“Ó Mesa, meu consolo e minha consoladora,
mesa que me consola, onde eu me consolido”
Não será percorrendo as vias dos homens ilustres que encontraremos, na virada do século XIX na França, um poeta [1] que nunca se reconheceu entre os surrealistas, poetas de vanguarda que passaram a ocupar, pouco tempo depois, a cena literária. Mas Francis Ponge, nascido na região do Languedoc em 1899, escreveu uma obra reconhecidamente fundamental para a poesia de hoje. Seu trabalho é uma interrogação sobre a linguagem, e tem proporção ética no sentido em que apresenta preocupação com o homem e com as coisas do mundo.
Ponge trabalhou com a letra de forma radical. Seus escritos abrem espaço para a palavra estabelecida em uma dimensão de objeto – objeto verbal. O que ele nomeou como objeu foi traduzido no Brasil por “objogo” [2], vocábulo que busca dizer o objeto e o jogo com uma linguagem em que também está inserido algo de perda.
Constantemente sentado diante de sua mesa e escrevendo atento às raízes das palavras, buscando o que ele nomeou como “o mundo mudo” [3], ou melhor, pesquisando de forma delicada e insistente no dicionário de Littré [4] em uma prática interminável com a língua, Ponge, ao mesmo tempo em que escreve, desbrava novas possibilidades para os vocábulos que tomam lugar na página. O poeta e sua mesa passam a traduzir algo dessa experiência que se coloca como um não saber. Cito:
Velando desde o jantar de ontem à noite (O que estou dizendo?). Por assim dizer, não deixei minha cadeira de braços, tão penosa para o cóccix, com os joelhos mais altos do que a cabeça, os pés em cima da salamandra […], só agora me sinto pronto para molhar a pena na tinta, sem muito saber o que vou escrever (“L’eucalyptus”, 31 de agosto de 1943, 3 horas da manhã) [5].
É de experiência que se trata esse esforço contínuo de escrever. Como se estivesse detalhando um pouco de seu movimento, Ponge escreve e descreve a implicação do próprio corpo no corpo do texto. São inclusive os seus incômodos e dores que traduzem algo dessa tarefa. O que se observa, de fato, é que a obra pongiana dá um testemunho até mesmo irônico de seus esforços, já que a escrita é para ele uma obrigação de sempre escrever, até mesmo contra ela. Sabendo, de antemão, que “a máquina de escrever” (na época bastante utilizada) participa e trabalha para pôr na página as múltiplas tentativas da escrita, as rasuras e os erros.
No entanto, considera-se que as sílabas e as letras comparecem no ofício de escrever, impondo-se a partir das sonoridades e rimas (internas). Elas se apresentam em ritmo e na tensão que o texto comporta, que se estabelece inclusive na leitura, no manuscrito que vai se tornando uma tela de escrita. À semelhança da pintura – na qual se destacam as várias camadas de tinta –, nessa prática destaca-se também o que vai tomando forma e se juntando ao texto, com as letras escritas à máquina e as escritas à mão, nas muitas etapas do escrever.
A caneta tem ainda alguma coisa de seu sentido latino, esse prolongamento da mão que grava as palavras e os pensamentos lembra o buril que gravava as inscrições e as estelas [6] […] “Aqui eu mudo de pena em sua honra”, escreveu Ponge em “L’eucalyptus”. O manuscrito pode nesta ocasião tornar-se uma verdadeira tela escritural em que as palavras, as tonalidades da tinta, as formas e as qualidades do papel, as cores também jogam com suas relações como os toques no trabalho do pintor [7].
Nesses momentos de passagem o poeta invoca a invenção em sua materialidade. No detalhe desse fragmento citado, destacam-se as palavras de Ponge: “Ici je change de plume…”. Exatamente aqui o poeta muda de caneta… e o tom da escrita saboreia essa mudança anunciada. Com um gesto, ele conforta o trabalho e pontua o exercício, testemunhando-o.
Percebe-se o lugar dado à materialidade da língua. Um lugar de amor ao texto e às raízes das palavras em seu sentido latino, tanto quanto um lugar de matéria e, portanto, ao que é essencial e sólido. Diríamos ainda que o buril, a pena e a caneta confirmam o esforço da mão que traça os caminhos, assim como nas primeiras inscrições feitas na pedra.
