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Excertos de Shadow: soft et soif, de Nicole Brossard

Nicole Brossard (Montreal, 1943) é uma artista múltipla: professora, poeta, romancista, dramaturga, ensaísta e antologista. Desde o lançamento de seu primeiro livro, em 1965, até hoje, já publicou cerca de trinta livros, dentre os quais Le centre blanc (Montreal, Orphée, 1970), La lettre aérienne (Montreal, Remu-ménage, 1985), Le désert mauve (Montreal, L’Hexagone, 1987), Hier (Montreal, Québec Amérique, 2001), Cahier de roses et de civilisation (Quebec, Art le Sabord, 2003). Suas obras mais recentes são Je m’en vais à Trieste (Quebec, Écrits des Forges, 2003) e L’horizon du fragment (Quebec, Trois-Pistoles, 2004). Vários de seus livros foram traduzidos para diversas línguas, tais como espanhol, inglês e italiano, e lhe valem hoje uma reputação internacional.

Brossard se encontra entre os principais nomes de uma geração que renovou a poesia quebequense no final da década de 1960 e por toda a de 1970. Em livros como Le centre blanc e Suite logique (Ottawa, L’Hexagone, 1970), sua poesia, abstrata e “antilírica”, influenciou os jovens poetas da revista Les Herbes Rouges.

Reconhecida pelo Dictionnaire des écrivains québécois contemporains como “une féministe engagée”,[2] ela ajudou a fundar, em 1965, a revista literária La Barre du Jour, que se posicionava de maneira rebelde contra a poesia de inspiração nacionalista. Em 1976, fundou o jornal feminista Les Têtes de Pioche. Em 1991, publicou, com Lisette Girouard, uma Anthologie de la poésie des femmes au Québec (Des origines à nos jours) (Montreal, Remu-ménage).

Em 1991, foi agraciada com o prêmio Athanase-David, a mais alta distinção literária na região de Quebec; em 1994, foi recebida como membro da Academia de Letras de Quebec. Em 2006, ganhou o prestigioso prêmio Molson do Conselho das Artes do Canadá.

Sua poesia nunca deixou de denunciar e sublinhar a derrota do pensamento, a era do vazio e o declínio do império modernista. Conforme Ana Lúcia Paranhos, durante os anos 1960, época da Revolução Tranqüila no Canadá, as palavras de ordem de Brossard eram “ruptura, transgressão, desejo, exploração”.

Em contraposição a um discurso “oficial” vigente no Quebec das décadas de 1960 e 1970, que defendia o “homogêneo”, a prática poética e romanesca brossardiana colocaria, por via do heteregêneo, a questão da busca de uma identidade, que vem desde a década de 1970. Dentre suas múltiplas identidades, a figura da lésbica torna-se central. Em entrevista a Cépald Gaudet, Nicole Brossard explica que, para ela, a emoção lésbica

transforme une lecture de la réalité, qu’elle suscite des images et des métaphores nouvelles en ce qui concerne le corps des femmes et le rapport amoureux. De plus, je dirais que l’identité lesbienne s’accompagne le plus souvent d’une plus grande liberté critique à l’égard du sexisme et de la phallocratie puisque la lesbienne n’est pas intimidée ou séduite par l’aura symbolique des hommes.[3]

Na base da poesia revolucionária brossardiana estaria, pois, uma linguagem transformada pela sexualidade. Com base nesses dois eixos, segundo Paranhos, o processo da escritura, para Brossard,

passará a ser visto como campo de pesquisa e como gerador de uma linguagem nova; a consciência feminista, como campo de ação e como possibilidade de transformação.

Esses dois eixos tornariam a escritura brossardiana fluída, sensual, de modo que seus mundos poético e romanesco só se revelariam por alusões e sugestões. Para Ana Lúcia Paranhos,

a intuição espacial ocupa um lugar bastante particular: observa-se aí uma tensão permanente entre o “lá” e o “aqui”, entre o “dentro” e o “fora”. Essa tensão é, antes de tudo, um sinal evidente do jogo inclusão versus exclusão que se instala no discurso, representado pelo desejo de inserir um sujeito feminino na linguagem patriarcal, mas também, e sobretudo, um sinal maior da energia inerente à linguagem e ao processo da escritura.

Portanto, toda a obra brossardiana compreende um universo poético complexo, aberto ao mundo e, ao mesmo tempo, interiorizado.

