As fronteiras entre poesia e filosofia costumam ser apontadas por diversos autores, e a partir de diferentes perspectivas, como lugares, ora de aproximações e intersecções, ora de distanciamentos e impossibilidades. Valendo-se de arguições elaboradas por Heidegger, Hannah Arendt recupera íntimas relações entre essas duas áreas que não seriam idênticas, mas brotariam “da mesma fonte – o pensamento”. [2] Com efeito, em A vida do espírito, a autora pondera sobre a atuação do pensamento nos processos de configuração da sociedade contemporânea; domínio da filosofia, serviço à ciência, obediência ao estudo organizado compõem alguns dos imaginários que serão questionados.
Mas – salientando minhas intenções e direcionando-me a elas –, se pinço referências à obra de Hannah Arendt não é para discutir sobre a legitimidade das aproximações entre filosofia e poesia; é, isto sim, para trazer à vista as proposições da autora quando, ao analisar o pensamento (matéria comum a ambas as modalidades), trata logo de sublinhar que sua maneira de aparecer no mundo se encontra circunscrita nas atuações da linguagem que será elaborada ou manifestada levando-se em conta os múltiplos dispositivos e sensores mais ou menos adequados à recepção de seus estímulos. Por conseguinte, a aparência, que inferimos às coisas (e aos seres) por meio de diversos sentidos, converte-se numa espécie de garantia da realidade; deste modo, já no primeiro capítulo encontramos a conclusão da coincidência entre Ser e Aparecer. [3]
Ao considerar esses princípios, aqui apresentados rapidamente, destaca-se a pertinência da leitura de poesia na perspectiva da análise das múltiplas configurações estéticas levadas a efeito pelos poetas em suas composições. E isso não apenas por ser, a poesia, uma das manifestações da linguagem, mas por ser, dentre elas, talvez a que tenha estabelecido seus fundamentos a partir da percepção de que a aparência carrega, ela mesma, determinados conteúdos, ou seja, de que a forma já nos informa.
A construção poética – por meio da linguagem –, portanto, corporifica-se, evidencia-se na fatalidade de suas possessões no campo formal; o sucesso do aproveitamento operado no poema, a qualidade estética do pensamento vertido a objeto verbal, é que firmará a existência de bons poetas. Desse grupo – menos populoso do que sugerem a quase ausência de crítica e as felicitações irrefletidas diante de qualquer (suposta) produção poética – destaco, para uma breve apreciação, a obra Canções da Forca, de Christian Morgenstern, poeta alemão que viveu até 1914.
O livro é composto por dois conjuntos. Na primeira parte, poemas traduzidos por M. Magno; em seguida, traduções empreendidas por Sebastião Uchoa Leite. Em ambas as traduções, a linguagem de Morgenstern parece sugerir-nos como fundamento as próprias imagens pelas quais se faz aparecer. Há uma espécie de caráter demonstrativo que permite a realização do poema ainda na descrição dos recursos linguísticos selecionados, conforme pode ser observado no poema Korf na aldeia de Dorf. [4] A presença do Sr. Korf encontra, no corpo do poema, sua justificativa no cumprimento do exercício da rima, uma rima que, por assim dizer, se antropomorfiza; esta, por sua vez, é suficientemente nítida para ser inferida sem o auxílio da legenda que o autor insere no texto. Dando seguimento à leitura, o que se vê são as realizações de um personagem que faz sua alegria em razão do desconhecido; enquanto isso, o leitor fica feliz da vida sem – aparentemente – muito o que estranhar:
Palmström, ao lado de um certo Sr. Korf
viaja para a aldeia boêmia de Dorf.
Tudo lá lhe é incompreensível, de tal sorte
que nada entende da fala da coorte.
Mesmo o Sr. Korf (que só o acompanha
por causa da rima) a tudo estranha.
Mas, justo isso o faz feliz da vida.
Muito encantado ele retorna em seguida.
E anota em sua semanal crônica:
“Outra grande aventura ôntica”.
Num momento a função da linguagem (rima) garante serventia à aparição de um dado elemento no poema, e justamente essa prestação de contas passa a fazer parte do metapoema. Noutro momento do livro, a linguagem – ou a estética, a fórmula sob a qual a linguagem é articulada – cuida de destituir certos objetos de suas funções corriqueiras, esperadas; ora uma lanterna, cujo princípio se forja na ação de escurecer – e não de clarear – é apresentada ao público, ora um relógio, excêntrico por se dispor a prolongamentos e abreviações das horas em obediência aos apetites do humor.
Conclui-se daí que a mensagem e o assunto denotam a principal atração do cenário composto por Morgenstern? Evidente que não. Servem de fundo, de belo pretexto à articulação das formas engendradas no espaço da linguagem quando esta se reveste de outras funções além daquelas esperadas ao exercício da comunicação cotidiana.
Mas, se pretexto para a forma, manifestado nos semblantes da palavra, o conteúdo desempenha sua função no ato de trazer à superfície do texto os estranhamentos indispensáveis à poesia. Assim, o leitor de Christian Morgenstern deduz de sua dicção alguns dos contornos que utilizará na interpretação. Com efeito, sem dificuldade se apreenderá, por exemplo, a incidência de um ritmo saturado em A cadeira de balanço no terraço deserto: [5]
Sou uma triste cadeira de balanço
e balanço no vento,
no vento.
Só, no terraço, ao relento,
e balanço no vento,
no vento.
E me embalo e me abalo noite a dentro.
E se embala e tatala a tília.
Quem sabe o que mais cambalearia
no vento,
no vento,
no vento.
Ao considerar os discursos indissociáveis de uma dimensão aparente no mundo, o emprego da modalidade discursiva pode ser visualizado na leitura como uma das informações por ela acessadas. Atento aos feitios da linguagem, o autor, por vezes, nos interpõe uma pitada de prosa, ou, mais apropriadamente, um vestígio de fábula, notas de um quadro fantástico; ainda que reveladas à sombra de uma quase irrelevância. Nos poemas, ocorrências de universos inusitados; quando convenientes ao autor, ágeis sentenças corroendo ordens ou leis habitualmente credenciadas à elucidação da realidade.
Lugar de aparências, mas não aquele cunhado por força de oposição a uma presumida “verdadeira essência”, a metalinguagem levada a efeito em Canções da Forca não deixa escapar a atitude nominativa que a humanidade exerce; procedimento com o qual Morgenstern logrou formular mais do que a própria espécie e todos os componentes da vida “verificável a olho nu”, alcançando mesmo a criação de formas auferidas através deste ou daquele dispositivo sensorial graças às transigências da linguagem (e ela mesma será uma dessas criações) na composição de suas materialidades. Entre apelos publicitários e códigos de conduta, o poema As placas chama o leitor de… espectador, assistente do mundo que só existe porque ele (o leitor) é capaz de construí-lo para sua própria distração.
AS PLACAS
Não se deve zombar das placas que trazem
uma mão mostrando o que ali fazem;
o nome de um bar que atrai o freguês,
os regulamentos que a polícia fez.
Elas são, se nada mais fala neste vasto mundo,
um maravilhoso exemplo, justo e profundo:
sua modesta presença é uma lição de cultura:
aqui reina o homem, não mais o urso e o miúra.
Notas
[2] ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 9.
[3] Id. Ibid., p. 17.
[4] MORGENSTERN, Christian. Canções da Forca. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1983, p. 29.
[5] Tradução de Haroldo de Campos, transcrita por Sebastião Uchoa Leite no ensaio “No planeta de Morgenstern”, introdução à obra já referida Canções da Forca.