“– São as Antilhas os jardins dos mares, / Onde houve berço a geração moderna!” Com esses versos, provavelmente escritos em Nova York em 1870 e pouco, menos de uma década e meia depois de Baudelaire ter publicado As flores do mal, Joaquim de Sousa Andrade, ou Sousândrade, apresentava uma aguçada visão política peculiar sobre a democracia norte-americana. Os versos acima são do Canto Nono de O Guesa, “epopeia da América Latina” – como diz a orelha do mais significativo comentário da obra de Sousândrade até hoje publicado, escrito pelos irmãos Campos. A falta de precisão nas datas é consequência da constante reescrita e do próprio enigma que a linguagem de Sousândrade emprega ao leitor que se aventura a decifrá-la.
Isso não quer dizer que o autor em questão faça uso de uma linguagem obscura propriamente dita, mas que é preciso um vasto conhecimento e acesso a meios de pesquisa sobre a vida social, a imprensa, a política e a história do período em que o poema foi escrito e sobre os locais e culturas relacionados ao roteiro/périplo que estruturam a narrativa. O que nos leva a um mínimo de contextualização: O Guesa é um case na literatura brasileira. Foi escrito por um poeta situado entre os românticos, entre os simbolistas e até como pré-modernista. É um livro pretensioso, um poema longo de difícil acesso (em vários sentidos), deslocado da produção brasileira do período, bem como da internacional, autônomo, épico às avessas, indianista às avessas etc.
Antes de ser ressuscitado em uma recente e cuidadosa edição do selo Demônio Negro, só não ficou absolutamente no limbo das letras nacionais graças ao importante trabalho de Jomar de Moraes e Frederick G. Willians e outros como ReVisão de Sousândrade, de Augusto e Haroldo de Campos, e Épica e Modernidade em Sousândrade, de 1986, em que Luiza Lobo defende uma leitura épica do poema, como veremos a seguir. Por enquanto, é importante ter em mente que quase tudo, embora muito pouco, foi dito sobre Sousândrade, o que lhe confere títulos como o de poeta menor, inventivo, mas irregular, dividindo a crítica, senão em “silêncio”, em posições diametrais. Nas palavras de Luiz Costa Lima:
Com efeito, Sousândrade é o único poeta brasileiro que, antes do modernismo, antecipou formas que só depois se desenvolveriam dentro do acervo poético internacional. Só ele não foi mero reflexo de correntes europeias. Por isso mesmo ele se tornou o mais incompreendido dos poetas pré-modernistas. (In: CAMPOS, p. 410).
E, também por isso, mais erra que acerta. Entre o limbo e o radicalismo, Marília Librandi Rocha traça um breve e eficiente panorama dessa recepção crítica aqui.
Uma simples narrativa
Em 1876, em suas ‘Memorabilia’ aos Cantos V a VII de uma edição nova-iorquina, J. de Sousândrade escreve:
O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe fosse necessária, a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que mais separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade sua dá ao pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na plenitude intelectual – nessa harmonia íntima de criação, que experimentamos no meio do oceano e dos desertos, mais pelo sentimento que em nossa alma influem do que pelas formosas curvas do horizonte. (In: CAMPOS, p. 165)
Apesar da advertência do autor em relação aos gêneros poéticos, Luiza Lobo propõe uma estrutura épica para a leitura de O Guesa. Essa estrutura corresponde, no caso, ao poema exceto dois fragmentos em versos curtos, enxertados nos Cantos II e X, que foram apelidados por Augusto e Haroldo de Campos como “A dança de Tatuturema” e “O inferno de Wall-Street”. Grosso modo, essa hipótese permite à autora dispor que, com essa fusão do épico com esses dois fragmentos, Sousândrade tentava criar um novo tipo de gênero poético, crítico e tragicômico, que ela chamou de “nova épica”.
Ora, um poema não deixa de ser épico só porque o autor disse que não é épico, o que também não o obriga a sê-lo, sendo, “primordialmente, uma forma de narrativa” (LOBO, p. 101). Então por que chamá-lo (e lê-lo) como épico? Essa leitura diferenciada de O Guesa se apoia na tradição de construção e desconstrução da épica clássica, culminante no Lance de dados de Mallarmé. É através desse percurso que podemos entrever o processo de constante reescrita aplicado aos Cantos de O Guesa, sobretudo em relação aos fragmentos dos Cantos II e X. O livro foi reeditado por décadas até chegar à versão “definitiva”, supostamente de 1884.
