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LITERATURA DE MERCADO E RECONHECIMENTO POST-MORTEM

Até poucas décadas atrás, qualquer indivíduo que vislumbrasse a ideia de devotar-se à escritura literária sabia, ou tinha por certo, que eram mínimas as possibilidades de se obter algum reconhecimento em vida, fosse pela então enorme dificuldade de publicação, fosse pela impenetrabilidade das esferas da crítica literária, ou pela pouco divisável senda da distribuição livresca, ainda feita de modo artesanal até o início dos anos 1990.

E nascíamos, assim, escritores, com essa máxima visão da possibilidade de um reconhecimento post-mortem, como se em nós estivesse incutido uma verdade aparentemente absoluta: aquela que diz, que tudo o que é bom e útil para a humanidade não pode ser perdido para sempre.

Mas estávamos enganados, todos. Tanto os poucos que obtiveram algum reconhecimento no transcorrer do caminho, como os que ainda ocupam a antessala do purgatório editorial e midiático da literatura. Os que obtiveram algum reconhecimento público estão hoje mais ou menos esquecidos, muito provavelmente por não terem se adaptado às novas ideologias de mercado, que vieram alterar os rumos do ideário literário no século xxi; e os que jamais saíram da periferia da notoriedade estão hoje quase que definitivamente excluídos do grande baile do reconhecimento público, e até mesmo do reconhecimento post-mortem.  Destes últimos, uma grande maioria foi parar nas academias literárias das sociedades dos amigos de bairros ou em pífias entidades de escritores, onde se transformaram em massa de manobra de intelectuais inescrupulosos, com vistas a algum cargo público, ou de algum endinheirado disposto a comandar e promover uma espécie de lumpesinato literário.

A ideia de um possível reconhecimento literário post-mortem não é, nem mesmo de longe, uma ideia da modernidade. O assunto foi abordado pela primeira vez por volta do ano 1160, em plena Idade Média, pelas mãos de um poeta goliardo, possivelmente de origem germânica, chamado Archipoeta. Seus versos foram preservados pela mão de um copista da Abadia de Seckau, Áustria (cerca de 1230), num manuscrito que só veio a ser descoberto em 1803, em Benediktbeuern, sul da atual Alemanha, e que tornou-se mundialmente conhecido como Carmina Burana, uma coletânea de poemas goliardos também chamados de “clérigos vagantes”. Carl Orff fez uso desses poemas para compor sua cantata cênica, de mesmo nome, nela incluindo um trecho do “Confessio”, poema atribuído a Archipoeta, onde encontramos estes versos significativos:

Os poetas se afastam dos lugares públicos
e, solitários, escolhem os esconderijos,
onde estudam e labutam intensamente sob a luz de velas,
mas só na posteridade terão uma obra reconhecida.
Os coros de poetas seguem o jejum e a abstinência,
fogem das disputas públicas e dos lugares tumultuados,
e para fazer uma obra que não morra,
morrem estafados de estudo e labor.

Como se pode ver, e ler, o assunto post-mortem foi originalmente abordado por quem de fato tinha razões para isso, pois vivia num mundo onde a Igreja de Roma ainda podia dar-se os ares de soberana absoluta, e Archipoeta, excetuando sua notória entrega à libertinagem e ao consumo de vinho, estava inexoravelmente imerso nessa verdade cristã que, entre outras coisas, prometia (e ainda promete) aos justos o Paraíso. Assim, esse reconhecimento literário post-mortem nada mais seria do que essa promessa de redenção, sobre a qual a Igreja católica erigiu o seu poder e com o qual influenciou gerações e mais gerações de escritores ocidentais, até fins dos anos 1950 e início dos 1960, quando, com o florescimento da contra-cultura, evidenciam-se as condições histórico-político-econômicas que culminarão com o término da Guerra Fria e o início da aceleração das relações entre a cultura e a economia de mercado.

