é um artista se entregando para a polícia
“Arte” de Régis Bonvicino
Quem se dispõe a percorrer a nova coletânea de poemas de Régis Bonvicino, Beyond the wall (Além do muro) recém publicada pela editora Green Integer nos EUA, deve estar preparado para enfrentar uma complexa trama em que o estatuto da arte, a vida na cidade e a política em ponto de bala se entrelaçam de uma maneira absolutamente inextricável, de modo que é praticamente impossível uma dissociação dos elementos dessa poética – existe algo de irredutível na obra que impede os esquemas mais tradicionais de interpretação de livros de poesias. Não é o caso, então, de tentar localizar quais são os poemas de uma ordem metalinguística mais evidente ou os que apresentam imagens da cidade ou mesmo os que discutem relações de poder. Os poemas de Beyond the wall operam nas bordas, nos limites em que um tema já se transforma em outro, mas ainda não deixa de ser o que era.
Existe uma verdadeira topografia poética, um modo pelo qual esses poemas foram estrategicamente colocados em sua sequência, que causa a perfeita percepção de que o livro tem um espaço próprio de acontecimento: a cidade. O terreno em que os textos são colocadas é o espaço urbano. Só que a cidade de Régis Bonvicino não é composta de prédios, janelas, casas e lojas. O lugar de que fala e de onde fala o poeta é feito de mendigos, ratos, garrafas, urina e cigarros. Não é uma cidade específica, tampouco. Pode ser Le monde, Bank of China, Chascona, Passeig de Gràcia, New York ou Bom Retiro. De qualquer modo: é uma poética urbana.
Se as metrópoles são o espaço da desigualdade evidente, Régis constrói suas imagens-sons de uma maneira particular. Uma técnica de construção de linguagem por contradição, talvez mesmo, por atrito. Não há nada de um lirismo coerente, de uma poesia sem arestas. De vez em quando, falta uma rima, outras vezes, um paralelismo é subtraído, uma ideia não se completa, uma imagem é sequestrada. De caso pensado, Régis Bonvicino faz poesia com ângulos, dobras, conflitos, inversões e paradoxos.
O poeta escreve com cálculo: está tudo resolvido no espaço da página. Porém, algo sempre sobra e parece escapar da prisão do texto e golpear os sentidos do leitor. A “urina” realmente fede, o “mendigo” implacavelmente incomoda e, quase imperceptivelmente olhamos para os cantos da sala a procura dos “ratos”. Um modo de fazer poesia que contamina as palavras e é contaminado por elas. O cálculo poético parece nos surpreender e somos pegos a levantar a cabeça, deixar o texto, e parar para pensar o que está acontecendo. Nessas vezes, invariavelmente, quando voltamos ao texto, relemos alguma passagem anterior, folheamos o livro e retornamos a algum poema que, de repente, merece melhor apreciação. Não se trata de um livro de poemas para ler do começo ao fim sem interrupções.
Essas interrupções são verdadeiros engasgos, nos pegam de surpresa e provocam uma sensação estranha – às vezes colocamos até um sorriso na boca, tudo aparenta correr bem na leitura, mas, logo adiante, percebemos a verdade que essa poética provoca: o sorriso se transforma em riso nervoso. Trata-se de um tipo de poesia que é necessária, poesia-incomodo, bem diferente dos esquemas fáceis da moda. Pode-se dizer, inclusive, que nos seus ângulos, sinuosidades e esquivas é um livro que respeita plenamente o leitor. Mas, que assim o faz somente na exata medida em que exige mais da leitura.
Analisemos duas poesias da coletânea: a primeira e a última – para fazer uma moldura do que pode ser encontrado entre esses dois muros.
Com o título de “Arte”, a poesia de abertura não poderia ser mais irônica. Como falar da arte nos tempos atuais em que a barbárie cultural impera de maneira triunfante? Como fazer arte em tempos de mass media? A provocação que o título da peça de abertura do livro faz é absolutamente pertinente. Mas, o poeta escreve ao longo da poema, em uma sucessão de imagens, exatamente aquilo que não se poderia esperar da arte. Como se ela tivesse perdido o sentido nos tempos atuais. É assim que constrói os versos: [arte] “é o mendigo que, mão aberta,/não pede esmola”. A contradição é evidente e perturba não apenas a leitura que procura coerências, mas a própria estrutura da linguagem que se propõe. A certo momento desse primeiro poema chega até mesmo a propor: [arte] “é um relógio sobre uma lápide”. Nada mais contundente do que declarar a morte da arte e, apesar disso, via imagem certeira, reafirmar a arte, mesmo que às avessas.
