No livro Adeus ao corpo, o antropólogo francês David Le Breton cita uma afirmação do escritor romeno Emil Cioran segundo a qual a carne é “perecível até a indecência, até a loucura, não apenas é sede de doenças, é a própria doença, um nada incurável, ficção degenerada em calamidade […] e tanto monopoliza e domina que meu espírito já não passa de vísceras”.1 Como não pensar, lendo essa frase, nos personagens de Samuel Beckett, cujos corpos estão sempre se degenerando? Os personagens do escritor irlandês são, como regra, cegos, coxos, paralíticos, velhos e impotentes, inclusive alguns deles já perderam até mesmo o corpo e ficaram reduzidos a uma cabeça, a uma boca, a um crânio. Dessa perspectiva, o corpo é o fardo que os personagens beckettianos carregam.
David Le Breton lembra que, para os gnósticos, existe um dualismo rigoroso entre o corpo e a alma: o corpo estaria ligado a uma esfera negativa, a esfera da morte, da ignorância, do tempo e do mal, enquanto a alma estaria relacionada à esfera positiva, de plenitude, de conhecimento, do bem.2 No entanto, como prossegue Le Breton,
após uma catástrofe metafísica, o Bem caiu na cilada do Mal, a alma tornou-se cativa de um corpo vítima de duração, da morte e de um universo obscuro onde esqueceu a Luz […]. Os gnósticos levam, desse modo, a seu termo o ódio do corpo.3
Mesmo não sendo um gnóstico, Beckett parece compartilhar das ideias expostas por Le Breton, uma vez que, nos seus textos, o corpo é muitas vezes um tipo de sarcófago, que aprisiona a alma inquieta de seus personagens. É preciso ressalvar, no entanto, que o conceito de “alma” em Beckett tem dimensão própria, pois, ao manifestar-se por meio da polifonia, ela é uma rede de vozes internas e externas que falam incessantemente, atravessando o sujeito.
Outra afirmação de Le Breton poderia também ser usada para analisar o “modelo” de corpo beckettiano, que é o que me interessa destacar aqui: “a alma caiu no corpo […] onde se perde. A carne do homem é a parte maldita sujeita ao envelhecimento, à morte, à doença. É o cadáver em decomposição, a carne. O mal biológico”.4 Considerações que aprofundam a imagem de corpo-sarcófago, atravessado por vozes.
Mas, em Beckett, o corpo vai além da carne e da anatomia humana, pois ele é representado, às vezes, por jarros, leitos de hospital, latões de lixo etc.
Em Fim de jogo, duas latas de lixo dão “corpo” a Nagg e Nell, que parecem não poder sair de seu “corpo/objeto”. Mas os personagens importantes são dois outros, ambos habitando a mesma casa: Hamm, um velho cego e paralítico, e Clov, seu criado. A casa representaria igualmente seus corpos (com duas janelas como se fossem dois olhos). Nessa peça, como em outras, cenário e corpo se confundem, enfatizando ainda mais a impossibilidade de o personagem se libertar de sua estrutura corpórea. Aqui, o cenário é um prolongamento do corpo de Hamm e Clov, que não seriam realmente pessoas, mas apenas a imagem do mundo interior de alguém que nunca se sabe quem é.5
Eugene Webb lembra que, nessa peça,
a casa é tanto um ‘abrigo’ quanto um lugar de isolamento, em que as antigas maneiras de pensar, preservadas pelo medo ou pela teimosia, tanto protegem os habitantes quanto os apartam da realidade do lado de fora. ‘Bem no alto’, na parede de trás, há ‘duas janelinhas, de cortina abaixada’, que sugerem que a sala pode representar o interior da caveira de um homem que fechou os olhos para o mundo exterior.6
No mundo beckettiano,o corpo é visto, pode-se concluir, como uma “doença incurável” e se torna, por isso, “anacrônico”, devendo ser substituído por uma máquina. O escritor talvez concordasse com Le Breton, quando ele, avaliando o corpo “inútil”, afirma que o homem contemporâneo
condena o corpo anacrônico, tão pouco à altura dos avanços tecnológicos das últimas décadas. O corpo é o pecado original, a mácula de uma humanidade da qual alguns se lamentam. […] O corpo é um membro supranumerário, seria necessário suprimi-lo.7
Mas, afirma Le Breton, “subtraído do homem que o encarna à maneira de um objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de qualquer valor”.8 Esse parece ser o discurso que também se ouve em Beckett, segundo a minha leitura: o corpo humano encarnaria “a parte ruim, o rascunho a ser corrigido”, embora isso seja um projeto impossível.9
O escritor irlandês censuraria o corpo por sua falta de domínio sobre o mundo, por sua vulnerabilidade e, como já sugeri acima, por aprisionar a alma. Talvez Beckett faça parte daqueles escritores que vêem hoje “com júbilo” chegar o “tempo do fim do corpo”, conforme concluiu Le Breton num outro contexto.10
Em The Drove Companion to Samuel Beckett, lemos que o pessimismo de Beckett origina-se da convicção permanente de que seria melhor não ter nascido e do pavor da morte lenta.Só a morte conseguiria separar a mente do corpo, permitindo talvez o fim da consciência.11 Diria que a luta contra o corpo vulnerável poderia revelar o medo da morte interminável, a qual depende da falência dos órgãos vitais do corpo. Parece-me que é contra o tormento do tempo que leva à morte que os personagens de Beckett lutam, sendo ao mesmo tempo incapazes de morrer, a despeito da decadência física, por isso são obrigados a falar, conforme já apontou Maurice Blanchot.
