“Eu acredito seriamente que vocês vão retardar o curso da civilização na Irlanda, impedindo o povo irlandês de dar uma boa olhadela em si mesmo no meu bem polido espelho”. [1] James Joyce
Nas últimas décadas do século XX, um número expressivo de estudos propôs-se a fazer uma leitura política da obra do escritor irlandês James Joyce (1882 – 1941). Assim, uma idéia freqüente em boa parte desses ensaios é a de que “…muitas das qualidades revolucionárias, das inovações lingüísticas e literárias de Joyce podem estar relacionadas com a sua compreensão, e nesta fundamentada, da expropriação ideológica, étnica e colonial”. Ao sustentarem essa opinião, esses textos apontam como “Joyce escrevia em oposição às pretensões culturais imperialistas britânicas do seu tempo.”[2]
Dentro do conjunto global dos estudos joycianos, todavia, esse tipo de análise que associa ideologia e estética, sondando certas “intenções do autor” representadas em sua escritura, ainda é relativamente nova. Caberia lembrar que os ensaios mais antigos sobre os romances de Joyce não enfatizavam – muitas vezes negavam – o aspecto político de sua obra:[3]
Durante a época da Guerra Fria, a academia era via de regra hostil a interpretações políticas de textos, mas há outras razões para a escassez desse tipo de análise no caso de Joyce. Primeiro, a recusa de Joyce em se mostrar até mesmo minimamente envolvido nas grandes questões políticas européias dos anos 1930 foi determinante para provar a teoria de que os textos joycianos, assim como o autor deles, eram apolíticos. A segunda maior razão para essa omissão pode ser atribuída à acusação, levantada pela esquerda nos anos 1930, e que recaía igualmente sobre Franz Kafka, de que sua arte era decadente. [4]
Somente no início dos anos setenta, particularmente na França, é que começaram a aparecer os primeiros estudos sérios e importantes devotados aos aspectos políticos da obra do escritor irlandês. Em 1975, Phillipe Sollers opinou o seguinte:
Acreditou-se ingenuamente que Joyce não tinha nenhuma preocupação política porque nunca disse ou escreveu nada sobre o assunto numa língua franca.A mesma velha estória: arte de um lado, opiniões políticas do outro, como se houvesse um lugar para opiniões políticas – ou para qualquer coisa que diga respeito a esse assunto. [5]
A posição política de Joyce é, todavia, visível tanto na sua ficção quanto nos ensaios críticos (ainda sem tradução para o português) que escreveu entre os anos 1896 (a data é incerta) e 1937, os quais incluem discussões sobre estética e política. Na opinião do estudioso irlandês Seamus Deane, aliás, “na Irlanda, ser um escritor era, num sentido muito específico, um problema lingüístico. Mas era também um problema político.“[6] Levar em conta, portanto, uma questão regional, a “questão irlandesa”, que é essencialmente política, parece hoje muito relevante para se “entender” esse “novo” Joyce, um Joyce, digamos, pós-colonialista, por oposição ao Joyce formalista, construído pela crítica do passado.
Aqui se faz necessário, então, um breve apanhado histórico. Convém lembrar que cerca de quarenta e cinco anos antes do nascimento de Joyce ocorreu “o maior desastre da história da Irlanda”, que os historiadores denominam a “Grande Fome” (1845 – 1848). Essa tragédia nacional dizimou quase metade da população do país e intensificou um antigo sentimento de rancor contra os colonizadores ingleses. Tanto no período da “Grande Fome” como no que se seguiu a ele, o governo britânico foi acusado pelos irlandeses de praticar uma “política cruel”, o laissez-faire : “isso fez com que uma multidão de pobres necessitados apelassem à Lei de Assistência Social, que recusou socorro quando a segunda crise total da batata ocorreu … Nem durante a penúria nem nas décadas seguintes foi implementada qualquer medida de reconstrução ou melhoria agrícola, e essa omissão condenou a Irlanda ao declínio.”[7]
Joyce raramente menciona esse acontecimento na sua ficção, mas a “Grande Fome” é um tema recorrente nos seus ensaios críticos que, sob esse aspecto, podem explicitar o que fica muitas vezes subentendido na sua ficção. Cito, como exemplo, um fragmento do ensaio “Irlanda, Ilha dos Santos e Sábios” (1907) , texto em que o escritor discute os problemas da colonização inglesa na Irlanda:
Os ingleses agora menosprezam os irlandeses porque eles são católicos, pobres e ignorantes; contudo, não será fácil justificar tal menosprezo a algumas pessoas. A Irlanda é pobre porque as leis inglesas arruinaram as indústrias do país, especialmente a indústria da lã, porque a omissão do governo inglês nos anos da carestia da batata permitiu que a maior parte da população morresse de fome e porque, sob a presente administração, enquanto a Irlanda está perdendo sua população e os crimes são quase inexistentes, os juízes recebem salário de um rei e os funcionários do governo e aqueles nos serviços públicos recebem imensas somas para fazer pouco ou nada. [8]
Séculos antes da “Grande Fome”, contudo, a Irlanda já vinha sendo “espoliada” (termo que tomo emprestado aos historiadores e que o próprio Joyce usaria neste contexto) pelos ingleses.
