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Poesia e pose: Joan Brossa em três fotografias

Para Ronald Polito, certamente

Poderíamos partir da ideia muito reiterada pela crítica de Joan Brossa: a de que ele era essencialmente um poeta. Brossa fez teatro, performances, instalações e várias obras de arte pública, escreveu poemas-objeto e visuais, de amor e experimentais, sonetos, crítica e prefácios para livros de magia, gerou polêmicas, vendeu livros proibidos, editou revistas de vanguarda, foi militante político e até participou da Guerra Civil Espanhola – na qual teve um de seus olhos ferido, informação nada aleatória para quem se tornou artista visual alguns anos depois. Para evitar complicações, pelo menos por enquanto, vamos partir da ideia, mais ou menos falsa, mais ou menos verdadeira, de que Brossa era essencialmente um poeta.
Separei duas pequenas anedotas de sua vida para exemplificar o que é o “espírito poético brossiano”; elas abrem uma trajetória que pretende chegar ao fotográfico. Gostaria de marcar que introduzo Brossa falando de sua vida em vez de trazer a sua obra – se aceitamos aqui a diferença – por um interesse puramente analítico. De resto, essas anedotas servem para elucidar o que pretendo chamar de performático. A primeira delas me foi relatada pelo poeta Antônio Cícero – que, por sua vez, ouviu de João Cabral, que era o grande amigo de Brossa no Brasil. Cito Antônio Cícero:

“A visita foi uma delícia. Cabral estava proibido de beber, mas nos serviu uísque e, de vez em quando, escondido de Marly de Oliveira, sua mulher, dava uma bicada no copo da Susana. Ele estava muito alegre e nos contou várias histórias sobre o jovem Brossa. Narrava-as com muito humor, mas com o rosto sério. Ria por dentro. Uma das histórias ainda me faz pensar. Certa vez, ele e Brossa vinham pela rua, conversando, quando, sem mais nem menos, o poeta catalão começou a falar de modo desarticulado e a fazer gestos amalucados. Cabral só entendeu o que se passava quando percebeu que os avós de Brossa se aproximavam. É que este, embora já não fosse criança, continuava a ser sustentado por eles, que o consideravam deficiente mental – e ele fazia tudo para mantê-los nessa convicção.”

O segundo depoimento foi escrito por mim, em um diário sobre Brossa que mantive no mês que passei em Barcelona pesquisando sua obra. Este trecho é parte de uma longa conversa que tive com Glória Bordons, uma das principais críticas do poeta na Catalunha. O relato de Glória se passa nesta espécie de cenário em que Brossa trabalhava, ou seja, o seu estúdio, seu ateliê.

“Glória ainda me contou de seu primeiro contato com Brossa – uma espécie de ‘ritual de iniciação’, segundo ela. Glória subiu em um elevador de trabalho e, quando chegou ao piso onde ficava o estúdio de Brossa, a porta já estava aberta. Brossa, sentado em uma cadeira de balanço, de frente para sua pequena mesa, já a esperava. Enquanto Glória caminhava entre os papéis, Brossa pedia para que não tocasse em nada, pois tudo, segundo ele, estava na mais perfeita ordem. Glória sentou-se em uma cadeira de balanço furada (era a única que tinha) e teve de se equilibrar na madeira, com a ponta dos pés no chão. A lâmpada que iluminava a mesa de Brossa foi deslocada em direção ao rosto de Glória. Por trás, só uma sombra, um vulto. Glória ainda me disse, depois de conhecer o poeta com mais intimidade, que Brossa fazia isto com todos os estudantes e interessados em sua obra que ainda não conhecia.”