Um benefício da proposta de Luiza Lobo é que, se lermos O Guesa a partir de sua estrutura épica, alternamos as pálpebras em relação ao objeto, descobrindo, sob nova perspectiva, que o próprio poema oferece outro ângulo de leitura, com uma gama de novas possibilidades antes encobertas. Do épico à narrativa. Ao usar elementos do épico, o texto permite inferir que esse gênero – e tudo que ele implica como sendo a personificação da Vitória, sua Fortuna – está sendo submetido à consciência do irônico gênero tragicômico. E nesse escrutínio, resta ao guesa encarar seu destino e proferir seu testamento do esmagamento do sujeito lírico na Idade Contemporânea.
Em O Guesa, Sousândrade usa elementos do épico, mas não é épico propriamente dito, é um poema de alto desempenho em tom menor. Que funde gêneros, lírico, trágico, cômico, épico, em postura sacrificial, testamental. É, também, sobre isso que fala o poeta quando escreve
Pois ha, entre o Harold e o Guesa,
Differença grande, e qual é;
Que um tem alta voz
E o pé bot,
‘Voz baixa’ o outro, firme o pé.’
E cometas, aos aerólitos,
Passando, sacodem pelo ar…
= Vêde os vagabundos
Mimundos
Que ostentam rodar e brilhar!
Harold é uma referência ao Childe Harold’s Pilgrimage, poema narrativo em quatro partes escrito por Byron e considerado por Luiza Lobo uma referência para O Guesa. Enquanto o Harold tem uma “alta voz” e um pezinho em Byron, O Guesa tem pé firme, não fica se lamentando o tempo todo, mas vive com lirismo em “voz baixa” a rodar e a brilhar. É uma postura poética que está mais para o órfico, nos moldes de Mário Faustino ao comentar a Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. Sousândrade, que leu Ovídio.
Chamar-se-ia uma caricatura do épico, épico? Ou caricatura do épico?
Até mesmo os próprios irmãos Campos reconhecem O Guesa como uma epopeia, mas com o cuidado de se aterem, em sua ReVisão de Sousândrade, a outra proposta de leitura. Não se trata de uma chave-de-leitura, mas de parte de um processo poético mais voltado para outros problemas do ser e da linguagem. No caso, os pontos abordados na ReVisão são majoritariamente aqueles em consonância com o cânone que havia definido as bases da poesia concreta, principalmente Pound.
Obras de grande envergadura precisam de terrenos amplos. Saliente-se que por uma perspectiva dO Guesa enquanto narrativa, não épica, os fragmentos dos Cantos II e X não precisam ser vistos como protuberâncias destoantes do conjunto. Elas dão o tom caricatural que salienta as características do homem. Não quer dizer que esses dois trechos tenham rompido com o plano épico do poema, mas que a pretensão era outra, em uma forma de autocrítica característica da tomada de consciência coletiva dos períodos de transição.
E O Guesa é isto, um poema de transição, de crise do decassílabo heroico. NO Guesa, o verso clássico é obrigado a conviver com o “inferno de Wall-Street” a fim de lutar pela própria vida, assim como o errante renegado em sua pátria natal sofre para interagir com o mundo, chegando a reconhecer-se na imagem do misantropo. Luiza Lobo, referindo-se às “transposições no ‘Inferno de Wall-Street’ do fragmento do Canto X para o Canto II, de estrutura semelhante, chamado ‘Dança de Tatuturema’”, diz que essas “inserções tornam-se trechos particularmente em desacordo com o cenário da floresta amazônica”, tanto que reservou um capítulo à parte apenas para o limerick. (LOBO, p. 15)
No entanto, não fica explicado o que, além do fato de se assemelharem a limericks e terem sido enxertados depois de o Canto já ter sido publicado, em 1868, os coloca em desacordo com o cenário da floresta amazônica. Diz ela que:
Para qualquer leitor fica claro, comparando as diversas publicações dos dois fragmentos [‘Dança do Tatuturema’ e o ‘Inferno de Wall-Street’, segundo os Campos], que o poeta aproximou bastante a forma inicial da ‘Dança de Tatuturema’ do limerick após sua estada em Nova Iorque, para dar uma unidade maior aos dois fragmentos. (LOBO, p. 16)
Não apenas para dar unidade maior, mas também para criar um vínculo entre o ritmo caótico da dança e o inferno financeiro. Com sua versificação, a “Dança do Tatuturema” aciona um novo dispositivo musical para o ritmo da dança tribal, além de dar maior coesão ao poema como um todo com seu coral de vozes. Trata-se da forma como Sousândrade lida com as multidões. O coração dispara e afeta o pulso do poema.
