não há dúvida de que os corpos são descartáveis e trocáveis, e que ‘atrás’ deles estão subjetividades formalmente idênticas à humana”. Os diversos processos de interação entre humanos e não-humanos poderão variar em sua complexidade, mas é possível, acredito, estabelecer um diálogo proveitoso entre mito, fábula e bestiário, sem, é claro, pretender igualar ou confundir essas formas tão distintas de expressão.
Aqui não poderia deixar de citar uma reflexão de Francis Ponge, publicada no livro Métodos (Imago, Rio de Janeiro, 1997), na qual o escritor francês expressa uma idéia similar à que apresentamos nos parágrafos acima. Após indagar como e por que dar voz aos seres e às coisas que estão mudos, no caso carpas e pedregulhos, afirma: “Outra coisa que me parece essencial, que gostaria de dizer. Vocês sabem que o que me sustenta ou me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos… Por que não dizer, indo um pouco mais longe (ainda não é muito longe), que os próprios homens, na sua maior parte, nos parecem privados de palavra, são tão mudos quanto as carpas ou os pedregulhos? (…) Assim, num sentido, poderíamos dizer que a natureza toda, inclusive o homem, é uma escritura, mas uma escritura de um certo tipo, uma escritura não significativa, porque não se refere a nenhum sistema de significação, dado que se trata de um universo infinito, propriamente imenso, sem limites.”
Na verdade, o diálogo entre a intuição artística e a teoria antropológica foi incentivado desde cedo por Lévi-Strauss e desenvolvido depois por seus herdeiros, os teóricos do perspectivismo, sobretudo quando relacionam o xamanismo com as práticas artísticas. “Aquele ideal de subjetividade que penso ser constitutivo do xamanismo como epistemologia indígena”, afirma Viveiros de Castro em A Inconstância da alma selvagem (Cosacnaify, São Paulo, 2002), “encontra-se em nossa civilização confinado àquilo que Lévi-Strauss chamava de parque natural ou reserva ecológica no interior do pensamento domesticado: a arte. (…) O xamanismo, como a arte, procede segundo o princípio de subjetivação do objeto.”
A noção de que o mundo é povoado de outros sujeitos ou pessoas, além dos seres humanos, é uma concepção ameríndia, ou extra-ocidental, e pressupõe às vezes um monismo ao qual o pensamento ocidental (não a arte ocidental, bem entendido!) parece resistir, como bem mostrou Philippe Descola, professor do Colège de France, no seu já clássico Par-delà nature et culture (Gallimard, Paris, 2005). Descola chama a atenção, inicialmente, para a hierarquia entre objetos animados e inanimados. Se os seres humanos percebem os animais e as plantas como outro, e nesse ato colocam-se a si mesmos no topo da pirâmide de valores, em troca, os animais e as plantas, em razão de serem dotados de alma e subjetividade, como os povos ameríndios comumente reconhecem, também percebem os seres humanos dessa maneira, como outro, mas não necessariamente como humanos, gente. Para cada perspectiva, a sua pirâmide. Os insetos, porém, podem (ou não) ficar à margem dessa ordem (a comunidade das “pessoas”, num sentido amplo), correspondendo, entre os Achuar, em particular, àquilo que chamamos “natureza”, ao lado dos peixes e das ervas, que parecem ser destituídos de alma. Essa concepção não-dualista do mundo pode, enfim, ser mais ou menos radical, nesta ou naquela tribo amazônica, menos entre os Achuar e mais entre os Makuna, por exemplo, onde o fenômeno é evidente.
A consulta aos quatro volumes das Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss,sem dúvida fornecerá numerosos exemplos que confirmam essa teoria perspectiva. Gostaria de destacar, ainda, que a leitura das Mitológicas poderá ser útil também para propor um paralelo entre o bestiário ocidental e os mitos ameríndios. No primeiro volume dessa série, O Cru e o Cozido (Cosacnaify, São Paulo, 2004), por exemplo, há várias referências a larvas e insetos que podem estar ligados, no que diz respeito às formigas pelo menos, ao dom das plantas cultivadas, segundo a perspectiva dos mitos (os seres humanos receberam seus bens culturais de animais, por mais humildes que estes pareçam). Eis insetos “espirituais”, com alma. Mas há também, e essa é a ambigüidade que importa destacar, os insetos “naturais”. Os exércitos de insetos, os mesmos exércitos que o Visconde de Taunay descreveu nas Memórias (Iluminuras, São Paulo, 2005), já estão num trabalho anterior de Lévi-Strauss, Tristes trópicos (Companhia das Letras, São Paulo, 2004). Vale lembrar que ambos os autores, o brasileiro do século XIX e o francês do século XX, percorreram a mesma região do Centro-Oeste, a que vai do Pantanal a Cuiabá, e que os dois, em seus respectivos relatos dessa longa viagem, se detiveram na descrição dos ataques de insetos (seres “espirituais” e “naturais”, dependendo da perspectiva adotada), como os que se alimentam de secreções e ficam embriagados pelo suor de suas vítimas. Nas palavras de Lévi-Strauss, “ávidos por suor, brigam pelos locais mais favoráveis, comissuras dos lábios, olhos e narinas onde, como que inebriados pelas secreções de sua vítima, preferem ser destruídos ali mesmo do que voar”. Consumidores de secreções aparecem igualmente na bestiário do Visconde de Taunay, como borboletas que sugam as secreções dos cavalos na Guerra do Paraguai e acabam por matá-los em pleno campo de batalha.
A possibilidade, trazida à tona pelo perspectivismo, de utilizar textos de Lévi-Strauss como referência para estudar, no mundo contemporâneo, as fronteiras cada vez mais porosas entre humanos e não-humanos, entre natureza e cultura, talvez seja a maior prova da atualidade do seu pensamento. Os parágrafos anteriores não tiveram outro objetivo senão reforçar isso.