Literatura e Matemática, de Jacques Fux, publicado em 2016 pela editora Perspectiva, pesquisa as relações entre Georges Perec e Jorge Luis Borges sob o viés da Matemática e Lógica.
Além de focar seu estudo em um campo pouco explorado dos estudos comparados no Brasil, o livro abre espaço para questionamentos que precisam ser feitos àqueles que produzem literatura atualmente.
Para entendermos melhor do que ele fala, vamos reforçar a definição do termo contrainte. Não falamos aqui de ‘constrangimento’, por mais que essa conotação não se perca por completo, dependendo da leitura que se faz daquilo que o Oulipo impõe a seus adeptos.
Falamos de uma “restrição inicial imposta à escrita de um texto ou livro”, como afirma Fux. No caso, a novidade do grupo francês Oulipo, do qual Perec foi adepto, foi a proposição de contraintes matemáticas na criação de obras literárias, sem por isso deixar de fazer uso de outras, como as linguísticas.
Outros exemplos contraintes, retirados do próprio Oulipo, podem ser simples como a omissão de uma letra no texto ou envolver diferentes campos da matemática, desde análise combinatória até a escrita axiomática, passando até mesmo pelos movimentos do jogo de xadrez.
O projeto de “A Vida Modo de Usar”, de Georges Perec, por exemplo, explora três principais estruturas: bicarré latin orthogonal d’ordre 10, la polygraphie du cavalier e la pseudo-quenine d’ordre 10.
Ou seja, o livro é composto com base em uma figura com 10 x 10 quadrados preenchidos com 10 diferentes letras e 10 diferentes números, cada quadrado contendo uma letra e um número; o movimento do cavalo no tabuleiro de xadrez, e a ação de trocar a ordem de um determinado conjunto de coisas linearmente arranjadas.
Para dar uma noção melhor do termo, Jacques Fux sugere o Twitter, por exemplo, como uma possível contrainte tecnológica para ser usada literariamente. O foco de Literatura e Matemática, obviamente, são as contraintes matemáticas.
Para isso, o autor inicialmente perpassa uma linhagem de escritores que usaram recursos matemáticos e lógicos para compor suas obras, tanto os que fizeram isso livremente quanto os adeptos do Oulipo, que os aplicaram sistematicamente como regras de composição, incluindo um tópico para a literatura e matemática no Brasil.
Em seguida, parte para Georges Perec mais especificamente, sua obra, as citações de Borges em “A Vida Modo de Usar”, suas aproximações com a matemática e também estabelece algumas relações iniciais do integrante do Oulipo com o escritor argentino.
Depois faz o mesmo com Borges para finalmente partir para a análise comparativa de ambos tendo como foco as relações entre literatura e matemática. A conclusão é que trabalhar a matemática na literatura potencializa os estudos literários, abrindo um novo horizonte de comparação entre obras.
Por isso Fux estabelece a intertextualidade como fio condutor da utilização da matemática na literatura, que foi também a grande contribuição do Oulipo: permitir por meio da matemática novas formas de conectar obras do presente, passado e futuro. Para nós, a maior contribuição de Literatura e Matemática é a de não perder a mão, mantendo a discussão naquilo que ela tem de fértil.
Talvez a clareza na hora de traçar os objetivos permitiu ao autor concluir de maneira lúcida, sem dar um passo além, mas cumprindo a proposta inicial de caminhar no espaço entre a literatura e a matemática para levantar questões estruturais e ficcionais e novas frentes de comparação entre Borges e Perec.
E o faz sem com isso perder de vista as consequentes “negação da escrita automática e a visão do escritor como um trabalhador das palavras”, assumindo assim sua posição teórica no campo. Como afirma Christelle Reggiani, na apresentação do livro:
“Sem dúvida, a ideia de que haveria uma base objetiva na refundação matemática da escrita literária, em que a matemática pudesse recompensar a falta de regras (como dizia Mallarmé), mostra-se facilmente questionável – e por não serem as línguas naturais como a da lógica –, pois é somente a hipótese de um investimento subjetivo que pode dar conta do que assim qualificaremos de má-fé literária: o surpreendente não é que a escrita literária, mesmo sob contrainte, não chegue a um verdadeiro matematismo de sua prática, mas que esse truísmo possa ser denegado e que dê lugar a um desejo matemático, produtor de ficções – a matemática aparece então, melhor dizendo, como reservatório de estruturas, promessa de renovação de uma invenção realmente literária, de ponta a ponta. Trata-se, muito mais da questão de uma ideia matemática da literatura que de um improvável uso de conceitos ou operações matemáticas.”
Fux consegue, de imediato, duas coisas importantes, livrar-se do truísmo ao passar além da superficialidade radical que o tema suscita e potencializar com isso a abordagem dos objetos, abrindo algumas caixas de Pandora de Borges e passeando por outras de Perec.
Após a Segunda Guerra Mundial, nota-se uma perda de confiança na linguagem dita natural, como observa Reggiani na mesma apresentação. Perda de confiança que para atingir a linguagem, alcançou a própria essência humana. Essa desilusão conta como fator do aumento na crença de um poder menos suscetível às paixões e aos desvios de razão que a linguagem humana torna possível.