Em 1160, após a chegada dos primeiros normandos ao país, comandados por Henrique II da Inglaterra [9], a Irlanda – uma nação celta, que possuía sua própria língua, lei e estrutura social desde o séc. VI a.C. – perdeu seu idioma nativo e sua cultura. Joyce aborda esse tema no já citado ensaio “Irlanda, Ilha dos Santos e Sábios”:
desde a invasão inglesa até os nossos dias, existe um intervalo de quase oito séculos, e se me detive mais demoradamente no período precedente, para fazê-lo entender as origens da índole irlandesa, não pretendo detê-lo, relatando as vicissitudes da Irlanda sob a ocupação estrangeira. Eu não farei isso especialmente porque naquele tempo a Irlanda cessou de ser uma força intelectual na Europa. As artes ornamentais, nas quais os antigos irlandeses se distinguiram, foram abandonadas e a cultura sagrada e profana caiu em desuso. [10]
Foi somente no final do século XIX, com o fortalecimento do nacionalismo[11] político, que ganhou força na Irlanda uma campanha pela independência do país. O movimento foi liderado por Charles Steward Parnell, conhecido como “the uncrowned king of Ireland” (“o rei não coroado da Irlanda”[12]). Dado curioso, Parnell era também patrono da Associação Atlética Gaélica, fundada em 1884 para promover os esportes irlandeses como forma de resistência política e cultural.
Entretanto, depois da queda política de Parnell – acusado, pelos ingleses, de ter-se envolvido com uma mulher casada, Katharine O`Shea – e da sua morte repentina, ocorrida em 1891, a luta pela independência do país perdeu o ímpeto e ficou esquecida por alguns anos. Esses fatos marcaram um novo período na história irlandesa, o da estagnação política. Essa experiência histórica foi descrita por Joyce em diferentes textos de ficção, como, por exemplo, no romance O Retrato do Artista Quando Jovem (1916), nos contos “Os Mortos“ e “Dia de Hera na Lapela” de Dublinenses (1914)[13], e, ainda, no romance Ulisses (1922). Segundo Michael MacCarthy Morrogh:
O maior romance do século XX, Ulisses, de James Joyce, transcorre em Dublin em 1904. Joyce escolheu essa data porque foi o ano em que ele e Nora Barnacle deixaram a Irlanda; mas a data também simbolizava um tempo em que nada demais estava acontecendo no cenário público. Dublin e a maior parte da Irlanda pareciam ter renunciado às causas nacionalistas e pouco se importavam com a depressão política.[14]
Alguns estudiosos afirmam ainda que a vocação literária do jovem Joyce teria se manifestado exatamente nesse período de “desilusão” nacionalista. Pouco depois da morte de Parnell, Joyce, então com nove anos, escreveu seu primeiro poema, intitulado “Et Tu, Healy”, em homenagem ao líder irlandês. Não há nenhuma cópia de “Et Tu, Heal”, mas se conhece uma declaração de Stanislaus Joyce, irmão do escritor, a respeito do poema. Segundo Stanislaus, o poema era “uma diatribe contra o suposto traidor, Tim Healy, que informou [o envolvimento de Parnell com Katherine O`Shea] à ordem dos bispos da igreja católica e se tornou um inimigo mortal de Parnell.”[15]
Caberia aqui mencionar que Charles Steward Parnell poderia ser associado a Humphrey Chimpden Earwicker, H.C.E., o protagonista de Finnegans Wake (1939), considerado por muitos críticos como uma das obras capitais do século XX. Como Parnell, H.C.E. é acusado de cometer um crime de natureza sexual: “haver-me havido com incavalheiridade imprópria oposto a um par de deliciosas serviçais” (FW 34. 18-19/ tradução de Donaldo Schüler). Além disso, tal como o líder irlandês, que foi acusado de mandar matar os líderes ingleses Lord Frederick Cavendish e Thomas Burke, no Parque Phoenix, também H.C.E. é acusado de envolver-se numa briga com um assaltante, ou com a polícia local, no mesmo parque.[16]
Marcando, porém, o fim do período de estagnação política, Arthur Griffith fundou em 1899 um novo partido, o Sinn Féin (“Nós mesmos”), que tinha por objetivo combater Westminster e criar um parlamento irlandês independente.