Do épico ao… Ao quê?
Para Luiza Lobo, O Guesa assenta sobre uma estrutura épica clássica, composta de proposição, invocação, dedicatória e narração, a partir da qual o poema se iniciaria in media res. A amostragem dessa estrutura coloca a primeira dúzia de versos do Canto Primeiro como uma invocação que faz uma paráfrase do “Canto I” de Os Timbiras, de Gonçalves Dias. Concorda também a autora que, “sem dúvida, O Guesa é o maior exemplo de mescla estilística existente no Brasil antes do Modernismo” (LOBO, p. 14).
Vejo isso de outro modo, a partir do qual o poema não começa in media res. Isso não impede que o Canto Primeiro comece na cena em que o Guesa “murmura adeus” com a chegada dos espanhóis e passa a errar. Essa despedida da terra natal pode ser tanto da Vitória como dos Andes, uma vez que se trata de uma narrativa sobre um índio peregrino um tanto quanto repleta de detalhes autobiográficos. Outra invocação para o poema, nesse caso, destina-se à “musa da zona-tórrida”, no Canto Oitavo, rompendo com a ordem habitual: “– as vozes / Inspira, inspira, ó musa, ao coração!”
Ainda segundo essa leitura, as datas registradas nos Cantos dO Guesa, além de indicarem o(s) ano(s) de início e de fim de cada Canto, serviriam também como coordenadas, estabelecendo o Canto X, o único cuja data é grafada com reticências, “1873-188…”, como marco temporal da história, aquele que significa o presente do narrador, no caso das coordenadas, ou do autor, em se tratando da gênese do poema, vinculando uns aos outros tanto espacial como temporalmente. Essa interpretação é sugerida, por exemplo, em trechos como:
Avista ao longe as amazoneas aguas,
Oiro agitado ao sol, e as verdes ilhas
Que de ha treze annos d’este canto as mágoas
Ressoaram – eternas maravilhas!
em que, no Canto Nono, o poeta rememora as verdes ilhas de seu passado na Amazônia, situando o leitor nos primeiros Cantos, escritos 13 anos antes.
Considerando-se, então, a segunda data, quando houver, a da conclusão do Canto, temos uma sequência que denota a linearidade cronológica da história – com tudo que ela implica em termos de numerologia, de equilíbrio formal e de carga semântica –, que pode ser assim representada:
1852 – 1857 – Canto sexto
1858 – Cantos primeiro, segundo, terceiro e quarto
1862 – Canto quinto
1857-1870 – Canto oitavo
1871 – Canto nono
1878 – Cantos décimo primeiro e décimo segundo
1873-188… – Canto décimo
1880-1884 – Canto epílogo
1857-1900 – Canto sétimo
Dessa forma, o Canto Nono representa o centro de uma estrutura de nove escalas cronológicas, sendo a última em 1857-1900 (Canto Sétimo), e a primeira em 1852-1857 (Canto Sexto, que é, biblicamente falando, o adversário do Sétimo). Uma errância que vai “do dezenove século às miragens!”, nas palavras de Sousândrade. Com exceção dos Cantos Sexto, Nono e Sétimo, o poema fica com dez Cantos também formal e geometricamente equilibrados.