É preciso ainda sublinhar que o corpo traz à tona, na obra do autor de Esperando Godot, a sua complexa e insólita relação com o mundo e com o outro. Como afirma José Gil, “de outrem, da sua subjetividade, não tenho senão uma experiência indireta. A percepção direta dos seus sentimentos, emoções, pensamentos, é-me vedada, apenas através da mediação do corpo me é dado inferir que estou em presença do outro ‘eu’, um ‘alter ego’. Essa mediação compõe-se essencialmente de ‘indicações’ corporais”.12
Pelo fato de não terem corpo “íntegro”, os personagens de determinadas peças Beckett talvez não consigam atingir o outro e, por isso, estão condenados à solidão. Em Beckett, os personagens tendem a imergir em “monólogos paralelos” ou “falsos diálogos”, o que resulta numa situação que explora a incomunicabilidade humana, que é, aliás, uma das questões do teatro de vanguarda francês de meados do século XX.
Em Play, as cabeças sem corpo convencional (aqui o corpo é representando por um jarro) e quase sem expressão facial não falam entre si, não percebem o outro ao seu lado e mergulham num monólogo desenfreado, sempre olhando para frente. Em Not I, a protagonista, reduzida a uma boca sem rosto, fala a esmo, ou parece contar e evocar a sua vida, mediante uma avalanche de palavras, de frases desprovidas de sintaxe e salpicadas de perguntas sem respostas: mundo … posta no mundo … este mundo … pequeno pedaço de nada … antes da hora … longe de … quê? … feminino? … sim … pequeno pedaço de mulher … no mundo antes da hora… longe de tudo… […]no mundo…dito…não importa … pai mãe fantasmas … não vestígio … ele fugiu … nem visto… nem conhecido.
Convém ressaltar, no entanto, que, na obra de Beckett, mesmo quando o personagem tem um corpo convencional de carne e osso, este é “subempregado, incômodo, inútil, o corpo torna-se uma preocupação: passivo, faz com que ouçam seu mal-estar”,13 nas palavras de Le Breton, que ilustram aqui aspectos da construção dos personagens beckettianos.
Muitos personagens beckettianos, tanto nas peças como nos romances e contos, ficam imóveis, como se houvesse um esquecimento do corpo nas suas vidas cotidianas. Por isso talvez, na obra do escritor irlandês, o corpo seja percebido como um material acidental (ou um terrível sarcófago), dissociado da pessoa ou da voz que fala ininterruptamente através dela.
O rosto inexpressivo ou até mesmo inexistente, na obra de Beckett, merece ser analisado, já que é no traço do rosto, como afirma José Gil, que se reconhece “a intenção de significar; mais: esse traço significa, é sentido para nós que o vemos.” O rosto, prossegue o estudioso português,
traz, primeiro, a recognição. Recognição imediata de um suporte de sentido, a partir do qual gestos e movimentos tomam significados. Ao contrário dos gestos do autômato que têm de ser inventariados e referidos a um modelo vivo para serem entendidos, na compreensão imediata dos traços do rosto ou do movimento do corpo, dá-se ao contrário: é porque se reconheceu primeiro um rosto que se interpretam imediatamente os traços que nele surgem e se inscrevem. Tal olhar ou curva do nariz toma sentido porque pertence a um rosto.14
A “rostoidade” seria uma máquina de significância porque as significações verbais – que a fala constrói na língua – precisam de um rosto que as profira. Segundo José Gil, “o rosto reenvia, ao sujeito que se lhe dirige, a certeza de a linguagem se não perder em excesso de sentido: o alocutório faz convergir os significantes verbais para um só ponto a que eles se referem (ele é polícia, mulher, etc.)”.15
Em Beckett, a fala do personagem sem rosto se torna indeterminada, polissêmica e “equivocada”. O rosto é uma superfície de entrada do exterior para o interior, segundo a citação acima. Sem ele, a voz parece pairar autônoma no ar e não necessariamente se dirigir a alguém ou vir de alguém. Esse é um dos maiores mistérios da obra de Beckett, e, portanto, uma de suas maiores contribuições à literatura do pós-guerra, conforme reconhece a crítica especializada.
Notas
- LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003, p. 14.
- Idem ibidem.
- Idem ibidem.
- LE BRETON, David. Op. Cit., p. 14.
- WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É realizações, 2012, p. 66.
- Idem ibidem.
- LE BRETON, David. Op. Cit., p. 14, 15.
- Idem, p. 15.
- Idem, p. 16.
- LE BRETON, David. Op. Cit., p. 16.
- ACKERLEY, C. J. e S. E. Gontarski. The Drove Companion to Samuel Beckett, Nova York: Grove Press, 2004, p. 126.
- GIL, José. Matamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d`água, 1997, p. 147.
- LE BRETON, David. Op. Cit., p. 20.
- GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d`água, 1997, p. 163, 164.
- Idem, p. 166.