Para Brossa, qualquer espaço era um espaço cênico – desde a rua, a cidade, até a folha branca do papel – e, portanto, tudo é um espaço aberto de invenção. É curioso perceber que pode existir íntima relação entre um poema de Brossa e o prefácio que escreveu para um livro de magia, por exemplo. E isso deve ser pensado, acredito – e alguns críticos também apontam nessa direção, como Arnau Puig, um crítico de arte catalão –, como um esforço interminável de Brossa para traduzir o poético além do registro “literário”, e muitas vezes além do registro “escrito”. Puig usa a palavra “abandono” para denominar uma saída do poema. De fato, podemos dizer que Brossa foi um dos escritores do século xx mais inquietos e preocupados com a reinvenção ou o deslocamento da escrita. Muitos de seus poemas tematizam o que Puig chama de “abandono” – “Depois de escrever o poema,/ os limites da página já não estão/ onde foi cortado o papel”.
Mas não me detenho aqui a analisar especificamente esta passagem do poético em um registro escrito para outros – para os poemas-objeto, ou mesmo para a vida –, pois esta passagem encontra variadas ressonâncias e consequências na obra do artista. Muitos críticos inclusive reivindicam uma “antecipação” de Brossa no que se refere às aparições do happening na década de 1960. Victoria Combalia, uma das primeiras curadoras do artista, traça alguns paralelos entre o que Brossa chamou de poesia cênica – e que fazia já no final da década de 1940 – e as aparições do Fluxus, quinze anos depois. Há um livro de Brossa que descreve, em forma de teatro, mas como ações poéticas, vários stripteases de prostitutas parisienses. Esta ideia de “ação poética”, “ação poética na vida”, ainda, pode ser percebida de modo recorrente em vários de seus poemas. Cito apenas este: “Sob a chuva abro um mapa-múndi”.
Mais do que discutir a consequência dessa “originalidade”, estas avaliações servem para pensar, no mínimo, que Brossa sempre se interessou por essa passagem de um registro escrito para o performático – ou seja, por certa ideia de “ação poética”. E podemos pensar que essa passagem é também uma forma de destruição – em última análise, um desejo de destruição do registro escrito. Ainda, esta passagem pode ser ilustrada com duas falas do próprio Brossa, em duas entrevistas que concedeu em momentos bem distintos de sua vida: “En 1945 mi acceso al teatro significaba la búsqueda de una cuarta dimensión para los poemas escritos”; e em outra fala, um pouco mais irônica, diz algo como: “De modo geral, nunca me entendi muito bem com os literatos”.
Essa relação hostil com a “escrita” certamente possui antecedentes na história. Não é difícil sugerir que se move a partir de um enunciado de vanguarda: destruição da fronteira entre arte e vida. Podemos lembrar as performances de Hugo Ball no Cabaret Voltaire, por exemplo, uma ideia de contingência que definia os espetáculos dadaístas que aconteciam entre o final da década de 1910 e início da de 1920, mas também o enunciado de Baudelaire que incluía o efêmero (contingência) na arte moderna. Podemos lembrar as inúmeras fotografias que Duchamp, Man Ray e Picabia faziam disfarçados – e que podem ser resumidas talvez pela imagem de Rrose Sélavy, heterônimo de Duchamp. De fato, vinte anos depois, no início da década de 1940, mais precisamente em 1941, Joan Brossa lê os dadaístas em revistas como a 391, de Picabia, encontradas na biblioteca de Joan Prats. Pouco mais de cinco anos depois e Brossa, um dos editores de Dau al set, mais importante revista da vanguarda catalã, publica o poema “Table detruit” e outros poemas de Picabia. Isso para marcar que os ecos entre Brossa e o dadaísmo são intermináveis.