Voltando ao “épico”, é o instinto feminino de Luiza Lobo sobre o pensamento ágil de Sousândrade que a conduz à segunda parte de sua pesquisa, a “nova épica”, em que, em processo de libertação das amarras do épico (e a consequente nostalgia do colo da tradição), entende a autora que o poeta superou
as tímidas propostas indianistas de O Guarani, de José de Alencar (folhetim, 1856; livro 1857), e de Os Timbiras, de Gonçalves Dias (1857). A iniciativa pessoal de deslocar-se do centro de influências estrangeiras, o Rio de janeiro, e sua rebeldia ao contexto político-social levaram Sousândrade à criação de O Guesa dentro de uma nova épica. (LOBO, p. 97)
Nesse sentido, ao conotar signos que até então eram usados ingenuamente, o poeta estaria realizando um avanço em relação ao Romantismo tradicional, mas não estaria, modernamente, necessariamente, conotando-os criticamente. Podendo ser situado como simbolista: “enquanto executante de uma épica depassé e experimentador de um estilo metafísico e metafórico […], Sousândrade corresponde exatamente às características que Anna Balakian propõe para o Simbolismo de fin de siècle.” (LOBO, p. 174)
Em outro momento do livro de Luiza, lê-se:
Assim, numa antipoética antecipadora do Modernismo, Sousândrade, ao mesmo tempo em que se inscreve no projeto épico romântico, questiona-o ao próprio nível da linguagem – postura jamais ousada ou pensada por José de Alencar ou Gonçalves Dias. (LOBO, p. 105)
Na verdade, o que Sousândrade está fazendo é colocar em questão a própria validade de conceitos como o de épico ou de lírico, e isso confere maior liberdade e repertório para a confecção de um poema órfico, existencial. Da mesma forma como é sugerido que se leia o poema por uma ótica mais ampla, a da narrativa, esse questionamento ao épico, de dentro para fora, é parte de uma proposta complexa da relação do sujeito com o mundo.
O termo “nova poética” só vai ser utilizado por Luiza Lobo cerca de uma página antes do final do livro, mas no sentido de que, se Sousândrade não tivesse caminhado para uma nova épica, teria permanecido um romântico naïf. Ou seja, refere-se a uma nova poética épica, com propriedade. E isso não impede de considerá-lo, da mesma forma, tão somente uma narrativa, que pouco – nada – tem a ver com o épico, e o pouco que tem diz respeito aos pontos que as definições de narrativa e de épico têm em comum. Questão de taxionomia, que mais confunde do que ilumina, mas alinhada ao tom particularíssimo, que volto a mencionar ao final desta trilha, com que o poeta afinou seu estar no mundo.
Uma simples revisão
Rica, tanto quanto sedutora, é a tentativa de incluir Sousândrade na tradição “barroca lato sensu” de Pound dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Para bem ou para mal, qualquer leitura de O Guesa passa, obrigatoriamente, pela ReVisão de Sousândrade, espécie de guia prático de consulta ao léxico e à técnica sousandradinos via Pound. Quando falei do paralelo com o Childe Harold’s Pilgrimage, não cheguei a mencionar que os irmãos Campos obviamente estavam atentos para a passagem dO Guesa que faz menção à obra de Byron:
‘Pé bot’, do francês ‘pied-bot’: manco, alusão ao defeito físico de Byron. Colhendo no Childe Harold’s Pilgrimage (1812-1818), talvez por uma identificação natural de destino, a idéia de peregrinação, Sousândrade levou-a em seu poema a soluções formais totalmente diversas, fugindo à frouxidão retórica que caracterizou o byronismo romântico. (CAMPOS, p. 71)
Mas nem os Campos, nem Luiza Lobo comentam as “vozes” de que fala o poeta. À ReVisão dos Campos pouco importava o tema, detidos que estavam em outras questões, como os efeitos fanologomelopaicos do poema “servindo na maioria dos casos a propósitos crítico-satíricos.” (CAMPOS, p. 97) Além disso, eles se estenderam bastante e o suficiente sobre o conceito de poema longo. O Guesa, com sua grande diferença de não ter o tom maior, supostamente épico, do Childe Harold, dá voz a um poeta desgarrado, desnacionalizado, embora com aguda percepção política, republicana, democrática e atenta para a “crise da modernidade”. Sousândrade, pouco antes de Kafka, faz a caricatura de uma sociedade em que os ideais libertários do romantismo podem levar o mundo a um pesadelo burguês.
Em tempo, o esquema rítmico é bastante variado. Não é monótono, nem se divide em heroico e limerick. Há um grande repertório de efeitos sobre os decassílabos predominantes, com variações para versos de seis sílabas, sete – um ou outro de onze sílabas ou decassílabos com acentuações variáveis – e os limericks. Uma ou outra rima toante, uma ou outra variação rítmica e o arsenal descrito na ReVisão. Algumas boas soluções, como no Canto Sétimo, no qual Sousândrade inclui, lá pelo verso 45, uma espiral de hexassílabos sem rima, ou no canto 12, em estrofes de redondilhas rimadas.
O Guesa tem um pouco de tudo e, em relação a contemporâneos dele, como Gonçalves Dias ou Castro Alves, um pouco mais. Assim como também há verborragia, cacoetes de épo(i)ca e redundância na maior parte do poema. Um pouco de cinema e metafísica, por exemplo:
O homem descansa. Uma ave desata
E desdenha ao rochedo; e ele alli, preso
Pelas cadeias de seu proprio pêso
Assim como vale nota este dístico:
No mar a morte, em todos elementos,
Fechando a porta o camponez aos ventos.