A história da Irlanda moderna teve início, contudo, segundo os historiadores, apenas em 1916, quando dois grupos militares, o “Republican Brotherhood”, liderado pelo poeta Pádraic Pearse, e “Citizens’Army”, comandado por James Connolly, tomaram posse de alguns pontos importantes de Dublin e proclamaram a independência da Irlanda. O movimento foi contido pelo exército britânico e seus dois líderes, Connolly e Pearse, foram executados num julgamento sigiloso. Apesar do insucesso dessa revolta, ela foi o primeiro passo de um movimento pela criação de um governo independente.
Esse e outros fatos históricos ocorridos na Irlanda parecem ter marcado para sempre a vida e a obra de James Joyce, que, muito embora tenha deixado o país ainda jovem, aos 22 anos, nunca se distanciou espiritualmente da sua terra natal, nem ignorou os problemas políticos que esta continuava a enfrentar: “o desenvolvimento de Joyce como um artista vai de uma realidade insular para uma riqueza cosmopolita, mas para acompanhá-lo temos que inverter a direção.”[17]
De acordo com os biógrafos do escritor, entretanto, Joyce nutria por seu país sentimentos contraditórios, indo da admiração à rejeição. Em 1909, dois anos depois de escrever o ensaio “Irlanda, Ilha dos Santos e Sábios”, um texto “nacionalista” [18], Joyce voltou a Dublin para uma rápida visita (nesta época o escritor morava em Trieste) e declarou o seguinte numa carta endereçada à mãe de seus filhos e futura esposa, Nora Barnacle :
Eu sinto orgulho em pensar que meu filho […] será sempre um estrangeiro na Irlanda, um homem falando uma outra língua e educado numa tradição diferente.
Eu odeio a Irlanda e os irlandeses. Eles me olham na rua pensando que eu nasci entre eles. Talvez eles percebam meu ódio em meus olhos. Não vejo nada em nenhum lado, a não ser a imagem do sacerdote adúltero e seus criados e mulheres mentirosas e maliciosas [19]
Mas, de fato, Joyce nunca se separou da sua cidade natal, ao menos na sua imaginação, por isso Dublin parece estar sempre presente na sua obra ficcional: “se Dublin algum dia for destruída, ela poderá ser reconstruída a partir das páginas dos meus livros”[20], declarou o escritor na época em que escrevia Ulisses.
Concluindo o que expus acima, afirmaria, repetindo o que já disseram os estudiosos, que as opiniões políticas de Joyce não podem ser, todavia, “facilmente definidas pelas idéias que são mais familiares à nossa compreensão de sentimentos nacionais e posições políticas”.[21]
Ao compor sua obra, principalmente a última, Finnegans Wake, o escritor adotou uma linguagem indireta e parodiou eventos e personagens históricos numa dimensão global, criando, assim, uma história que é simultaneamente universal e local, com nomes que podem ser reconhecidos mundialmente, mas que se encontram num ponto particular do planeta, a Irlanda.
Não se pode esquecer ainda que, no final do século XIX e início do século XX, época em que Joyce começou a escrever suas ficções, o império britânico viveu o seu apogeu, o que parece ter gerado em parte da população inglesa um forte sentimento de superioridade racial sobre outros povos, e “especialmente sobre os irlandeses”, segundo apontam alguns pesquisadores, como, por exemplo, Vicent Cheng [22]:
A convicção de que a Pax Britannica realmente estaria a serviço dos melhores interesses do resto do mundo […] tendia a reforçar a presunção etnocêntrica de genialidade do povo anglo-saxão para regular suas vidas e as de outros povos [… ] todas as outras raças, em particular os celtas, requereram instituições altamente centralizadas ou autoritárias para evitar uma violenta revolta política e social.[23]
Essa situação política, entretanto, sempre mereceu o olhar atento do autor de Finnegans Wake. Em 1907, por exemplo, Joyce escreveu um ensaio crítico intitulado “A Irlanda no Tribunal”, cuja tradução integral ofereço a seguir (esse texto integra uma antologia de ensaios críticos de Joyce que estou preparando em português). Nele, o escritor discute o julgamento de um irlandês pela corte inglesa, numa pequena cidade do interior da Irlanda. Muito embora os membros da corte não falassem ou entendessem o idioma irlandês, nem o réu falasse inglês, o mesmo foi considerado culpado e condenado por um crime que até hoje não se sabe ao certo se ele realmente cometeu.