Há hoje quem diga que as relações da cultura com a economia de mercado são um fenômeno do nosso presente histórico. Mas isso é um engano. Essas relações sempre existiram, até mesmo quando a produção de mercadorias, como a conhecemos hoje, não estava em voga. A mais famosa obra de Virgílio, a Eneida, foi escrita sob a mão de ferro do imperador Augusto, que obrigou o poeta das Églogas a concluí-la quando este, nos momentos finais de sua existência, queria jogá-la ao fogo. É possível que Virgílio, no momento derradeiro de sua vida, tenha se dado conta de que, tendo ascendido à proteção de Mecenas e Augusto, donos de todo o trigo que fazia o pão dos romanos, sua obra estava a serviço de um imperador que precisava de uma base histórico-mitológica para entronizar sua herança política. E a Eneida, poema épico que canta a história da fundação de Roma e estabelece as bases mitológicas sobre a qual os romanos construíram sua glória guerreira, foi escrita a pedido do próprio imperador, que, se não desejava ter com ela um lucro financeiro, como é comum em nosso presente histórico, almejava o lucro político, a base cultural do exercício do seu poder temporal. Augusto sabia que o preço do seu trigo não iria subir por causa da Eneida, mas sabia que ela lhe daria a justificativa para impor com mão de ferro seu poder sobre os romanos e seu Senado corrupto. Mas não será demasiado lembrar que entre as atribuições do poder de Augusto estava a de determinar o preço do trigo. Se na Era Augusta ainda não existia uma, assim chamada, economia de mercado, existia algo que é muito semelhante, existia a economia de poder.

Quanto a Archipoeta, o primeiro a tornar clara a ideia de uma glória literária post-mortem, é preciso lembrar que o fenômeno da poesia goliarda se deu concomitantemente com o fenômeno da Usura, como o sistema de troca que dará início à Era do Capital. Esta, mal começa, tira à poesia o antigo status de bem relacionado com as classes poderosas e o dá aos pintores, arquitetos, compositores de música e, mais à frente, aos chamados intelectuais, que fundarão as primeiras universidades europeias, cuja evolução será notadamente marcada por suas relações com as classes dominantes, com os gestores da produção de bens de consumo, até o início da Era das Revoluções, na Inglaterra, na França, e depois em toda a Europa. Talvez Archipoeta tenha antevisto, como é próprio dos poetas antever, que a escolha da poesia como manifestação artística o colocava fora das relações da cultura com a economia de mercado de então, restando-lhe assim a possibilidade de um reconhecimento post-mortem.

O fato é que a ideia colou e, mesmo indiretamente, chegou até os escritores e poetas do século xx, entre os quais também é corrente a ideia de que a arte é espaço utópico, refúgio, contestação, ou transgressão do real. Assim como o reconhecimento post-mortem é uma ideia nascida de um artista em busca do reconhecimento de sua arte, a ideia da arte como espaço utópico e de contestação etc. também é uma ideia própria dos artistas e só na mente deles, e de alguns poucos, existe. Aliás, essas ideias são mais que necessárias para os próprios artistas, pois fornecem a eles a base espiritual e filosófica sobre a qual podem justificar seus esforços, estranhezas, manias e loucuras, sejam ou não bons de fato, sejam ou não reconhecidos.

Uma outra ideia que corre entre os artistas, mas esta bem menos divulgada, visto que é mantida como um sigiloso desejo, é a de que tudo bem um reconhecimento post-mortem, mas é o reconhecimento imediato que permite que o artista viva (financeiramente) de sua própria arte. A maioria absoluta alimenta esta ideia/desejo, sem se dar conta que o reconhecimento em vida pode ou não dar alguma substância financeira para o artista, e isso depende do quanto sua arte bem se relaciona com a economia de mercado e o quanto essa economia está sintonizada com os anseios das massas. Excetuando compositores de música, pop stars e uma quantidade mínima de artistas plásticos bem sintonizados com as tendências da moda e da decoração, a grande maioria dos artistas vive de outras atividades que não as da sua arte. Uma verdadeira massa de artistas vive imiscuída entre os comuns seres humanos deste mundo, e são vendedores, professores, funcionários públicos, publicitários, donos de botecos etc., e entre esses artistas, os poetas e escritores são a maioria. E essa massa de desconhecidos aumenta na mesma proporção em que cresce e se torna mais promíscua as relações da cultura com a economia de mercado. Como a nos dizer que, o que alimenta o desejo de se tornar artista, hoje, nada mais é do que o desejo de ser aceito socialmente, ter o reconhecimento, e ter acesso e participação, mesmo se pequena, na cultura do lucro.