Acrescente-se que, nos poemas brossardianos, há uma constante tensão entre concreto e abstrato, bem como entre comunicável e incomunicável. Essas tensões denunciariam “uma era do vazio”. Em Brossard, a abstratização implica uma viagem aos confins da linguagem com seus sentidos e images/stories. Por sua vez, a incomunicabilidade força o leitor a construir sentido(s) no/para o poema. Assim, incapaz de separar a arte da vida, Nicole Brossard não pára de se interrogar sobre o ato poético e a liberdade artística, nem de explorar, por meio de sua obra, o laço que une o espaço mental, o corpo e a realidade.

Esta é a primeira vez que alguns de seus poemas ganham versão em língua portuguesa. Para a seleção que apresentamos a seguir, utilizamos poemas do livro Shadow: soft et soif (Los Angeles, Seeing Eye, 2003), organizado e traduzido para o inglês por Guy Bennett. Em nosso processo de tradução a quatro mãos, privilegiamos, na escolha das palavras, uma maior abstratização, de modo a ressaltar esse importante aspecto da poética brossardiana para o leitor brasileiro, ainda não familiarizado com sua poesia. Assim, por exemplo, traduzimos “lieu” por “ágora” (de origem grega). Num dos poemas, permitimo-nos usar na tradução de “langue qui chavire”, que vertemos como “língua náugrafa”, o neologismo leminskiano. Mantivemos a pontuação sóbria de vírgulas e pontos, que dá aos poemas um ritmo mais rápido de leitura.

Diante dos poemas selecionados, o leitor poderá penetrar no mundo poético brossardiano, com sua constante tensão entre matéria e visão, claridade e escuridão, linguagem e realidade, dentro e fora. É essa tensão que faz de Nicole Brossard uma poeta e escritora comprometida tanto com a busca incessante de uma identidade quanto com o questionamento de qualquer realidade estabelecida.

 

toutes les soifs sont des creux de lumière
dans la douleur un temps fort d’origine

dans le grand tableau des pronoms
dis-moi si ma mort va vite d’un siècle
à l’autre s’il faut oublier au fil du temps
l’orchidée, ajourner le délire
dis-moi si cet appétit que j’ai de l’aube
ira au milieu des cultures
trembler comme une obsession, un horizon

 

 

todas as sedes são claros de luz
entranhado na dor, um tempo vigoroso de origem

na grande tabela dos pronomes
diga-me se minha morte vai mais veloz do que um século
a outro se é preciso esquecer no fio do tempo
à orquídea, adiar o delírio
diga-me se essa gana que tenho da aurora
vai se deslocar para os canteiros
tremer como uma obsessão, um horizonte

 

je n’ai pas encore parlé de disparition
en amont de tous les pronoms
la vie prend des décisions
sous la peau elle prépare
roue de rêves et de cerceaux
des jeux de maths et de cercueils

maintenant voici les glaciers
quelques matériaux
d’aube et de souffrance

 

 

não falei ainda do desaparecimento
refluxo de todos os pronomes
a vida toma decisões
sob a pele ela prepara
círculo de sonhos e brinquedos
jogos de matemáticas e de féretros

agora eis aqui as geleiras
quaisquer materiais
de aurora e tormenta

 

il n’y aura pas de portrait
de ma mère ni eau-forte ni geste
en langue qui chavire
il n’y aura qu’un décor encore debout
au milieu de la ville et du vent
une mélancolie de bête que l’aube
aura prise de vitesse et d’intensité

 

 

não haverá retrato
da minha mãe nem água-forte nem gesto
em língua náugrafa
haverá apenas um cenário ainda de pé
no meio da cidade e do vento
melancolia de Besta que a aurora
vai capturar com tensão e rapidez

 

tiens-toi bien dans le silence
à l’aube le verbe être court vite
dans les veines, corps céleste il file
comme après l’amour ou grain de sel
sur la langue le matin, goût d’immensité
il rapproche
de l’humidité première
viens m’embrasser
pense au grand pouvoir de l’eau
qui fait de nous un lieu

 

 

Prospere em meio ao silêncio
na aurora o verbo ser corre veloz
nas veias, corpo celeste ele avança
como depois do sexo ou grão de sal
sobre a língua de manhã prova do vasto
ele se aproxima
da umidade primeva
venha me beijar
pense no grande poder da água
que faz de nós ágora

 