Ou este verso, que por si só, compensa a obra: “Na solidão, ao menos livres morrem.”
Ou este: “a boca, rosas lhe auroraram”.
Em meio a essa variedade temática e estilística, é possível perceber a transição de um romantismo em processo de esgotamento para um verso em que o ritmo do progresso é mais latente. Essa mudança fica mais evidente se compararmos os Cantos entre si: nos últimos, a linguagem é mais objetiva, menos adjetiva, por exemplo. O aguçado senso crítico do poeta, aliado à sua biografia, em grande parte reaproveitada com alta carga semântica na obra, permitiram-lhe intuir a própria autossuficiência literária, essa ilha onde ele gostava de estar sozinho com sua música:
– Vós, que na lenda, do princípio, vistes
O bello, embora a fórma extravagante,
O tractado firmai da paz, que existe
Entre vós, o cantor e o Guesa Errante:
Elle afinou as chordas de sua harpa
Nos tons que ele somente e a sós escuta;
Nunca os ouviu dos mestres – se desfarpa
Talvez por isso a vibração d’inculta
No vosso ouvido. Que aprender quizera,
Sabem-n’o todos. – Lêde as lettras sestras
Quando fóra das leis tambem: quem dera
Que o fizesseis! e os bellos sons da orchestra
Não vos levaram ao desdem tão facil
Pelos gritos, que estão na natureza:
Desaccordes, talvez; d’esperança grácil;
Talvez não; mas, selvagens de pureza!
Ao aproximar Sousândrade de Baudelaire – e não de Whitman –, não pretendo sugerir que ambos adotaram soluções formais semelhantes, pelo contrário. A empatia entre ambos está – e aí temos a grande contribuição da pesquisa de Luiza Lobo – na armadilha verbal em que ambos foram fisgados pelos deuses. Ambos se viram diante de um mundo industrializado em que o peso função clássica se desmantelava aceleradamente. Um mundo em que Sousândrade não mais encontrava espaço, o que o levou a errar, solitariamente, com sua harpa e suas raízes.
É disso que fala Luiza Lobo quando perfila Sousândrade ao lado de Mallarmé. É a épica presente em O Guesa que constrói o elo mais forte da relação entre o poeta maranhense e os “simbolistas” franceses:
Nesta recriação do passado através da desconstrução da épica clássica – como a realizada por Mallarmé em relação aos signos da navegação de Um lance de dados jamais abolirá o acaso (1897) –, perfila-se entre os simbolistas no sentido de uma reinauguração do universo linguístico e literário. (LOBO, p. 123)
Há reinauguração em Sousândrade, assim como há uma desvinculação do épico formalmente inscrita no poema, e não apenas nos “Infernos”. Por isso, não é possível relacionar essa obra dentro de uma “nova concepção de épica”, uma vez que essa categoria sofre um processo de esgotamento destacado na própria gênese dO Guesa. Talvez uma nova concepção narrativa, ou poética, ou lírica, estivesse mais próxima, de fato, daquilo que lemos no poema, mas ao usar o termo épico, aproximamos o poeta de um questionamento simbólico que teve seu ápice no ambiente cultural do início do século XX.
Estamos pressupondo, aqui, que Sousândrade, assim como Baudelaire – este mais profundamente –, sentiu a dissolução de sua aura (em termos benjaminianos) no mundo moderno. Infelizmente, nesses termos, o guesa errante custou a tomar consciência das próprias palavras, mas ainda deu tempo de sagrar-se um caso único de jeitinho brasileiro na História da Literatura, em que alguns remendos sobre um tecido narrativo defasado mostraram como um épico de superfície era, na verdade, uma caricatura de si mesmo e da geração que encerrou o século XIX, uma bem humorada máscara de carnaval com renda francesa.
Bibliografia
CAMPOS, Augusto e Haroldo de. ReVisão de Sousândrade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
LOBO, Luiza. Épica e Modernidade em Sousândrade. Rio de Janeiro: Presença/Edusp, 1986.
ROCHA, Marília Librandi. “O ‘caso’ Sousândrade na história literária brasileira”. Revista USP, São Paulo: USP, n. 56, p. 213-220, dez/2002 a jan/fev/2003.