Está na hora de admitirmos que, concomitante com a economia de mercado, existe uma mpb de mercado, umas artes plásticas de mercado, um teatro de mercado, uma literatura de mercado, e por aí vai.

Não sei se este estado de coisas é passageiro ou não, se é inexorável ou não, mas sei que ideias como a do reconhecimento post-mortem e a de que a arte é o exercício de um espaço utópico e de contestação já não nos define mais, hoje, como artistas. É preciso redefinir nossa posição diante desses inequívocos fatos e, se possível, reordenar nossas palavras e ideias para voltar, quem sabe, a lidar com a palavra “arte” com algum senso de direção. A cultura e a arte nunca foram, como creem alguns, o lugar onde negamos ou nos refugiamos das duras realidades da luta pela sobrevivência, senão para os próprios artistas. A cultura e a arte, em verdade, sempre estiveram na base de todos os fenômenos históricos transformadores, incluindo os econômicos.

Mal nos demos conta ainda: mas a queda do muro de Berlim também pode bem representar o início da queda do muro desse refúgio, onde alguns poucos artistas puderam, até então, se esconder das duras lutas pela sobrevivência. E o que agora parece, para esses mesmos poucos, ser o fim da arte pode não passar de ser o começo de uma transformação, ainda que neste exato momento essa transformação não seja propriamente divisável e seus contornos se expressem num baixo nível vibratório, narcísico, uterino e quase nada ético.

Para onde vamos? Decididamente não sei! Sei que ter uma vida dedicada somente ao dinheiro é muito desumanizador, e acho bom lembrar que diante das mais potentes condições de desumanidade sempre houve uma contrapartida, mesmo que tenha sido pouco duradoura. Mas sei também que aquela ideia de se manter agarrado à velha e poética máquina de escrever já era. Contudo, o fato de já estarmos agora discutindo questões culturais, como “o que é arte hoje?” ou “qual é reconhecimento pelo qual devemos nos bater?”, mostra que essa cultura do dinheiro e do lucro já está no limite, e é no limite que, geralmente, as questões mais prementes são distorcidas, e tudo, momentaneamente, se dissolve e volta a ser caos. Como bem ensinou Hesíodo, na sua Teogonia, tudo principia no caos. Particularmente, acho que já é possível sentir a aproximação dessa distorção e acho que logo estaremos, culturalmente falando, voltando às cavernas e reiniciando o caminho. E talvez o façamos agora implementando até mesmo algumas melhorias no processo civilizatório, ainda que portando belos celulares e nos comunicando através de teclados na rede mundial.

Foi Píndaro (522-448 a.C.), poeta grego que colheu em vida e post-mortem todas as glórias literárias possíveis, quem nos alertou para essa essência da vida, onde só o viver cura a vida e a torna plenitude:

Ó minha alma, não aspires
a uma existência de imortal,
mas goza plenamente
tudo o que esteja ao teu alcance.

Quero crer que, entre as coisas que estão ao nosso alcance, e sempre estão, seja lá quais forem as condições humanas vigentes, está a possibilidade de nos mantermos, atentos, de olhos bem abertos diante dos chamados do mercado e das promessas de realização, velhas e novas.


 Sobre João José de Melo Franco

(1956) Paulista de Barretos, é poeta, tradutor, cineasta e editor. Tem formação em cinema, filosofia e letras (grego e latim) e pós-graduação em filosofia da linguagem e semiótica. Vive no Rio de Janeiro. Publicações mais recentes: O mar de Ulisses (poesia), Ibis Libris, 2006; Diários de amor perdido (poesia), Ibis Libris, 2008; Carmina Burana (tradução), poemas medievais dos séculos XI, XII e XIII, Ibis Libris, 2008. Para saber mais, acesse: http://www.cidadaniapoetica.com.