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A CORRUPÇÃO DO MÉRITO E O GOSTO PELA CENSURA

Objeto de ameaças e de tentativas de censura e, agora, de retaliação judicial: refiro-me à revista Sibila. Tudo porque a Sibila, em sua condição de revista literária, no contexto de uma já longa trajetória de crítica e debate, interessou-se, nos últimos tempos, em lançar uma lupa sobre os órgãos públicos ligados à literatura em São Paulo. Há nisso algo de ilegítimo? Ao contrário. Cabe à imprensa questionar os órgãos públicos. E cabe à imprensa literária questionar os órgãos públicos ligados à literatura. Alguém questionaria, então, a pertinência, a relevância, a correção e a legitimidade disso? Sim: aqueles que têm algo a temer desse questionamento. Houve, assim, reações agressivas, incivilizadas (mas jamais respostas aos próprios questionamentos) da parte do diretor da Casa das Rosas, Frederico Barbosa, e do curador de literatura e poesia do Centro Cultural São Paulo (CCSP), Cláudio Alexandre de Barros Teixeira, vulgo Cláudio Daniel.

Não por acaso, há uma notória parceria entre ambos. Ela poderia ser legítima, desde que o fosse. Um dos muitos problemas, neste caso, é que essa parceria impõe um uso arbitrário de boa parte das verbas públicas paulista e paulistana para a literatura, pois não há qualquer critério, por exemplo, para a escolha personalista daqueles que são contemplados com edições “grátis” produzidas no CCSP e lançadas na CR, como vem ocorrendo sistematicamente. Alguém se espantaria ao saber que os “eleitos” são sempre os mesmos, e que todos têm proximidade com FB e CD? Além do dinheiro público, portanto, há também a cultura: porque o uso no mínimo questionável do primeiro leva a um abuso inquestionável da segunda, pois a literatura paulistana, em especial a poesia, vê-se assim marcada pela corrupção do mérito.

Nesse contexto, em seu gesto mais recente, CD ameaça a Sibila com um processo (em virtude de um artigo de Luís Venegas [“Crime de lesa-cultura”, http://www.sibila.com.br/index.php/mix/2218-crime-de-lesa-cultura]), a fim de tentar mais uma vez calá-la, levando ao pé da letra o velho adágio: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Mas como estamos em um estado democrático de direito, isso não pode dar em nada, ou em apenas mais uma bravata. Cabe à imprensa questionar os órgãos públicos. E cabe à imprensa literária questionar os órgãos públicos ligados à literatura. Apenas aqueles que têm algo a temer desse questionamento o questionam. Tanto é assim que, se agora há a ameaça de um processo, antes houve uma tentativa de boicote. Tal processo tem tanta pertinência quanto o boicote: nenhuma. Trata-se de evidente tentativa de censura.

Por falar em censura, o feitiço já virou contra o “feiticeiro” uma vez, pois CD foi recentemente censurado, não no sentido de ser calado, mas de ser chamado à razão, por seu próprio superior hierárquico, o Secretário Municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil. Essa censura interna, que agora torno pública, por interesse idem, foi uma resposta a um questionamento meu sobre a tentativa de CD de levar a cabo referido o boicote à revista, que ora tenta mais uma vez calar. Escrevi, então, ao secretário:

 

Prezado Senhor Secretário Municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil,

Venho por meio desta apontar uma campanha difamatória levada a cabo por um funcionário da Secretaria, a saber, o sr. Cláudio Alexandre de Barros Teixeira (Cláudio Daniel), curador de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Baseado em mentiras (que se podem comprovar), encaminhou a milhares de destinatários um pedido de boicote a um respeitado órgão de mídia eletrônica, a revista Sibila […].

A resposta do secretário Calil a mim:


Prezado senhor,

Tendo tomado conhecimento da denúncia e ainda que respeite o direito de manifestação do referido servidor, orientei o diretor do Centro Cultural São Paulo no sentido de adverti-lo sobre a inconveniência dessa manifestação, em vista de exercer cargo público.

Atenciosamente,
Carlos Augusto Calil

 

Ora, se o próprio Secretário Municipal de Cultura também considera essas manifestações inconvenientes, por se tratar de funcionário público, quem poderia considerá-las convenientes? De fato, não convém absolutamente ao Estado ser conivente com quaisquer tentativas de censurar órgãos de imprensa. Nem convém aos detentores de cargos públicos usar seus cargos em benefício pessoal (ou de suas obras, o que, neste caso, dá no mesmo) ou de seus próximos. E não convém o uso e o abuso de verbas públicas de modo acriterioso, personalista, grupalista.

Pois aqui, ao contrário do “In dubio pro reo” (“Na dúvida, [decida-se] a favor do réu”), que serve de defesa do cidadão contra os erros da justiça, impõe-se outro antigo adágio: “A mulher de César não deve apenas ser casta, ela também deve parecer casta”. Mas a “mulher de César”, no caso literário paulistano, isto é, a verba pública centralizada em grande parte nas mãos de FB e CD, não o parece.