“A Irlanda no Tribunal” é uma crítica ao descaso com que o colonizador inglês tratava o povo irlandês e os problemas do seu país: “a imagem daquele velho estarrecido, um remanescente de uma civilização que não é nossa, surdo e emudecido diante de seu juiz, é um símbolo da nação irlandesa no tribunal da opinião pública..” [24]
A Irlanda no tribunal (1907) [25]
Alguns anos atrás houve um impressionante julgamento na Irlanda. Num lugar isolado, numa província do oeste, chamada Maamstrasna, um assassinato foi cometido.[26] Quatro ou cinco cidadãos, todos membros da antiga tribo dos Joyces, foram presos. O mais velho deles, o septuagenário Myles Joyce, era o principal suspeito. A opinião pública na época o supunha inocente e hoje o considera um mártir. Nem o velho, nem os outros acusados sabiam inglês. A corte de justiça teve que recorrer aos serviços de um intérprete. O interrogatório, conduzido pelo intérprete, foi às vezes cômico, às vezes trágico. De um lado estava o intérprete, excessivamente cerimonioso, do outro o patriarca de uma tribo miserável e pouco familiarizada com os hábitos civilizados, o qual parecia estupefato com toda a cerimônia judicial. O magistrado disse:
“Pergunte ao acusado se ele viu a senhora naquela noite.” A pergunta foi dirigida a ele em irlandês e o velho rompeu numa explicação confusa, gesticulando, suplicando aos outros acusados e ao céu. Então ele se acalmou, esgotado de seu empenho, e o intérprete dirigiu-se ao magistrado e disse:
“Ele disse não, ‘Vossa Excelência’”.
“Pergunte se ele estava nas proximidades naquele momento”. O velho começou novamente a falar, protestar, gritar, quase fora de si, aflito por não ser capaz de entender ou de se fazer entender, chorando de medo e terror. E o intérprete, mais uma vez, secamente:
“Ele disse não, ‘Vossa Excelência’”.
Quando o interrogatório terminou, o pobre velho foi declarado culpado e enviado a uma corte superior, que o condenou à forca. No dia em que a sentença foi executada, a praça na frente da prisão estava lotada, cheia de pessoas ajoelhadas, bradando orações em irlandês pelo descanso da alma de Myles Joyce. Contou-se depois que o carrasco, incapaz de se fazer entender pela vítima, chutou de raiva a cabeça do miserável homem, a fim de colocá-la na forca.[27]
A imagem daquele velho estarrecido, um remanescente de uma civilização que não é nossa, surdo e emudecido diante de seu juiz, é um símbolo da nação irlandesa no tribunal da opinião pública. Como ele, ela é incapaz de apelar para a moderna consciência da Inglaterra e de outros países. Os jornalistas ingleses atuam como intérpretes entre a Irlanda e o eleitorado inglês, o qual lhes dá ouvidos ocasionalmente e termina se aborrecendo com as intermináveis queixas dos representantes nacionalistas que passaram a fazer parte de seu Parlamento, conforme imagina, para romper sua ordem e extorquir dinheiro. No exterior não se faz nenhuma menção à Irlanda exceto quando irrompem as rebeliões, como as que fizeram a agência dos Correios e Telégrafos estremecer nestes últimos dias.[28] Lendo superficialmente as informações enviadas de Londres (as quais, embora careçam de mordacidade, têm algo do laconismo do intérprete mencionado acima), o público imagina os irlandeses como salteadores, com caras deformadas, vagando pela noite com o objetivo de arrancar a pele de todo Unionista. E o verdadeiro soberano da Irlanda, o Papa, recebe essas notícias como uma matilha de cães na igreja. Já debilitados pela sua longa jornada, os apelos estão quase sem força quando chegam à porta de bronze. Os mensageiros do povo que nunca renunciou à Santa Sé no passado, o único povo católico para o qual fé também significa o exercício da fé, são rejeitados em favor dos mensageiros de um monarca, descendente de apóstatas, que solenemente abjurou no dia de sua coroação, declarando, na presença de seus nobres e do povo, que os rituais da Igreja Católica Romana eram “superstição e idolatria”.
