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Gênero policial brasileiro versus democracia

Há um mistério que cerca o gênero policial. Um grande mistério. Ele pode, em compensação, ser enunciado de forma clara, apesar de interrogativa: por que o gênero policial não vinga nos países periféricos? Mais precisamente: por que não vinga no Brasil?

Rubem Fonseca acreditou poder fazê-lo vingar, mas fracassou. Seus textos mais bem realizados – que são os contos, não os romances – têm assassinos brutais, mas não investigações sensacionais. García Márquez não escreve policiais. Borges produziu, com Bioy Casares, algumas paródias, as histórias do não por acaso chamado Don Isidro Parodi. Etc. Como regra, portanto, não há literatura policial nos países periféricos, incluído o Brasil. Por que não há?

Os demais gêneros da prosa, do romance ao romance histórico aos livros de história, passando pelas biografias, pela autoajuda, pelas memórias e pelos livros infantis, existem. Há apenas outro gênero misteriosamente ausente: a ficção científica.

Ou não tão misteriosamente assim. A ficção científica não existe nos países periféricos, e não existe no país periférico que é o Brasil, porque a ciência e suas conquistas não são parte importante da cultura desses países. A ciência, por aqui, é pouca, e, além de pouca, acanhada. Tanto nas conquistas quanto na importância cultural (pois interligadas). Portanto, a ficção científica torna-se inverossímil. E porque inverossímil, torna-se impraticável. Ninguém acreditaria em astronautas brasileiros pousando em Marte. Daí a ausência absoluta da ficção científica: não apenas na literatura, mas também na TV e no cinema nacionais. Ninguém acreditaria em androides fabricados em Goiás.

O motivo pelo qual não se faz e não se pode fazer ficção científica no Brasil é, assim, o mesmo pelo qual o país não tem nenhum Prêmio Nobel: sua enorme pequenez científica. Há, individualmente, alguns grandes cientistas brasileiros. Mas são as esforçadas exceções que confirmam a regra da histórica mediocridade científica nacional. O Brasil ainda é o que se costumava chamar de país atrasado, e que não se costuma chamar mais, não porque tenha deixado de sê-lo, mas porque se tornou moderno o uso de eufemismos, como a expressão “país em desenvolvimento”. O Brasil está, naturalmente, em desenvolvimento. Mas nada garante em direção a quê. Por exemplo, nada garante que não seja em pleno desenvolvimento de sua histórica mediocridade histórica. Pois não são apenas ciência e ficção científica que o Brasil não tem.

Não temos forças armadas capazes de lutar. Não temos controle de fronteiras. Não temos sistema judiciário (mas apenas um vasto sistema de palácios de justiça). Não temos mercado literário (que sustente dignamente os escritores). Não temos classe artística que se sustente (mas sim que se suspende pelas tetas do Estado). Não temos saúde pública decente. Não temos escolas públicas decentes. Não temos filosofia. Não temos ferrovias. Não temos estradas seguras. Não temos segurança alguma.

Tampouco temos, naturalmente, polícia, mas apenas assassinos pagos pelo Estado, ineptos para fazer frente aos assassinos empreendedores, que agem por conta própria. Os assassinos uniformizados, em compensação, são extremamente eficientes em matar cidadãos inocentes, seja em execuções ou com “balas perdidas”. Mas esse não é o motivo – ao menos não o motivo principal, determinante – de não termos literatura policial.

Gênero e polícia

O motivo determinante é não termos, para além das convenções eleitorais e dos aparatos institucionais, uma verdadeira democracia.

Uma democracia verdadeira é a expressão política e jurídica de uma verdadeira cidadania. E esta é o maior “não temos” brasileiro. Sua falta explica todos os demais, além de tornar um tanto patéticos, ingênuos ou hipócritas os insulados cantos de glória para as raras conquistas nacionais. Em todo caso, é a falta de cidadania que explica a inexistência do gênero policial.

Não se trata de uma descoberta minha. A descoberta cabe a Luís Martins, jornalista e escritor da primeira metade do século 20. A mim cabe tão somente a descoberta de um livro em um sebo.