Nuques 3

2.
il m’arrive de tourner le dos aux planètes
mon ombre calquée dans la nuit
sur une forme ancienne d’anima
il m’arrive selon les bruits de dire
adieu en suivant la lumière
des bancs de sardines, de dauphins et de requins
aux prises avec des noyades d’aube il m’arrive
de remonter le cours du temps
enlacée par la très haute vitesse de l’univers

4.
pour le bleu de la mer les blessures
et les étreintes j’ai voulu
tracer la juste obscurité
des réponses lentes
et des trous d’absence
traduire
dans la répétition des rêves ronds et précoces
l’envers bleu des interdits

6.
qui a dit que brûler soulage
de la matière et du vide
qui a dit pas de mélancolie
ténèbres ou tourbillons
restons près des racines
capables d‘étreintes et de tango

7.
à petite échelle
qu’est-ce qui fascine
sinon la répétition
un même nous éclaté changeant
entre les paradoxes
de l’art le noir et la pluie
dark cachot
couteau à la gorge
le monde continue
on se dit adieu
en fermant les yeux
paupières au ralenti
entre les apparitions

9.
midi, surgissement derrière la nuque
torrent de deuils et d’étincelles
la voix reprend son rythme au seuil
de l’immobilité

10.
par quel angle de la destruction
allons-nous nous souvenir
soulever la tendresse
rideau d’eau petite nuit
diagonale d’oubli

 

 

Nucas 3

2.
Sucede que dou de costas aos planetas
minha sombra, em declaque da noite
sobre uma forma antiga de anima
sucede-me que chego, segundo os boatos, a dizer
adeus seguindo a luz
dos bancos de sardinhas, de golfinhos e de tubarões
em luta com os engasgos da aurora chego
de subir o curso veloz do tempo
enlaçada pela altíssima velocidade do universo

4.
para o azul do mar das chagas
e dos abraços eu quis
traçar a justa obscuridade
das respostas lentas
e das cavernas ausentes
traduzir
na repetição dos sonhos circulares e precoces
o avesso azul dos interditos

6.
Afirmou  que queimar alivia
da matéria e do vazio
insistiu em  nada de melancolia
trevas ou turbilhões
permanecer  perto das raízes
aptas  para  tango e  abraços

7.
em pequena escala
o que mais pode fascinar
exceto a repetição
um mesmo nós tal e qual, movendo-se
entre os paradoxos
da arte o escuro e a chuva
cárcere dark
faca na garganta
o mundo segue
dissemos adeus
fechando os olhos
pálpebras lentas
entre as aparições

9.
meio-dia, irrompe da nuca
torrente de lutos e de centelhas
a voz retoma o seu ritmo no limiar
da imobilidade

10.
por qual ângulo da destruição
iremos nos lembrar
suspender a suavidade
cortina d’água noite mínima
diagonal que se adia

 

Traduções: Éclair Antonio Almeida Filho e Márcio Salerno, com sugestões de Régis Bonvicino

 

 

 

Referências bibliográficas

The Canadian Encyclopedia. Nicole Brossard: notice biographique. Disponível em: <http://www.thecanadianencyclopedia.com/index.cfm?PgNm=TCE&Params=f1ARTf0001035>.

Gaudet, Cépald. La passion de la beuaté: entretien avec Nicole Brossard. Disponível em: <http://felix.cyberscol.qc.ca/LQ/auteurB/brossa_n/entrev_b.html>.

Le monde de Félix. Nicole Brossard: notice biographique. Disponível em: <http://felix.cyberscol.qc.ca/LQ/auteurB/brossa_n/brossard.html>.

Paranhos, Ana Lúcia Silva. “A palavra reapropriada: o processo da escritura na obra de Nicole Brossard”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 13 (3), pp. 756-7, set./dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300018&lng=en&nrm=iso>. Capturado em 14 jan. 2007.

Stockman, Katia. Nicole Brossard: notice biographique. Disponível em: <http://www.litterature.org/notice.asp?numero=101>.


Notas

[1] Doutor em literatura francesa pela Universidade de São Paulo.

[2] “Uma feminista engajada”.

[3] “[…] transforma uma leitura da realidade, suscita images/stories e metáforas novas no que diz respeito ao corpo das mulheres e à relação amorosa. Além disso, eu diria que a identidade lésbica é acompanhada, no mais das vezes, por uma liberdade maior em consideração ao sexismo e à falocracia, já que a lésbica não é intimidada nem seduzida pela aura simbólica dos homens.”

 


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