* * *
Existem vinte milhões de irlandeses espalhados pelo mundo todo. A Ilha Esmeralda[29] contém apenas uma pequena parte deles. Mas, ao refletir sobre isso, enquanto a Inglaterra converte a questão irlandesa no centro de toda a sua política interna, usando de muito bom senso para resolver rapidamente as questões mais complexas das políticas coloniais, o espectador não pode deixar de perguntar por que o Canal de St. George constituiu um abismo mais profundo que o oceano entre a Irlanda e o seu orgulhoso dominador. Na verdade, a questão irlandesa ainda hoje não está resolvida, depois de seis séculos de ocupação armada e mais de cem anos de legislação inglesa, a qual reduziu a população da infortunada ilha de oito para quatro milhões, quadruplicou os impostos e tornou mais complicado o problema agrário.
Realmente, não há problema mais complexo do que este. Os próprios irlandeses quase não o compreendem, e os ingleses menos ainda. Para outros povos é uma peste negra. Mas, por um lado, os irlandeses sabem que essa é a causa de todos os seus sofrimentos e, por essa razão, para solucioná-lo, adotam muitas vezes métodos violentos. Por exemplo, vinte anos atrás, vendo-se reduzidos à miséria pelas brutalidades dos grandes proprietários de terra, recusaram-se a pagar seus arrendamentos de terra e obtiveram de Gladstone soluções e reformas. Hoje, ao ver que os pastos estão repletos de gado bem alimentado, enquanto um oitavo da população carece de meios de subsistência, eles levam o gado das fazendas. Irritado, o governo liberal planeja voltar a utilizar as táticas coercitivas dos conservadores e, já há várias semanas, a imprensa de Londres vem dedicando inumeráveis artigos à crise agrária, a qual, eles dizem, é muito séria. Publica notícias alarmantes das revoltas agrárias, as quais são, então, reproduzidas por jornalistas no exterior.
Não me proponho a fazer uma exegese da questão agrária irlandesa nem relatar o que acontece atrás dos bastidores da política de duas caras do governo. Mas acredito que seja conveniente fazer uma modesta retificação dos fatos. Quem quer que tenha lido os telegramas lançados de Londres fica convencido de que a Irlanda está passando por um período de criminalidade fora do comum. Um julgamento errôneo, muito errôneo. Há menos criminalidade na Irlanda do que em qualquer outro país da Europa. Na Irlanda não há nenhum submundo organizado. Quando um desses incidentes que os jornalistas parisienses, com ironia atroz, chamam “idílios vermelhos”, ocorre, todo o país é por ele abalado. É verdade que nos últimos meses houve duas mortes violentas na Irlanda, mas pela mão das tropas britânicas em Belfast, onde os soldados atiraram inesperadamente numa multidão indefesa e mataram um homem e uma mulher. Houve ataques a gado, mas nem sequer ocorreram na Irlanda, onde o povo se contentou em abrir os estábulos e perseguir o gado pelas ruas por muitas milhas, mas em Great Wyrley, na Inglaterra, onde, durante seis anos, criminosos bestiais e enlouquecidos pilharam o gado, a tal ponto que as companhias de seguro inglesas não irão mais segurá-los. Cinco anos atrás um homem inocente, agora em liberdade, foi condenado a trabalhos forçados para satisfazer a indignação pública. Mas, mesmo durante o tempo em que esteve preso, os crimes continuaram. E, na última semana, dois cavalos foram achados mortos, com os habituais golpes no abdômen inferior e as vísceras espalhadas no pasto.
James Joyce
[2] COYLE. John (ed.). James Joyce, Ulisses, A Portrait of the Artist as a Young Man. Nova Iorque: Columbia University Press, 1998, p.146.
[3] BURNS. Christy L.. Gestural Politics: Stereotype and Parody in Joyce. Nova Iorque: State University of New York, 2000, p.117.
[4] WILLIAMS, Trevor L. Reading Joyce Politically. Gainesville: University Press of Florida, 1997, p.13.
[5] HAYMAN, David e ANDERSON, Elliott (org.). In the Wake of the Wake. Madison: University of Wisconsin Press, 1977, p.108..
[6] DEANE, Seamus, “Joyce the Irishman”, in ATTRIDGE, Derek. The Cambridge Companion to James Joyce. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p.35.