Francis Ponge e sua mesa. Em um recorte deste seu momento de trabalho, cito-o: “Mesa, venha te colocar…/ Lembres, mesa, em meu pulso esquerdo” [8] […] “Mesa, hoje venha me ajudar a te colocar em questão, a receber de ti tua lição” [9]. Uma mesa a cada momento de escrita, diria ele depois, “uma mesa cada noite, continuada e corrigida cada manhã seguinte”.
No desenvolvimento dessa narrativa desenrola-se o que podemos nomear como a “bobina da memória sensível” [10], um “prazer que procura o desenrolar da bobina” [11], fato conhecido e nomeado por Freud. É desse fio que deslizam cenas antigas de momentos sob a mesa com lembranças interrompidas: uma noite com Helena (sua irmã), uma grande mesa de madeira branca, na cozinha, um momento no qual ele foi fotografado por seu pai. Datas diferentes passeiam de 1922 e 1923 a 1940, no final de uma temporada em Montmorency.
Recupero um aspecto do “jogo da bobina”, no qual nasce alguma distância possível entre a mãe e o bebê. Conforme sabemos, nele a criança experimenta algo da separação. A criança parece ver “no estupor da espera sobre o fundo da ausência materna” [12]. É desse momento fundo de ausência, segundo Georges Didi-Huberman, que a criança olha o objeto concreto com o qual brinca – carretel, boneca, cubo ou lençol, que está ali exposto ao olhar – e reconhece um objeto ritmado. Na repetição inserida está a cena freudiana de “Além do princípio do prazer”. E reconhecemos, da mesma forma, o jogo de linguagem que insere a criança no mundo como se fosse um espaço no qual, de verdade, se oferece um brincar com alguma distância entre ela (a criança) e seu brinquedo, supostamente no lugar da mãe, essa que até então era a referência primeira de vida para esse infans.
Ponge escreveu A mesa durante sete anos, a partir de 1967. Parece-me que o poeta escreveu seu objeto, mesa, no ritmo que a “sua mesa” lhe impôs. Em 7 de junho de 1971 ele anotou:
Eis para que
é preciso começar
pois eu o sei
agora, por
experiência várias
vezes renovada:
é a madeira e sua
sonoridade que
surgem para mim
cada vez que
sonho outra vez à mesa [13].
Pode-se crer que Ponge organiza, nesse jogo com a mesa, algo primordial de seu trabalho: repetição e ritmo. Diremos que é nesse movimento que buscamos conhecer um pouco mais a partir de seus versos, e onde encontramos o poeta sentado trabalhando diante de sua mesa – essa que também lhe apoia o corpo e que lhe ensina algo da matéria, da madeira, das pernas firmes no chão, na distância mínima com o objeto que lhe sugere sonoridades na hora da escrita, nessa postura que lhe dá a diferença entre a verticalidade do corpo do homem e a horizontalidade da mesa, a qual comporta também a posição presente para a vida humana na hora da morte, mas não só. Um homem e sua mesa se inserem no “objeto-em-jogo”. Percebe-se a forma como a mesa é afirmada, como aquilo que o ajuda a sonhar e que o instala, diariamente, na experiência com a escrita. O fato não é novo, mas se a obra implica a perda e disso algo resta, estamos no quadro antes reportado no jogo do Fort-Da (“Longe, ausente/ Aí, presente”). Pois, instalado no ritmo de escrever, o poeta no vaivém da letra se compromete com algo recolhido do universo literário e, sobretudo, com a singularidade do gesto de um corpo habitado nesse ofício e carregando uma história.
A partir de uma mesa, ali mesmo onde ela se mostra para o corpo do poeta – no seu horizonte visível –, ele escreve proemas, esboços, rascunhos. Na primeira sílaba da palavra table Ponge encontra a sonoridade da madeira, o som “em xeque” conforme ele diz: “ta”. Logo a seguir, a terminação muda da palavra lhe anuncia um aspecto presente em suas preocupações, pois o coloca diante do “mundo mudo” com a letra não pronunciada, o “e” da sílaba final que carrega algo de perda. Mas, ele reconhece, também há nessa experiência um desejo que se impõe na relação presentificada com “a mesa” uma vez e outra vez. A mesa, igualmente um objeto no qual reconhecemos o objeto “a” lacaniano em uma sonoridade ritmo que se instala na obra, tanto quanto se esvai para fora do corpo do poeta através da letra que se inscreve (esse mínimo pontual).
