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Jênio negro

Jackson Five

Jackson FiveLamento, José Miguel Wisnik, mas, não me refiro a Gilberto Gil, que, em suas aulas na Faculdade de Letras da USP, você insiste em “ensinar” aos seus alunos, em vez de estudar Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade ou Haroldo de Campos – poetas que de fato construíram parte do que se entende por poesia (e cultura erudita) no Brasil. Lamento, professor, não falar de MPB, a “arte” dos pobres de espírito, daqueles que – ainda – preferem Caetano Veloso (argh!) a Fernando Pessoa.]

Refiro-me a Michael Jackson, ou melhor, ao seu velório, que acaba de se realizar em Los Angeles. No Brasil, estamos acostumados à morte católica, seca, sem falas ou homenagens. Morreu ontem, enterra hoje. Uma coroa de flores. E pronto. Vá com Deus! No México, por exemplo, existe a morte molhada, o velório com festa, caveiras, cores etc. Nos Estados Unidos, há a tradição da morte molhada, revestida de um pouco mais de austeridade, morte batista.

O velório de Jackson o resgatou como negro. Nasceu gospel, morreu gospel. Fizeram-se presentes os filhos de Martin Luther King. Sua filha, Bernice, contou que ele havia telefonado do Oriente Médio para sua mãe – a viúva de King – quando ela se recuperava de um derrame, em 2005. Contou que, pelo viva voz, ele dizia rezar ajoelhado por sua saúde! A morte revela mais do que a vida. Jesse Jackson, que esteve com Martin Luther na manhã de seu assassinato, em 1968, estava lá, no velório, entristecido. Magic Johnson falou de sua importância política como um artista afro-americano que abriu caminho para os negros discriminados.

Tive hoje a dimensão de que ele foi o quinto Beatle – o Beatle negro. Ou que os demais Beatles foram os Jackson 4, como queiram. Barry Gordy, o fundador da Motown, fez-lhe ressalvas, entre os muitos elogios, dizendo que algumas de suas atitudes foram questionáveis. Talvez seu padrinho artístico tenha se referido ao seu processo de branqueamento e à pedofilia. Mas, senti pela primeira vez pulsar o jênio negro. Sim com j, de Jackson.

Steve Wonder falou por meio de seu piano. Nada mais negro. Brook Shields fez o nível cair com sua fala tipicamente branca – sem bossa alguma, infantilizada, lendo uma passagem de O Pequeno Príncipe. Redefino Jackson com uma observação do pensador Anatol Rosenfeld, em seu imprescindível ensaio “O futebol no Brasil”. É um pouco longa, mas iluminadora:

Muitos homens de cor, de antemão desencorajados pela dificuldade da ascensão, tornados interiormente incapazes de enfrentar as exigências da vida, viram sua hora chegar. Daí a seriedade com que jogavam, com que punham tudo num jogo: este tornou-se, como a embriaguez do álcool e da dança, um caminho de fuga, certamente um caminho que parece ir para cima.

Notem que Jackson foi um exímio dançarino: embriagava e embriagava-se com sua própria dança. Mas, prossigo com Rosenfeld:

Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação. De repente, o próprio jogo tornou-se para eles um trabalho, e pode igualmente relacionar-se com a emancipação dos escravos, num país que nunca teve o equilíbrio de uma ética puritana do trabalho – o fato é que, por outro lado, o trabalho foi realizado como se fosse um jogo.

Michael Jackson, mesmo dentro de uma ética puritana do trabalho, como a norte-americana, mais justa do que a brasileira, deu esse pontapé de emancipação da raça negra. Seu trabalho foi feito como se fosse música. E foi música, bastante mais original, mais singular – no período Jackson 5 e em álbuns como Off the wall e Thriller – do que a dos Gilbertos Gils. Ele evidenciou a força interior da raça, a ponto de mudar de cor, de revelar que raça e cor são construções. Deixou filhos brancos, a desafiar os próprios brancos e seus preconceitos. Desnaturalizou a cor branca, a cor negra. Mostrou que um negro poderia ser o quinto Beatle ou que os Beatles poderiam ser os Jackson 4. Mostrou que, como dizem certos esquerdistas, podia dominar o “capitalismo turbinado”, com a vida e com a morte.

Sua morte, como observou Sandra de Sá, é mais revolucionária do que sua vida. Michael não foi um ser psicológico. Os psicoanalistas não têm repertório para entendê-lo. Leia-se a seguinte tolice (melhor não citar o nome do autor): “Michael representou outro modo de viver e de morrer no universo tanático dionisíaco pop”. É o velho clichê de divã! É o bem e o mal! Mas, Jackson se ergueu para além do bem e do mal! Agora, usar o vocábulo “tanático” faz corar um Silveira Bueno!

O velório foi uma festa multirracial, global, a partir da cultura negra, e da não branca! É a primeira vez que assisto a isso! Magic Johnson lembrou que, sem Michael, o percurso de Barack Obama seria mais difícil junto aos brancos! Que nível! Aflorou todo um lado político que talvez Michael (que tornou Walt Disney negro) não quisesse verbalizar diretamente. A deputada negra Jackson Lee mostrou aos participantes da cerimônia uma resolução – a ser aprovada pelo Congresso americano – que homenageia Jackson em virtude de suas ações sociais, que mantinha em certo sigilo.

Michael – o jênio negro – morreu no ano da posse de Obama – o político mais qualificado do mundo no momento. Seu legado aí está. Vai fazer muito dinheiro – o que é “pecado” no Brasil, com seu capitalismo de Estado, no qual só se pode “roubar” –, mas, por outro lado, mais do que evidencia a capacidade interior de os negros vencerem, nesta selva selvagem, branca e entediante.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.