Na última poesia da coletânea, “Abstract (2)”, podemos ler um verso que quase inviabiliza o título do livro: “Visitors: no trespassing”. Assim colocada a impossibilidade de ultrapassar os muros, a norma é clara e estabelece um dentro e um fora, fica o conflito com o título da coisa toda: Beyond the wall (Além do muro). E não é à toa que o último verso, meio político, esquema de fim de obra, (“Em Manhattan, só o rato é democrático”), esbanja o urbano e é cortado de modo preciso.
Alguns leitores bem poderiam pensar que o caráter urbano do verso esteja na palavra “Manhattan”. Que a política esteja no termo “democrático”. Nada mais longe da poética de Régis. É o “rato”. O “rato” é que nos remete à metrópole e à política. Esse rato que aparece diversas vezes entre os dois muros da moldura que estabelecemos para o livro. O rato que perambula pelos mendigos, por sobre cigarros amassados, que cheira o odor da urina e que consegue, por astúcia da espécie, ultrapassar os muros de concreto que cerceiam a liberdade própria do fazer poético.
Livro 2017 Beyond the wall (Além do muro), de Régis Bonvicino
Beyond the wall (Além do muro) traz poemas dos três mais recentes livros de Régis Bonvicino: Estado crítico (2013, Hedra), Página órfã (2007, Martins Fontes) e Remorso do cosmos (2003, Ateliê Editorial). Os poemas foram traduzidos ao longo nos últimos 15 anos para publicação em revistas e para leituras do poeta nos Estados Unidos. O livro estampa cerca de 60 poemas. Este é o segundo selected poems de Bonvicino publicado nos EUA – o primeiro, Sky-eclipse (2000), editado também pela Green Integer, dava conta de um período anterior de sua obra. Os dois principais tradutores são Charles Bernstein e Odile Cisneros.
Charles Bernstein é um dos grandes poetas e também um dos grandes críticos e teóricos de poesia dos Estados Unidos, com alcance mundial. É o principal representante do movimento poético denominado Language Poetry, que inovou a cena norte-americana nos anos 1970 e 1980. No Brasil, publicou o livro Histórias da guerra (Martins Fontes) em 2008. É professor de Inglês e Literatura comparada da University of Pennsylvania, Filadélfia.
Odile Cisneros é uma das melhores tradutoras de poesia da cena recente. É professora associada de Artes, Línguas modernas e Estudos culturais da University of Alberta, Edmonton, Canadá.
Douglas Messerli, o criador e publisher da Green Integer, que sucedeu sua também lendária editora Sun & Moon Press, aberta em 1976, é também escritor, dramaturgo e crítico de cinema, baseado em Los Angeles. Em virtude de seu trabalho seminal como editor recebeu o prêmio Ordre des Arts et des Lettres do governo francês em 2000, conferido também a personalidades como Jorge Luis Borges, Bob Dylan, Mercedes Sosa, Jeanne Moureau e à prêmio Nobel de 1991 Nadine Gordimer, entre outros.
Beyond the wall (Além do muro) está em um catálogo no qual constam autores como o sírio Adonis, o americano Paul Auster, o francês Jacques Roubaud e clássicos como Blaise Cendrars, Vicente Huidobro, James Joyce, André Breton, Paul Celan, entre outros: http://www.greeninteger.com/catalog.cfm
Régis Bonvicino (São Paulo, 1955) é um poeta, tradutor, crítico de literatura e editor brasileiro. O Historical Dictionary of Latin American Literature and Theater o define como um “inovador incansável”. E há críticos brasileiros o consideram um dos mais consistentes autores da cena atual – um dos poucos que se tornou uma referência brasileira no mundo.
Como poeta, publicou dois pequenos livros nos anos 1970, ainda muito jovem, em edição do autor: Bicho Papel (1975) e Régis Hotel (1978). A partir dos anos 1980, lançou Sósia da Cópia (Max Limonad, 1983), Más Companhias (Olavobrás, 1987), 33 Poemas (Iluminuras, 1990), Outros Poemas (Iluminuras, 1993), Primeiro Tempo (Perspectiva, 1995, reunião dos livros Bicho Papel, Régis Hotel e Sósia da Cópia), Ossos de Borboleta (Editora 34, 1996), Together – um poema, vozes (Ateliê Editorial, 1996), Céu-Eclipse (Editora 34, 1999), Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol) (Ateliê Editorial, 2003), Página Órfã (Martins Fontes, 2007) e Estado Crítico (Editora Hedra, 2013). E uma reunião, em 2010, de sua produção: Até Agora, de Régis Bonvicino (Editora Imprensa Oficial, 564 páginas).