E nota-se a perseverança do escritor nisso que conseguimos perceber como da ordem da angústia, que para qualquer sujeito pode vir a operar um movimento, causa de desejo. Não é por acaso que Ponge nomeia a sua mesa como ocupando um lugar de consoladora, assim como sua mãe o foi. Ele diz: “(Eu vou à minha mesa), eu vou aí como à minha mãe, à minha consoladora” [14]. Uma mesa de palavras pode-se bem perceber, observando também que na Idade Média “consoler” significa réjouir, ou seja, se alegrar [15].
Termino relembrando Lacan no Seminário 11: “o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda do seu berço –, isto é, um fosso em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto”.
Um poema de Ponge
La Bougie de Francis Ponge (sophie delouche)
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Notas:
[1] Francis Ponge publica seu primeiro livro, Douze petits écrits, em 1926. Havia escrito poemas esparsos antes, publicados na revista Le Mouton Blanc.
[2] Termo cunhado por Leda Tenório da Mota em seu livro Francis Ponge, o objeto em jogo. São Paulo: Iluminuras, 1999.
[3] “O mundo mudo é minha única pátria”, chegou Ponge a afirmar, na condição de pesquisador da origem das palavras e das coisas.
[4] O Dicionário da língua francesa de Émile Littré lhe foi legado pelo pai e tem muita importância em sua vida de escritor, pois Ponge se dedica a trazer as raízes dos nomes tanto quanto a copiar, nas páginas dos poemas, as etimologias discutidas.
[5] No original: “Veillant depuis le dîner d’hier soir (Que dis-je?). Je n’ai pour ainsi dire pas quitté ma dure chaise fauteuil, si pénible au coccyx, les genoux plus haut que la tête, les pieds au sommet de la salamandre […], je viens seulement de me sentir prêt à tremper la plume dans l’encre, sans trop savoir ce que je vais écrire (“L’eucalyptus”, 31 août 1943, 3 h du matin)”. Ponge apud Bernard Beugnot, Poétique de Francis Ponge. Paris : Presses Universitaires de France, 1990, p. 107.
[6] Estelas são monumentos líticos (de pedra) normalmente esculpidos em um só bloco, contendo representações pictóricas e inscrições. Como exemplo, as estelas maias. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estela. Acesso em: 26 mar. 2007.
[7] No original: “Le stylo tient encore quelque chose de son sens latin, ce prolongement de la main qui grave les mots et les pensées rappelle le poinçon qui gravait les inscriptions et les stèles. […] ‘Ici je change de plume en son honneur’ écrit Ponge, dans ‘L’eucalyptus’. Le manuscrit peut à l’occasion devenir une veritable toile scripturale où les mots, les tonalités d’encre, les formats et les qualités de papiers, les couleurs aussi jouent de leurs rapports comme les touches chez le peintre ”. Beugnot, op. cit., p. 108.
[8] No original: “Table, viens te placer…/ Souviens, table, à mon coude gauche”. Ponge, La table. Paris: Gallimard, 1991, p. 15. [São Paulo: Iluminuras, 2002]
[9] No original: “Table, aujourd’hui vient m’aider à te mettre à la question, à recevoir de toi ta leçon”. Ibidem, p. 16.
[10] Termos definidos por Georges Didi-Huberman ao falar de memória em seu livro O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1988.
[11] Georges Didi-Huberman, “O dilema do visível, ou o jogo das evidências”, op. cit., p. 62.
[12] Ibidem, p. 80.
[13] No original: “Voilà par quoi il/ faut commencer/ (car je le sais/ maintenant, par/ expérience plusiers fois renouvelée:/ c’est le bois et sa/ sonorité qui/ surgissent pour moi/ chaque fois que je/ re-songe à la table”. Ponge, La table, op. cit., p. 65.
[14] Ibidem, p. 69.
[15] Relembro que o “se alegrar” é o que o poeta buscava com o seu objeu e esclareço: alcançar o objoie. Comentário feito por Jean-Marie Gleize em pesquisa para o Prefácio de Comment une figue de paroles et pourquoi. Paris: Flammarion, 1997, p. 36.