[9] Antes dos normandos, a Irlanda já havia sido invadida por outros povos como, por exemplo, os viquingues, que chegaram no país no ano de 795, fundaram Dublin, contribuíram para o desenvolvimento comercial da Irlanda e introduziram o sistema monetário irlandês e uma técnica avançada de construção naval, mas suas tropas foram vencidas pelos irlandeses.
[10] JOYCE, James. 1996, p.161. Do séc. VI ao século VIII, enquanto a Europa atravessava a Idade das Trevas (“Dark Ages“), a Irlanda viveu a Idade de Ouro (“Golden Age“) de sua história, quando, segundo John Ardagh, “esta remota ‘ilha dos santos e sábios’ teve alguma influência civilizadora sobre os países do Continente”. Ao contrário de outros países da Europa Continental, a Irlanda não sofreu da invasão dos bárbaros e, nesse período, construiu importantes monastérios cristãos, como, por exemplo, Glendalough, no Condado de Wicklow. Esses monastérios se tornaram centros de cultura e ensino. Data desta época o Livro Ilustrado dos Evangelhos, que, segundo os estudiosos, teria influenciado a escritura de Finnegans Wake. (ARDAGH, John. Op. Cit., p. 20).
[11] Para Anthony Giddens, nacionalismo é “um fenômeno que é basicamente psicológico – a adesão de indivíduos a um conjunto de símbolos e crenças enfatizado comunalmente entre membros de uma ordem política”. (GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a Violência. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 141).
[12] JOYCE, James. Dublinenses. Trad. por Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.131.
[13] Sobre a composição de Os Dublinenses, Joyce declarou o seguinte: “Minha intenção era escrever um capítulo sobre a história moral do meu país e escolhi Dublin como cenário porque a cidade me parecia o centro da paralisia”.
[14] MORROGH, Michael MacCarthy. Irish Century. A photographic History of the Last Hundred Years. Boulder: Roberts Rinehart Publishers, 1998, p.14.
[18] Segundo Anthony Giddens: “os sentimentos nacionalistas, em sua origem e em suas facetas posteriores no século XX, possuem alguns símbolos em comum. A ligação com a terra natal, associada à criação e perpetuação de certos ideais e valores distintos, que remontam a certos aspectos históricos de experiência ‘nacional’ – estas são algumas das peculiaridades freqüentes do nacionalismo”. (GIDDENS, Anthony. Op. Cit., p.232.)
[23] idem ibidem. Duas décadas antes da Primeira Guerra Mundial, quando Joyce tinha aproximadamente treze anos, Joseph Chamberlain, Secretário do Estado Britânico para as Colônias (“British Secretary of State for the Colonies”), fez a seguinte declaração: “a raça britânica é a melhor raça para governar que o mundo já viu.” (idem ibidem)
[25] Traduzido do inglês, o ensaio “Ireland at the Bar” integra a coletânea The Critical Writings of James Joyce, editado por Mason Ellsworth e Richard Ellmann (Nova Iorque: Cornell University Press, 1989). A versão original foi escrita em italiano, “L’Irlanda alla Sbarra”, e publicada em Il Piccolo della Sera, Trieste, 16 de setembro de 1907. (Nota do Tradutor.)
[26] Em 17 de agosto de 1882, um homem chamado Joyce, sua mulher e três de seus quatro filhos foram assassinados no Condado de Galway por um grupo de homens que os supunham informantes. O julgamento de dez homens ocorreu durante o mês de novembro e três deles foram enforcados em Galway pelos assassinatos, no dia 16 de dezembro. Myles Joyce foi considerado, em quase toda a parte, uma vítima inocente da indignação pública.
[27] Uma descrição do enforcamento por uma das poucas testemunhas oculares está incluída em Frederick J. Higginbotham, The Vivid Life (Londres, 1934) pp. 40-3.
[28] Joyce está se referindo às rebeliões de Belfast e aos vários casos de ataque a gado relacionados com a expulsão dos camponeses em agosto de 1907, e que foram noticiadas no mês de setembro. Em 15 de agosto houve um ataque à casa de um proprietário em Galway, e em 27 de agosto, um estado de desordem foi reconhecido nos condados de Clare, Galway, Leitrim, Roscommon e no de King. No final de agosto, o parlamento inglês considerava a possibilidade de recorrer a uma Ação de Desapropriação dos Arrendatários (Evisted Tenants Act) para remediar o problema.