É nesse movimento analítico que sugiro pensar sobre algumas fotografias em que Brossa aparece – fotografias que, a princípio, realizam uma função documental, ou seja, não são consideradas artísticas, nem pela crítica de Brossa, nem pelo artista mesmo, já que nunca quis expor e não se referia a elas como obra. Aliás, em conversa com Pepa, viúva de Brossa, ela me relatou que, pelo contrário, Brossa não tinha qualquer interesse específico por essas fotografias, não gostava muito de ser fotografado e somente o fazia quando amigos ou jornalistas o pediam. Por outro lado, há uma foto em que Brossa aparece abraçado com um esqueleto de estudo científico, e sabe-se que essa foto aconteceu a pedido do próprio artista ao amigo Catalá-Roca, no ano de 1993. Nas fotos, importa menos o objetivo do que a aparição em si. É possível facilmente perceber que, sobretudo nestas três fotos que acompanham o texto – uma mais que a outra, talvez –, há qualquer interesse de elaboração, seja de luz, de plano, enquadramento e, sobretudo, em todas as aparições há uma pose.
A questão é que essas fotografias apresentam vários problemas, principalmente no que se refere a um desejo de categorização. Em outras palavras: essas fotografias realizam uma pergunta que já nos abre uma dúvida desde qualquer ponto de partida: são ou não são obras de arte? Podemos pensar que sua função, a princípio, é puramente documental ou afetiva. Por outro lado, é imediata a ideia – mesmo que seja ainda intuitivamente – de que transbordam esses registros. E devemos em algum momento nos perguntar – para além da intuição, porém de modo ainda incerto – os motivos que levam essas imagens a esse transbordamento, ou seja, o motivo que nos faz pensá-las enquanto “atos poéticos”. Aponto uma primeira possibilidade de caminho.
Um dos dispositivos que me fazem pensar nesse transbordamento – ou seja, nesse passagem do documental ao poético – é a extrema proximidade entre essas imagens e a própria obra de Brossa. Então, quando penso em um enunciado de Brossa, “Mi método de trabajo es la vida”, e quando penso, por exemplo, na proximidade de uma fotografia como esta:

Brossacom este poema: “Segunda/ terça/ quarta/ quinta/ sexta/ sapato/ domingo”, em que o procedimento do pequeno erro, do pequeno desvio, se reitera. Ou esta outra imagem:

e toda a relação que Brossa estabelece incansavelmente entre poesia e magia. Quer dizer, se o poético, para Brossa, pode se traduzir (dentre outras maneiras) pelas ideias de metamorfose e, em consequência, pela ideia de surpresa – ou seja, por este pequeno erro sem explicação, esta nova aparição que resiste a um discurso racional –, então a magia será definitiva em toda a sua obra. Em alguma de suas entrevistas, Brossa diz: “He ido descubriendo que no hay diferencia entre un juego de manos y un poema: los dos son una metamorfosis de la realidad, una sorpresa para la persona inteligente”.
Se essas fotografias são “obras”, de alguma maneira – vamos aceitar provisoriamente que o são –, novas dúvidas se apresentam: quem é o autor, por exemplo? O autor é Brossa ou quem fotografa? Em que medida é possível avaliar e aplicar um regime de autoria para essas imagens do mesmo modo que o aplicamos com alguma certeza para um romance de Machado de Assis ou mesmo para um happening do Fluxus? De que modo, ainda, é viável recuperar essa origem – poética? documental? afetiva? –, que insiste em dizer que está perdida? Seja como for, e isto é um pouco o que tento movimentar aqui, essa origem não é uma origem, pois já nasce rebatendo ou respondendo a temas e procedimentos de outros cantos da obra de Joan Brossa.
Podemos retomar a discussão inicial deste texto – de que Brossa era essencialmente um poeta – e insistir na ideia de que essas fotografias podem ser lidas com esse traço. De fato, são fotografias de poeta. Para citar mais uma vez um de seus poemas – “Sob as palavras o papel se transforma/ em ar e as letras em peixes” –, pode-se pensar que o desejo aí é de que o papel se transforme em ar e as letras em peixes: as fotografias aparecem enquanto um esforço para performar o poético, ou seja, levá-lo para além da instituição literária. Se essas fotografias estão ou não do lado da obra de Brossa, isto me parece uma hierarquia difícil ou mesmo inútil de estabelecer. O fundamental talvez esteja – para utilizar uma última imagem brossiana – na possibilidade de recolher algumas cartas da mesa, lançar outras e, desse modo, embaralhar tudo outra vez.

(Texto original apresentado como comunicação em outubro de 2008 no Centro de Artes da UDESC, em Santa Catarina, em um seminário sobre fotografia.)


 Sobre Victor da Rosa

Crítico literário e doutorando em Literatura pela UFSC e organizador, com Ronald Polito, da antologia 99 poemas de Joan Brossa (São Paulo: Demônio Negro, 2009).