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DISCO DUBLÊ

Considerável para a arte de narrar é o modo como um autor coloca signos e figuras em movimento, a maneira como ele introduz personagens em um determinado espaço-tempo sem reincidir em suas funcionalidades, mas acionando o sentido jamais imóvel das coisas. Uma narrativa se faz enquanto diz algo feito um contradito.        

Em Disco Dublê, romance lançado recentemente pela Kotter Editorial, Mauricio Salles Vasconcelos toma o universo do DJ – instrumentista entre maquinismos e multidões – como lugar de recepção de toda uma historiografia exorbitante, satelizada, extraterritorial, tal como vem emergindo desde a segunda metade do século XX uma marca não epocal em decurso e prolongamento no presente milênio.

“DJs são produtos sintetizados. Não chegam a ser mais do que: revérbero de desaparições e ressurgimentos” (p. 223).

Centrada nos anos de aprendizado e criação de Dario Amarante Vaz, DJ Vazante, a narrativa opera através da imagem do duplo/dublê, do DJ. Apesar da vida do narrador-personagem se estender por todo o romance, da juventude até os 60 anos, observa-se aí um dado curioso: sua percepção não determina a trama, vai sendo fiada e propagada por diferentes modos de relatar e arquivar provenientes de outros três narradores suplementares – Marcianita, “irmã de criação” e depositária de arquivos musicais e notas de Dario; Laureana (DJ Lollipop), única mulher com quem se relacionou e que marcaria seu percurso de DJ para sempre; Delta (Delano), menino skatista que passou por sua vida uma única vez.   

Essa manobra homodiegética ocorre num processo narrativo que distribui a história em samplers repetidos e diferidos dessas três matrizes (duas mulheres e uma criança/adolescente), proporcionando um ritmo de música em loop ao romance. Algo capaz de combinar o cinema de Jean-Luc Godard à literatura do espanhol Agustín Fernandez Mallo numa cena/ambiência de música eletrônica.

O que aparentemente forneceria uma estrutura cronológica do personagem, passado (irmã), presente (mulher) e futuro (menino), a formar a unidade de um relato, apresenta-se então numa estrutura dissipativa articulada a outros repertórios – música eletrônica como eixo instrumental/conceptivo de uma bateria de forças e fontes de leitura do nosso tempo em convergência com as travessias geográficas da história de agora. Disco Dublê se aproxima à noção de transicionalidade, desenvolvida pelo teórico Jean Bessière em Romance contemporâneo ou a problematicidade do mundo, na proposição de um romance-música. Nele, DJ Vazante se vê, em pontos extremos do tempo e planos desnorteadores da identidade, confrontado com essas figuras (Marcianita, DJ Lollipop e Delano) que formam, assim, as personae reveladoras de uma história-de-vida. O protagonista não se limita à música e à posição noturna de operante-artista musical à distância, mas consigna um efeito de radiância ao romance que, ao invés de flagrar e se delimitar a uma vida, espraia em modulações de bio-relatos. Faz assim vibrar desaparecimento e morte num para sempre da matéria escrita (“um corpo morto não pára de atuar sobre o lugar onde bem acabou”, p. 196).

A pergunta para onde vai a música, alusiva talvez à questão blanchotiana por excelência (para onde vai a literatura?), funciona como indagação propulsora, dínamo do ato escritural em Disco Dublê.

Quais as maiores músicas da década, do século que está para acabar e já começa, de novo, como milênio? Eu pergunto na hora: Para onde é que vai a música depois que ela passa?” (p. 26).

Com a figura de DJ Vazante, sombra errante encoberta por capuz, óculos escuros e fones de ouvido a deambular por diversas metrópoles do planeta, surge uma narrativa concebida como escrita de caminhada. A livre leitura feita por Mauricio S. Vasconcelos de Os devaneios de um caminhante solitário, de Rousseau, transformando rêverie em rave, aponta para uma mutação histórico-discursiva já notada por Derrida: passagem do logos (razão) ao loxôs (obliquidade), da apropriação do mundo pelo entendimento à sua expropriação pela escuta. Justamente aí onde a temporalidade progressiva do romance de formação escande um romance de vida já formada, no irrompimento da velhice, capaz contudo de repensar formação sob a batida da transformação de uma época tecno, inevitavelmente atuante nos atos e no corpo do DJ.

“E, assim, o tempo se acresce como na sequência de um sentido sem­pre suplementar – querendo-se ou não através da continuidade (vitó­ria do capitalismo? voluta impensada, insondável, do próprio tempo a se dispor para além do que eu digo e vivo? e então passo a fazer soar como música de fim e de festa?)” (p. 78).

Realizando uma arqueologia da cultura audiovisual, entre máquinas e mídias, por universos como o do iPod, música eletrônica, cultura DJ, cinema, TV, serialização streaming, os livros de MSV – Stereo (2002), Ela não fuma mais maconha (2011), Moça em blazer xadrez (2013), Telenovela (2014), Meu Rádio (Coletivo Animal) (2016), Bráulio Pedroso (Novela da Noite) (2018) – compreendem o que examino e sinalizo como escritas do século XXI. Narrativas não mais encaminhadas a uma época histórica, mas implicadas numa liberação mesmo da história, na profusão de formas de vida/escrita, eras e Eros entrelaçados a um só tempo trans: Er@s.

Em Disco Dublê, a música no tempo atua amalgamando diversas manifestações artísticas e formas de pensamento eclodidas no século XX numa revivificação do ato de narrar. No livro são entrevistas proposições/situações em formulação de modos de vida disrompidos do tempo passado, capazes de reinventar a convivência nas cidades planetárias marcadas pela explosão atômica, decomponíveis em performances urbanísticas movidas por fluxos libidinais, dispositivos pulsionais, conexões, trocas de energia, em uma passagem mais complexa do que se entende como duração de um dia e sua mutação num próximo dia. A cada página do romance, abrem-se os veios de uma nova/antiga vida para deixar entrever a possibilidade abissal de uma outra profundidade submetida a uma espécie de escavação arqueológica sob o andamento dos bites musicais.

Como se lê nas notas do skatista Delta (Delano), que recepciona os trajetos da existência do Dj Vazante, a história não pára de se transformar no(s) próximo(s) romance(s) em insurgimento no universo infinito da fabulação:

“Como se o dia passasse na sua contraface – contraefeito – da cons­telação maquinal onde me insiro e se inseminam as menores sensações de estar vivo (numa “época”, num certo lugar). E eu não pudesse perder mais o rastro externo – exorbitado, aéreo ou terreno (o que for, tudo num mesmo tempo) – quando/onde mais me sinalizo” (p. 122).

Disco dublê de Maurício Salles Vasconcelos, Editora Kotter:  238 pgs., R$ 45,00.