Os deputados governistas da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) prometem escrever um Processo mais fajuto que o do Kafta brasílico: criaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) especialmente para investigar os gastos das Universidades públicas do Estado de São Paulo. A ideia em si mesma é esdrúxula, considerando o regime cada vez mais apertado em que vivem as Universidades brasileiras, de que não são exceção as paulistas. Nada deteve os deputados, animados pela aberta hostilidade dos governos Bolsonaro e Doria contra a ciência e a cultura. A hostilidade vai a ponto de o primeiro ter dito que eram as universidades privadas que mais produziam pesquisa no Brasil, o que contraria todos os dados a respeito, os quais creditam mais de 90 % das pesquisas no país às públicas (ver, a propósito, o artigo de Sabine Righetti e Estevão Gamba, na Folha de S. Paulo, de 23/04, onde se demonstra ainda que “USP, Unesp e Unicamp produzem, sozinhas, um terço de toda a ciência feita nas 198 universidades do país”).
Diante de uma posição tão deliberadamente mentirosa e destrutiva, já se podia esperar que os ataques não conheceriam limites estabelecidos pelos fatos, pela razão ou pela mais modesta sensatez –, três fontes de saber notadamente desprezadas pelos dirigentes da “nova política”, cuja novidade é exatamente essa: a de negar fatos, argumentos e ainda o simples bom-senso com a certeza de que não há nada mais convincente do que a ignorância compartilhada.
O documento de aprovação da CPI, abertamente inconstitucional e desprovido de objetividade, não se dava ao trabalho de tipificar a irregularidade a ser investigada. O caráter vago do documento fez com que a deputada Beth Sahão (PT), apresentasse mandado de segurança já no dia 23/04 contra a abertura da CPI, pois não foram apresentados os requisitos legais previstos para a sua existência, o que a tornava “manifestamente ilegal”, apoiada em “fatos genéricos, não determinados”, e, quando muito, “veiculados pela imprensa”, conforme se lê na reportagem de Paulo Roberto Netto, em O Estado de S. Paulo, de 24 de abril de 2019.
No entanto, se o documento da CPI nada dizia, nos bastidores da Alesp os falastrões diziam muito. Por exemplo, em reportagem de Pedro Venceslau e Renata Cafardo, de O Estado de S.Paulo, publicada em 22 de abril, revelava-se que a “Assembleia Legislativa de São Paulo será palco de uma ofensiva da base do governo João Doria (PSDB) com abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra o que os deputados definem como ‘aparelhamento de esquerda’ das universidades públicas paulistas e ‘gastos excessivos’ com funcionários e professores”. No âmbito dessa ofensiva, ignorava-se com a maior desfaçatez o decreto de “autonomia universitária”, de 1989, na gestão Orestes Quércia, que oficializou não apenas a liberdade de cátedra, mas sobretudo a autonomia de gestão administrativa e financeira de seus recursos materiais — decreto justamente lembrado na sessão conjunta dos Conselhos Universitários de USP, UNESP e Unicamp, no dia 15 de Agosto deste ano, no campus da primeira.
Segundo o diretor da Faculdade de Direito da USP, Prof. Floriano de Azevedo Marques, o decreto da “autonomia universitária” implica dizer que “a instituição conduz seus assuntos acadêmicos e indica seus dirigentes”, cláusula que considera “absolutamente impenetrável porque vem da Constituição”. Os mesmos pontos foram reafirmados pelo STF, em 2018, quando aconteceram invasões truculentas de tropas policiais a Universidades, em vésperas das eleições, sob os mais exorbitantes pretextos.
Triagem ideológica
E se afrontar a Constituição é inadmissível num estado de direito, o que dizer de uma CPI que pretende fazer triagem ideológica dos membros da Universidade? Aqui, violenta-se a Constituição e ainda a própria ideia de democracia, onde a liberdade de credos religiosos e de convicções políticas é inalienável de cada cidadão da república. A vontade de reprimir cientistas e pensadores “de esquerda”, em si mesma, é repugnante e tem de ser repudiada — não apenas pelos que se consideram de esquerda, que, diga-se, nem de longe são maioria na Universidade. Não é a esquerda que é atingida por uma aberração parlamentar como essa, mas o próprio coração da democracia, pois se trata de um ato de traição inaceitável por parte de representantes eleitos, cuja legitimidade depende dela.
A ameaça do deputado Wellington Moura (PRB), vice-líder do governo, de “analisar como as questões ideológicas estão repercutindo no orçamento”[sic], dado perceber “um predomínio da esquerda nas universidades” é tão ostensivamente desinformada como ofensiva à mais singela ideia de governo democrático. Leia-se o IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; do art. 5º da CF.
O que ele imagina como “análise”? Pedir atestado ideológico para saber se o dinheiro gasto com a pesquisa é adequado? Julga que os maiores cientistas e intelectuais do país farão ou não um trabalho de pesquisa financeiramente justificado de acordo com o voto que deram na última eleição? Que o médico que pesquisa o câncer, o físico que estuda o neutrino, ou o crítico da cultura hão de gastar bem ou mal dependendo de ler a mesma cartilha ideológica dos governistas? Não há nada mais contrário à ideia de boa ciência do que a tentativa de controlar politicamente os seus laboratórios, dados e estudos. Tal propósito é abertamente fascistoide, ainda que esconda o seu nome vergonhoso com a preocupação fiscalista ou de gestão eficiente.
E a vergonha desse Processo kaftiano não se apagará nem que os resultados sejam nulos! O gesto espúrio está inscrito definitivamente na tentativa impossível de submeter a inteligência e a cultura, livres por natureza, à adoção de qualquer ideário político, muito menos a um único ideário político. De resto, tudo na CPI é miseravelmente falso. O que está por trás dessas caça às bruxas é bem mais palpável que as ideologias de ocasião. O que os governistas desejam é o mesmo que já anunciaram vários dos economistas do primeiro escalão de o Estado e do país: a desvinculação das verbas destinadas à Educação para fazer com ela o que quiserem. Está por trás dessa investigação o vil desejo de meter a mão nos recursos das Universidades, assim como querem meter a mão nos recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Assim, ao longo da CPI, lançando mão das parvoíces ideológicas agora habituais, que dão vergonha alheia a qualquer pessoa já nem digo inteligente, mas minimamente civil, o que pretendem é dispor a bel prazer dos recursos públicos que, constitucionalmente, estão obrigados a repassar para as Universidades e á educação. Eis o que se esconde na falta de clareza da CPI. Eis a sua obscenidade básica. Brandem o dedo contra a figura ridícula do “marxismo cultural” como cortina de fumaça para financiar uma avidez primária, burra e sem futuro. Não lhes importa nada que sacrifiquem nesse Processo kaftiano o ensino científico e crítico mais forte do país, nível duramente atingido apenas a partir da autonomia de gestão pedagógica e financeira das Universidades.