A esse respeito, um representante da Poeisis, à qual a Casa das Rosas é subordinada, afirmou que o referido artigo de Luís Venegas, “no que toca à CR, veicula inverdade, porque a gestão do dinheiro público gasto nesse equipamento cultural sofre (nem poderia ser de outro modo) controle interno (da Poiesis), da Secretaria de Estado da Cultura e do Tribunal de Contas. Ademais, obviamente (só a má-fé poderia supor de outro modo), todo esse gasto (do dinheiro público) é transparente, publicado no Diário Oficial”. Por partes: 1) não se está questionando a Poiesis; 2) a Secretaria de Estado da Cultura é hoje comandada pelo melhor nome em décadas, Marcelo Araújo; 3) não há qualquer má-fé nos questionamentos das atividades da CR (e do CCSP em sua curadoria literária): mesmo porque, são fatos notórios. Qual, afinal, a transparência na escolhados autores que são contemplados com edições “grátis” produzidas no CCSP e lançadas na CR com dinheiro público? Qual o critério para integrar a lista de participantes de eventos pagos com esse dinheiro? Etc. Ora, esse “critério” é, na verdade, claro, além de conhecido: a proximidade com FB e CD. Por aqui se começa a perceber que os controles formais, ainda que idealmente aplicados, não garantem tudo. Na verdade, no caso de eventos culturais, não garantem muito. Não se trata, de fato, de má-fé, mas de boa lucidez. Tampouco de inverdades, mas do inevitável debate cultural.

Esse debate em particular, não por acaso, ocorre há tempos no Brasil, e não apenas em São Paulo. O controle das verbas públicas para a cultura é sempre difícil, porque não há variáveis objetivas. Numa obra de engenharia, podem-se contar os sacos de cimento. E ainda assim, o superfaturamento é a regra, não a exceção, e os editais são constantemente manipulados, como os jornais não se cansam de denunciar. Mas sequer há editais no caso de eventos culturais. Há decisões, escolhas arbitrárias, e ponto final:

 

Ao custo de R$ 3,1 milhões, o tenor espanhol Plácido Domingo fez na noite de ontem show […] em Fortaleza, bancado com recursos do governo do Ceará. […] O tenor foi escolhido por ser o cantor preferido da presidente Dilma Rousseff, como [o governador] Cid Campos fez questão de comentar (“Ceará paga R$ 3 mi por show de tenor em evento”, http://www1.folha.uol.com.br/poder/1138114-ceara-paga-r-3-mi-por-show-de-tenor-em-evento.shtml).

 

Neste caso, houve perfeita transparência de critérios. O que só demonstra ser tal critério indefensável. Se estivéssemos na França de Luis XIV, o “Rei Sol”, a preferência do soberano seria, de fato, fator suficiente para orientar o uso do dinheiro público. Numa república do século XXI, mesmo que não seja ilegal (por inépcia legislativa), é sem dúvida ilegítimo. No caso do dinheiro público utilizado por FB e CD, não há esse grau de transparência mas, em compensação, existe a mesma ilegitimidade. Porque seu uso é literalmente arbitrário, ou seja, determinado pelo arbítrio do detentor do cargo.

As notórias dificuldades quanto a fazer uso não apenas de transparência mas também de alguma objetividade, no patrocínio estatal de produções culturais, nada justificam: na verdade, impõe ainda mais transparência e ainda maior solidez de critérios. Mas, na prática, a tais dificuldades gerais, no caso da CR e da curadoria literária do CCSP, soma-se gozosamente a dificuldade particular do estado brasileiro em controlar de modo eficiente seus gastos.

Além disso, muitas vezes ainda se acrescenta a questão da pertinência. Por exemplo, uma de suas missões principais da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos é dar conta de modo satisfatório do enorme e importante acervo do poeta paulistano. A CR deveria ser, portanto, um centro irradiador de pesquisa, de informação, de produção intelectual e de criação literária, e não é, de fato, um verdadeiro centro irradiador de nada. Há saraus, shows, lançamentos de livros, em síntese, eventos do tipo, da dimensão e do alcance que qualquer livraria média poderia fazer (e faz), mas pouco além disso. Para não lembrar que, enquanto uma livraria ainda se pauta por critérios objetivos de mercado, tais eventos bancados pelo Estado se pautam pelo arbítrio de detentores de cargos públicos. Não é, mais uma vez, conveniente, ou, em outras palavras: algo está errado, evidentemente. E se algo está evidentemente errado, em vez de se buscar argumentos para justificá-lo, deve-se procurar o meio de corrigi-lo. Pouco importa que seja difícil, quando se trata do que é necessário.

 

P.S. Não é apenas a Sibila que CD gostaria de destruir. Cito-o (em manifestação em rede social): “É óbvio que odeio Maluf, que deveria estar cumprindo seu vigésimo ano de cadeia. Mas, vamos manter o foco; o mais importante é derrotar José Serra nas urnas e destruir o PSDB em São Paulo”. Mais uma “manifestação inconveniente” de um detentor de cargo público.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).