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O novo livro de Dirce W. do Amarante

Lembro-me de ter ouvido de Osman Lins durante uma palestra, ainda nas Colmeias da antiga Cidade Universitária, há muito anos: “Dissidentes? Ora, todos nós somos dissidentes. Um intelectual só pode ser dissidente”. Inevitavelmente, pensei eu, e não por força do status, mas em razão de questões sem solução que ontem, como hoje, continuam candentes.

Uma delas, tratada inteligentemente por Dirce Waltrick do Amarante logo no início da Parte I (“Casos concretos”) de seu livro recém-lançado, As antenas do caracol (Iluminuras 2012), aparece também num capítulo do livro de Osman Lins, editado na época (Problemas inculturais brasileiros – Summus, 1977), com o título significativo de “A confraria do virginal abrigo” e diz respeito aos livros didáticos adotados no Brasil. A pergunta subjacente em ambos os autores  é a mesma, inescapável, que se faz repetidamente aos políticos brasileiros: cui prodest?

Com certeza, não aos jovens estudantes.

À parte a crítica aos interesses, velados ou menos, na escolha de textos escolares, nacionais ou traduzidos, adaptados ou mutilados, há outra pergunta explícita e muito importante que faz Dirce: por que é sempre um adulto quem decide o que dar para ler às crianças?

Um adulto esse, sempre à busca de fáceis chavões moralizantes, invariavelmente “avessos à autonomia estética do texto”. O texto – explica a autora – seja ele composto de letras, figuras ou mesmo um texto teatral possui sua própria autonomia artística que deveria ser gradativamente assimilada pelas crianças. Dirce recorre ao testemunho de Cecília Meireles (Problemas da literatura infantil – Nova Fronteira, 1984), que diz:

[…] pode até acontecer que a criança, entre um livro [ou um espetáculo] escrito especialmente para ela e outro que não o foi, venha a preferir o segundo. Tudo é misterioso nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que começa a abandonar (“As antenas”, p. 25).

Isso também traz à lembrança Lev Tolstói que, para organizar suas Cartilhas, famosas em todos os países (só agora elas estão sendo publicadas, em parte, pela Ateliê Editorial), após pesquisar nos tratados de pedagogia do mundo inteiro e encontrar-se com seus autores mais em vista, selecionou textos que ele lia a seus aluninhos de Iásnaia Poliana e pedia a eles que os repetissem com suas próprias palavras. Só depois disso os textos eram incorporados às Cartilhas,que o autor considerou sua obra mais importante. E esses textos tinham um sentido próprio, às vezes até cruel, sem nenhuma contemplação para o que costumeiramente se chama de “senso comum”.

Dirce lembra Ana Maria Machado escrevendo sobre a questão, “Literatura para todos”, num trecho de uma palestra reportada em Balaio, livros e leituras (Nova Fronteira, 2007):

[…] substituir o senso comum tradicional por um espírito crítico capaz de formular seus próprios anseios. Sem leitura de literatura, essa meta fica muito distante, se não inatingível. Por mais que hoje tenhamos também outros meios e outras linguagens, nenhuma outra produção cultural tem o potencial do texto literário para desempenhar este papel […].

Insiste, inclusive, numa questão que considera básica: a Literatura, enquanto Arte, não inculca conceitos, mas gera conceitos. Claro que se pode [e se deve] ensinar Arte, mas isso, como quer Paulo Freire, diz Dirce na Parte II de seu livro (“Notas teóricas”), significa “emancipar o pensamento e requer que o professor seja um educador, e não apenas um mero instrutor. Ensinar arte, sem uma cartilha pronta para seguir e, no caso da literatura, sem a abominável classificação por faixa etária determinada pela ‘suspeitosa raça de psicopedagogos’, na expressão do escritor argentino César Aira, requer uma postura ética por parte do educador que terá de, a cada momento, reavaliar seus conceitos e suas atitudes”(“As antenas”, p. 127).

A lei ética é a norma de agir, mas não o seu conteúdo, segundo Freire; ela implica  poder escolher, segundo Giorgio Agamben; e requer, ao mesmo tempo… adaptação e resistência, segundo Theodor Adorno. A ética leva, enfim, diz Dirce rematando o dizer de seus interlocutores, à formação do pensamento crítico.