Obras-primas do conto policial é uma edição de 1964, da Livraria Martins Editora, de São Paulo. Tem 364 páginas em papel grosso, amarelado e áspero, impressas em tipos de chumbo. Contém 16 contos dos maiores mestres do gênero, como Poe, Doyle, Simenon, Hammett. E uma introdução de 15 páginas assinada pelo organizador, esse mesmo Luís Martins. É nela que se encontra, de modo claro, direto, duro e consistente, a solução do mistério.

Para que haja interesse dramático em uma novela policial é necessário que exista, no mínimo, além do imprescindível crime misterioso, uma coleção mais ou menos sortida de suspeitos sem culpa formada, sobre os quais nenhuma acusação se poderia formular. Em consequência, continuam soltos, atrapalhando o mais que podem a ação da polícia. O detetive seguirá pistas falsas, embrulhar-se-á, cairá em armadilhas habilmente urdidas. Até que, ao cabo de 250 páginas, a ação se esgota, os recursos do criminoso esgotam-se, as faculdades inventivas do autor também se esgotam, a nervosa expectativa do leitor já se acha quase esgotada – e então o mistério é esclarecido e o romance acaba.

Mas no Brasil as coisas não se passariam assim. Se o romancista não quisesse fazer obra inteiramente falsa, sem qualquer possibilidade de convencer o leitor, deveria criar sua hipótese dramática de acordo com o que de fato aconteceria no caso de um crime real: a polícia começaria prendendo todos os suspeitos. Haveria, quando muito, uma trágica descrição de espancamentos, interrogatórios, torturas físicas e notícias berrantes nos jornais.

Isso foi escrito no longínquo ano de 1953 (p. 3). Do que se pode inferir o sentido do desenvolvimento nacional desde então. Segue, em todo caso, Luís Martins:

O que dá vida, interesse dramático e consistência à novela policial é um jogo sutil de raciocínio e brilho mental, a luta surda e ágil travada entre o investigador e o criminoso. Como se fosse uma dança, em que os dois se perseguem, se esquivam, se abraçam e se confundem.
Vê-se, desde logo, em que impossibilidade esbarraria o romance policial no Brasil e em outros países, nos quais os processos criminais não sejam orientados pelo maior liberalismo, nos quais não se admita, no suspeito, um possível inocente, em vez de nele se pressupor – como é de uso entre nós – um criminoso potencial. Não importam os textos dos códigos de direito penal, porque o que interessa não é a aparência formal e teórica das leis, mas, sobretudo, uma questão de aplicação prática das mesmas. (pp. 8-9)

A conclusão, que o autor adiantara uma página antes, não poderia ser mais reveladora:

A novela policial só pode se desenvolver em países cujas instituições políticas e jurídicas se baseiam em normas essencialmente democráticas, isto é, em que haja um verdadeiro respeito pela pessoa humana. (p. 7)

Não há literatura policial no Brasil porque não há e nunca houve verdadeiro respeito pela pessoa humana. Daí haver tanta brutalidade, tanta barbárie, tanta violência, tanta indiferença. Sem que disso se possa criar uma literatura policial. Não porque no Brasil não haja crimes. Mas porque no Brasil há crimes demais.

Os maiores índices mundiais de mortes em assaltos, os maiores índices mundiais de mortes pela polícia, os maiores índices mundiais de mortes por armas de fogo, os maiores índices mundiais de mortes no trânsito, os maiores índices mundiais de mortes por erro médico (sem que a maioria sequer seja notada e notificada: trata-se, portanto, não de um dado estatístico, mas de uma conclusão lógica – informada, em meu caso particular, por longos cinco anos de estudo de medicina). A morte violenta, no Brasil, é cotidiana e banal. O que se explica pela falta histórica de cidadania, que por sua vez aclara o quanto a democracia formal brasileira não passa disso – enquanto se explica e se aclara a inexistência do gênero policial.

Não é, afinal, tão misterioso. Pois tem o mesmo motivo de não haver nenhum Prêmio Nobel brasileiro. Nem haver ficção científica. Ou sistema ferroviário. Sistema político decente. Sistema de saúde decente. Escola pública decente. Judiciário verdadeiro. Verdadeira polícia. Estradas seguras. Segurança pública. Impostos razoáveis. Juros razoáveis. Preservação ambiental. E um interminável etc. E o motivo é simplesmente este: o Brasil é um país de merda.

Só não é mais evidente, apesar de tudo, porque a merda está recoberta de sangue.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).

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