No exterior publicou também Sky-Eclipse, Selected Poems (Los Angeles, Green Integer, 2000), Lindero Nuevo Vedado (Porto, Edições Quasi, 2002), Hilo de Piedra, plaquete editada pela Sibila, Revista de Arte, Música y Literatura, n. 10 (Sevilha, out. 2002, com poemas de Céu-Eclipse e de Remorso do Cosmos), Poemas, 1999-2003 (Ciudad de Mexico, Alforja Conaculta-Fonca, 2006) e, na China, Blue Tile (Hong Kong, The Chinese University of Press, 2011), com tradução do poeta Yao Feng.
Publicou, em 2007, o livro Entre/Between, pela Global Books, Paris, do francês Gervais Jassaud, com a participação de várias artistas plásticos internacionais, entre eles Hamra Abbas, do Paquistão, Tatjana Doll, da Alemanha, e Susan Bee, dos Estados Unidos. Global Books é uma criação do artista gráfico Gervais Jassaud e já publicou poetas como Michel Deguy, Michel Butor (França), Jerome Rothenberg, Charles Bernstein (Estados Unidos), Nanni Balestrini (Itália), Yao Feng (China) e Nicole Brossard (Canadá), entre outros.
Régis Bonvicino é o editor de uma das principais antologias de poesia brasileira das últimas décadas: Nothing the Sun Could Not Explain (Los Angeles, Sun & Moon Press, 1997), por meio da qual fez poetas brasileiros, como Torquato Neto e Paulo Leminski, serem – pela primeira vez – traduzidos por poetas norte-americanos de peso como Robert Creeley e Michael Palmer. Nothing the Sun Could Not Explain esgotou duas tiragens seguidas.
Sobre seu trabalho de poeta escreveram, no Brasil, críticos como Alcir Pécora, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman, João Adolfo Hansen, Silviano Santiago, Marjorie Perloff, Julio Castañon Guimarães, entre vários outros.
Bonvicino editou as cartas que Paulo Leminski lhe enviou nos anos 1970, livro com títulos diferentes a cada edição, a última delas pela Editora 34, de 1999: Envie meu Dicionário (Cartas e Alguma Crítica), que manteve o poeta curitibano à tona, quando pouco se falava dele. A primeira edição do volume, em 1991, teve prefácio de Caetano Veloso.
Como editor, publicou revistas como Poesia em Greve, Muda e Qorpo Estranho nos anos 1970, esta última com Julio Plaza – nas quais publicou Paulo Leminski, Waly Salomão, José Paulo Paes, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, entre vários. É o criador da revista Sibila, que teve onze números impressos, de 2001 a 2007, e que, desde então, passou a ser exclusivamente eletrônica, com cerca de 300 mil visitas por ano: http://sibila.com.br.
Como tradutor, deteve-se no argentino Oliverio Girondo, no francês Jules Laforgue, nos americanos Robert Creeley e Charles Bernstein, entre muitos outros.
Como crítico, escreveu na Folha de S.Paulo, em O Estado de S. Paulo, nas revistas Veja e Istoé e no extinto Jornal do Brasil. Colabora ainda esporadicamente na Folha.
Entre suas participações em leituras de poesia, no âmbito internacional, destacam-se as atuações em Coimbra, Santiago de Compostela, Buenos Aires, Paris, Marselha, Chicago, San Francisco, Los Angeles, Hong Kong, Filadélfia, Nova York, Santiago do Chile.
Sobre seu mais recente livro, o Estado crítico, escreveu Alcir Pécora: “Desde Página Órfã, radicalizada neste Estado Crítico, não vejo poesia que faça crítica mais implacável da poesia e, ao mesmo tempo, melhor se reafirme como poesia, do que a de Régis Bonvicino. E é assim não porque esses livros falem de poesia ou teorizem sobre a crise da poesia, mas porque se movem taticamente em torno de seus impasses, implantando-se num terreno no qual os versos ocupam as vias mais hostis da metrópole”.
Informações:
Beyond the wall está à venda nas principais livrarias eletrônicas do mundo: https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=beyond%20the%20wall%20regis%20bonvicino
Website da Green Integer http://www.greeninteger.com/
Beyond the wall
Esta é uma poesia em seu mais alto nível político, é uma poesia crucial, que não vai deixar o leitor fora do gancho, mesmo depois de terminar de lê-la neste volume. Bonvicino tem uma vitalidade impressionante: explorou todas as possibilidades do mundo literário, de poeta a tradutor, de editor e a crítico literário. Sua experiência mostra: em sua poesia, ele salta agilmente entre as imagens impressionantes da natureza e as duras realidades da industrialização em ambientes urbanos. Há um pulso nessas palavras, uma força motriz que o empurra para pensar de modo constante sobre o que você está lendo e o porquê. Bonvicino desafia o conceito do que pensamos ser poesia. Cassidy Faust, Literary Hub