Recentemente, o escritor Paulo Coelho declarou, em entrevista para a Folha de S. Paulo, que não gostava do romance Ulisses, do irlandês James Joyce, considerado um dos escritores mais importante do século XX. A declaração ganhou destaque na imprensa internacional em um bom momento para Paulo Coelho, que acaba de lançar novo livro.
Não demorou muito para se criar, no Brasil, uma cisão entre joycianos apaixonados e amantes do mago (ou ex-mago) brasileiro. Embora eu mesma seja leitora de Joyce e já tenha lido anos atrás Paulo Coelho, não busco aqui confrontar a obra desses dois escritores, o intento seria absurdo, pois são obras completamente diferentes entre si, do ponto de vista estético, histórico e temático. Além disso, seria leviano de minha parte falar de Paulo Coelho, de quem li apenas dois livros, há bastante tempo, como afirmei, e dos quais guardo na memória apenas seus títulos: Brida e O diário de um mago.
O que a polêmica traz à tona, a meu ver, é a discussão em torno da experiência de leitura. No livro A experiência de ler, o escritor irlandês C. S. Lewis afirma que o texto que o leitor tem diante de si depende exclusivamente de sua leitura, já que “deixa de existir por direito próprio e passa a constituir simples matéria-prima, um barro a partir do qual fabricam os tijolos para a sua construção”. Essa tese foi bastante explorada, no século passado, por críticos refinados como Maurice Blanchot e Roland Barthes, em seu clássico ensaio “A morte do autor”.
C. S. Lewis classifica os leitores em duas categorias: os bons e os maus leitores. Quanto aos maus leitores, Lewis opina que esses nunca leem nada que não seja narrativo; além disso, apreciariam narrativas em que o elemento verbal é “reduzido ao mínimo”.
O mau leitor seria ainda aquele que lê exclusivamente com os olhos. De modo que, para ele, “as mais hediondas cacofonias e os mais perfeitos exemplos de ritmo e melodia são perfeitamente iguais”, nas palavras de Lewis, que compara a seguir o mau leitor ao mau ouvinte:
tal como o ouvinte sem sensibilidade musical quer apenas a ‘melodia’, também o leitor sem sensibilidade literária apenas quer o ‘acontecimento’. Um ignora quase todos os sons que a orquestra produz, porque o que quer é trautear na melodia. O outro ignora quase tudo o que as palavras à sua frente constroem, porque o que quer é saber o que acontece a seguir.
O fato é que o leitor insensível, adverte Lewis, nunca dá às palavras mais do que o mínimo de atenção para delas extrair o acontecimento, de modo que “o clichê mais banal para cada fenômeno ou emoção (as emoções podem fazer parte do acontecimento) é para ele o melhor porque de imediato reconhecível”. Ou seja, a boa leitura incomodaria o leitor “iliterato”, por ser ou demasiadamente sóbria ou demasiadamente rica para o que ele pretende. Os leitores iliteratos de todas as épocas, segundo a tese de Lewis, só se deleitam com histórias de narrativas simples “porque não as apreciam de outra forma”.
Talvez a deficiência mais grave do mau leitor seja a de lhe “faltar a imaginação fértil, suscetível de construir (num momento) uma cena, a partir de fatos nus e crus”.
Um livro como Ulisses requer certamente um leitor criativo ou, no mínimo, experiente, isto é, que já tenha atravessado todo tipo de texto e que busque, além disso, no momento da leitura, algo esteticamente novo, uma nova experiência, novos desafios. Há que se deixar claro que a leitura de Ulisses obviamente não impedirá o leitor de voltar a ler outros textos menos experimentais.
Parece-me que Ulisses se tornou, para alguns comodistas ou desinformados, o bode expiatório da literatura universal e, mais especificamente, das “temidas” vanguardas literárias do último século, do qual foi um dos embriões, pois, como se lê em A teoria da vanguarda, de Peter Bürger, a dissolução da unidade tradicional da obra é uma característica comum da modernidade, quando a “coerência e independência da obra são conscientemente colocadas em questão ou programaticamente destruídas”.
O desenvolvimento da cultura, diz Bürger, citando Schiller, requer, no entanto, que o homem não fique “eternamente acorrentado a um pequeno fragmento; ouvindo eternamente o mesmo ruído monótono da roda que aciona”. Diferentes experiências de leitura criam novas relações culturais.