O medo do imprevisível, por si só, do domínio e do sofrimento, seja de um ente humano ou friamente lógico, é a base do preconceito em relação às relações entre a literatura e a matemática, entre as opções por uma obra dotada de um improviso de que somente a alma humana seria capaz ou de uma previsibilidade que só a máquina poderia impor.
Trazendo para a discussão a obra “Cent mille milliards de poèmes”, de Raymond Queneau, ligada ao Oulipo, podemos notar que o próprio grupo francês quebra essa crosta por dentro ao entregar ao leitor as regras de leitura, induzindo-o com isso a participar da criação na apenas do sentido, mas da coisa em si.
Segundo Fux, “Cent mille milliards de poèmes” pode ser considerado a primeira tentativa consciente de usar a análise combinatória na literatura. “Trata-se da construção de 10 sonetos, portanto com 14 versos cada um, em que cada primeiro verso de cada soneto faz correspondência com outros 10 versos diferentes” (Literatura e Matemática, p. 41). São 1014 possibilidades de poemas.
Na raiz, não se trata de uma obra, mas de uma máquina de criar apresentada em forma de obra literária. Uma invenção que estimula a criação.
Dentro desse contexto, Literatura e Matemática carrega consigo também seu elogio implícito aos adeptos de uma literatura matemática, colocando-se assim em oposição a outra linhagem, surrealista, não menos engajada.
Como coloca logo de início: “conjecturamos que quanto maior o conhecimento de recursos, técnicas e conceitos matemáticos, maior a potencialidade de escrita segundo contraintes e maior a possibilidade de utilização de recursos ficcionais.” (Literatura e Matemática, p. 19)
Nesse participar o leitor da estrutura da composição presente por exemplo em “Cent mille milliards de poèmes”, Fux mostra que ao usar contraintes e outras restrições como recurso semântico, isso se aplica tanto ao leitor como ao autor, que nem por isso, precisa deixar de ter participação na produção de sentido.
Para Fux, revelar as regras pode servir também para, na verdade, ocultá-las do leitor, “os textos construídos pelas contraintes não se entregam ao primeiro olhar; suas regras e sua composição escondem e ludibriam o leitor.” (Literatura e Matemática, p. 20)
É fato que Fux defende com isso uma posição com abrangência que alguns livros analisados nesse estudo nem sempre atingem. É uma tentativa de responder à argumentação de Jacques Derrida de que um texto só é um texto se oculta a regra do jogo.
O próprio Oulipo está mais vinculado à ideia de que as contraintes surgem para simplesmente criar novas possibilidades de organização da realidade, explorar os aspectos mais lúdicos da escrita, revelando explicitamente – redunde-se – a regra do jogo, não de forma a ocultá-la.
Voltando à Apresentação, Christelle Reggiane reconhece logo de início que somente um investimento subjetivo pode dar conta daquilo que chama de má-fé literária. Ou seja, somente o ser humano é capaz de produzir o engano, a ilusão, a mágica da literatura. E entende que o Oulipo faz isso estruturalmente, usando a matemática para aumentar as possibilidades de criação.
Por um lado, o que podemos chamar de má-fé literária leva em conta, impreterivelmente, o ato de enganar. Entendemos então que a autora se refere aqui a essa sagacidade na linguagem, da qual somente o investimento subjetivo poderia da conta, no uso da ironia, do sarcasmo, da elipse, da ilusão, da sutileza, da articulação dos sentimentos por meio da linguagem, da sobreposição de camadas de leitura e multiplicação consciente dos sentidos por meio de recursos literários propícios à dissimulação.
Já as contraintes matemáticas do Oulipo são a própria plataforma de criação. O recado que se passa com isso é o desejo de suprimir a subjetividade do ato de criação. Ainda que seja incapaz de transcender o caráter representativo de sua proposta, não quer dizer com isso que faça uma apologia da subjetividade. Pelo contrário, surge em oposição a isso.
O Oulipo aumenta, sim, a potencialidade da escrita, não quer dizer com isso que aumente o caráter subjetivo da obra. Durante toda a leitura do livro, é preciso ter em mente essa separação. As contraintes aumentam as possibilidades de criação, mas uma vez colocadas em prática, tendem a dessubjetivizar o ato criativo.
É essa justamente a surpresa de Reggiani, que essa tentativa obviamente fracassada de chegar “a um verdadeiro matematismo de sua prática” dê frutos em outra esfera de invenção, como “produtora de ficções”, “reservatório de estruturas”. Máquinas de criar.
Não obstante, ao trazer a discussão para nossos dias, o que vemos na maior parte do que se produz hoje é uma arte que se libertou da realidade por meio do universo virtual e até mesmo falar dessa forma já soa como a voz grave de um velho rabugento tomado pela sua visão nostálgica do mundo.
Boa parte da produção atual, aquela que chega mais facilmente ao grande público, não se preocupa em administrar o caos, nem em abraçar o mundo. Também não se engaja por meio da defesa de uma linguagem dita natural, simplesmente aliena-se.
O indivíduo moderno, sabemos, é administrado pelo caos e abraçado pelo mundo e isso, se não o preenche, ilude o suficiente. E já não há mais razão que dê conta disso.