Cabe à educação, à escola, criar expectativas para tornar mais eficaz o aprendizado, fazer da cultura uma segunda natureza, ensinar o aluno a perceber a obra de arte: a satisfação será tanto maior quanto mais alto o entendimento. E principalmente – a ênfase agora é minha – não se bastar com o “gozoso”, tantas vezes preconizado por tantos “performadores”.

Três “Casos concretos” do livro (outros, jocosos, que tratam do humour de Edward Lear, de um inédito de Joyce, de elefantes atormentando crianças etc. deixo-os para o prazer da descoberta do leitor) são dedicados por Dirce a Monteiro Lobato e sua obra que, ultimamente, tem sido objeto de uma curiosa controvérsia. O parecer de uma funcionária da UFMG (1º de setembro de 2010), conselheira da secretaria de Alfabetização e Diversidade do MEC, apoiado quiçá em algum indignado reclamante,   acusava  a obra lobatiana Caçadas de Pedrinho de racista, devendo, portanto, a seu ver, ser excluída do Programa Nacional Biblioteca da Escola. Embora revogado (tal “conselho”), em virtude do clamor que ele provocou, deixou no ar, entretanto, uma neblina que custou a se dissipar, nesse mundo “politicamente correto” que nos envolve. O bom senso mais comezinho mostra que há visões de mundo de uma época que são mantidas vivas pelo universo da fala popular que lhes dá uma cor toda especial, tipo as frases-provérbio como: “Na hora em que a onça aparece até em pau de sebo, um aleijado sobe”, frases essas que, descontextualizadas, podem parecer – como no caso – eivadas de eugenismo. Censurá-las seria querer matar a literatura.

“Quanto às ‘feras africanas’ e ao ‘universo africano’”, mencionados no parecer da ilustre professora – diz Dirce – “confesso não compreender onde está o problema de Pedrinho desejar morar na África e tampouco percebo nisso uma imagem ‘estereotipada’ do continente africano. Pedrinho, de fato, queria caçar ‘leões, tigres, rinocerontes elefantes, panteras e queixava-se a dona Benta […] da pobreza do Brasil a respeito das feras. Chegou a propor-lhe que vendesse o sítio para comprar outro, bem no centro de Uganda, que é a região mais rica em leões’” (“As antenas”, p. 30).

Ou todas essas ressalvas terão sido suscitadas no coração (inconsciente!) da digna funcionária pelo fato de, na mesma obra, Lobato ironizar “o torpor do povo brasileiro”, ou “a incompetência do aparato governamental”, “sempre só interessado em temas secundários”, lembra Dirce, tipo ‘UM RINOCERONTE INTERNA-SE NAS MATAS BRASILEIRAS’ ou

A linha telefônica foi construída com todo o luxo, como é costume nas obras do governo […]. Era a linha mais curta do mundo: com cem metros de comprimento e dois postes apenas, um no terreiro da casa e outro no acampamento dos caçadores […]?”.(“As antenas”, p. 32)

Controvérsias à parte, há outro aspecto paradoxal que levanta Dirce na leitura da obra de Monteiro Lobato (1882-1948) que, há décadas, “repousa em paz sob a seguinte inscrição lapidar: ‘Lobato, crianças’”. Será que essa obra ainda é literatura infantil, pergunta Dirce, – será que ainda é lida com prazer por nossas crianças? Ou será que ainda hoje continuamos a ver sua obra com os olhos de seus primeiros leitores, alguns dos quais mais que octogenários? – Dirce encontrou numa hilária homenagem a Lobato, durante a 21a Bienal do Livro, ocorrida em São Paulo, em 2010.

Esta é a constante da leitura feita pelos novos especialistas da obra de Lobato chamada “infantil”. Eles se apropriam das primeiras impressões de leitura desses antigos leitores e pouco contribuem que seja capaz de revelar o que essa obra teria de atual. Dessa crítica, circunstanciada, não escapam sequer as antologias atuais condecoradas.

É urgente, conclui Dirce, “recuperar a dimensão criativa de sua obra literária, de inegável importância: antes de mais nada, tirando-a do limbo da classificação controversa e talvez estanque de literatura infantil em que tudo parece (ou tem que ser) fácil, claro, didático e inocente. Dever-se-ia ver sua obra ‘infantil’ simplesmente como literatura; aí sim poderíamos trazer à tona, sem possíveis inibições pedagógicas, temas tão evidentes quanto complexos – raça, política, linguagem etc. –, estimulando, assim, a imaginação e a inteligência dos leitores de todas as idades”.

É isso, mutatis mutandis, que Dirce faz com seu livro.


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.