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Vida e poesia em Diane Wakoski

Wakoski é uma poeta muito prolífica que possui mais de 40 livros de poesia publicados. Inspirada por poetas norte-americanos como os grandes William Carlos Williams e Allen Ginsberg, há no seu trabalho também alguns momentos que ecoam a poética de Sylvia Plath; mas acima de tudo, sobressai a originalidade da sua própria voz, construída por sua forma singular de juntar vida e literatura.

Desde 1976, esta californiana reside em East Lansing, Michigan (onde é professora da Universidade de Michigan), uma mudança que parece ressurgir na sua poesia trazendo, como outra grande temática recorrente, a questão do encontro do sujeito (muitas vezes, ela mesma) com o lugar,e as relações com paisagens ao mesmo tempo naturais e humanas, e principalmente – seja o deserto, o jardim ou a cidade de Las Vegas – existenciais.

Pesem as ressalvas que ela diz ter em ser identificada como uma poeta “feminista” (“One of the reasons I have not been wanting to be called a feminist poet is that the label seems to lump all women writers together, as if we have a common message. I am not even sure that I have a message, but if I do, it is full of contradictions and paradoxes and perhaps even baffling”[1]), sua voz articula, à sua maneira – observando, sentindo, se permitindo todas as viagens possíveis, sem exigências de “coerência ideológica” – um olhar sobre a vida desde uma perspectiva muito forte (irônica, tragicômica talvez) de sujeito-mulher.

Os quatro poemas que apresentamos aqui em forma de traduções do inglês refletem alguns dos diferentes momentos na vida e na poética de Wakoski. Os dois últimos pertencem a um trabalho da poeta composto por 4 volumes (Archeology of Movies and Books), pelos quais passeiam personagens, figuras alegóricas e temáticas tecidas a partir da biografia da poeta, que surgem e ressurgem ao longo desta obra, estabelecendo um fio condutor que liga um livro ao outro. Prevalece neles uma linguagem quase cotidiana, coloquial, mas metaforicamente rica; os personagens construídos remetem a uma longa história que vai desde as mitologias clássicas até a cultura de massas atual e suas estrelas de cinema. Emerge assim uma densa poética do cotidiano, na qual cada coisa, por “banal” que pudesse ser, se carrega de um significado existencial profundo – não sem abundante uso da ironia e uma atitude frequentemente brincalhona – que conduz simultaneamente a reflexões de caráter filosófico (como, por exemplo, sobre o que é o “real”, ou sobre o caráter inseparável de corpo, matéria, pensamento, imaginação e memória). Assim, oferece a suas leitoras e leitores amplas possibilidades de identificação, e nos ajuda a sentir, pensar e “ressignificar” nossa própria passagem por este mundo de mulheres e homens, pelos espaços e tempos da vida na Terra.

A CASA DO CORAÇÃO

Meus sapatos são duas caixas
de camurça,
pisoteando os corredores até Nut,
do Egito,
dama da noite, alta, com finos dedos de pé
e o zodíaco na barriga.
Dentro da minha cabeça desliza uma serpente
por baixo da minha cama confortável; eu sonho
para compensar o cérebro vazio. O sol
nasce sobre pernas bambas, finas como
vagem nova,
e minha música é a mesma melodia triste.
a casa do coração
onde a música mora,
onde descansa de noite
na sua tigela de sangue morno;
a casa do coração que dá sempre
as boas-vindas aos visitantes
da Lua, e aos do Sol,
algumas vezes,
desde que tirem os sapatos.

Meus sapatos carregam meu peso
traduzindo meus ossos em palavras,
levando o sangue ao correio em envelopes
para enviar ao mundo. Afundo agora
com aroma de especiarias nas narinas,
com o coração embrulhado em seda para que
não murche
antes que a Verdade o pese na sua balança.
Meus sapatos me acompanharam todo o caminho,
minha viagem pelo reino dos besouros
– as larvas lambem o bolo dos meus dedos,
o bolo que eu dava para os patos a beira rio,
suas cabeças verdes brilhando sobre as palmas das minhas mãos
como sementes oleosas,
com seus bicos prontos para gravar suas palavras no meu coração que
poderia lhe dar um conteúdo sagrado e lhe ajudar
na balança da Verdade.
Meus sapatos com suas pontas quadradas e desengonçadas
seguram meus pés desengonçados. Já andaram,
nunca dançaram, andaram comigo para todo lugar.

Sol, entre na casa do meu coração.
Tire seus sapatos incendiados. Nem os deixe
tocar na entrada. Suas flamas extinguiriam-se
ainda antes de passar pela porta.

Lua, entre na casa do meu coração.
Tire seus sapatos. Bate na porta com o aro prateado.
Passe por cima da entrada como o fruto do lichee
rodando por minha garganta.
Entre no corredor escuro com uma vela, com uma luz
prateada, com uma gota de óleo de hortelã quente
na sua língua fresca. Venha, Lua. Entre. Mas seus sapatos prateados,
tem que deixá-los do lado de fora
da casa do meu coração.

(do livro Inside the Blood Factory, 1968)

Tradução: Miriam Adelman

Poema para o Homem que Dirige um Esfinge e Faz Todos os Donos de
Ferrari Chorar de Inveja

Você, sempre excedendo a velocidade
correndo nas suas patas de felino
sobre as estradas do deserto.
Suas garotas
vestem casacos transparentes
feitos de gotas de chuva:
meigas e nuas, elas
somem
no deserto
e voltam com pó
de canela nos lábios
e tornozelos,
lhe enviam mensagens
dentro de sementes
de cardamomo com cheiro
da Arábia.

Estou aqui sentada
na minha adoração,
meu amor por mecânicos e condutores
de boas maquinas,
sabendo que os veículos antigos
são frequentemente os mais elegantes,
me perguntando quantos vizinhos
belos & bizarros
descobrirei ao longo dos anos
habitando o deserto do Egito

Há muito tempo
que jogo o tarot
e monto nua no meu okapi
passando Tanzânia ao galope,
entrando nos bares dos operários
onde todos os amantes são poetas
e os diamantes traem seus donos,
onde a esperança é um tubarão do mar
e a tentação, um mito.

Este é um bilhete para lhe dar
as boas-vindas às vizinhanças,
para lhe dizer que é um prazer
vê-lo
indo a toda velocidade
conduzindo seu esfinge,
para lhe dizer
que espero que goste deste país,
para lhe oferecer um convite
para que a qualquer hora
que você passar por aqui,
venha tomar um drinque/
deste mar,
nossa poesia.

(do livro Waiting for the King of Spain, 1976)

Tradução: Miriam Adelman

 

Medeia, a sacerdotisa

Ela está na Casa da Mãe Solteira em Pasadena,
a única menina que lê poesia. Ele escreve pra ela
do internato, ela decora os sonetos de Shakespeare
enquanto se exercita
no pátio poeirento
da Casa.

Magia alguma muda sua vida.
Ela ouve da Assistente Social que
ERROU porque
ainda ama J
não se arrepende de nada que fez por amor
não acredita que é má
não se culpa por desistir do bebê
crê que a vida seguirá seu percurso, assim como
sempre seguiu
não vai falar sobre seus erros.

É o mesmo que estar no deserto,
a vidinha na sala com chão de linóleo,
comendo com garotas estupradas pelo pai,
e garotas que foram pegas, mas ninguém sabe com quem,
e garotas de só 13 anos
e garotas que eram enfermeiras dormindo com doutores
e garotas que queriam esquecer de tudo e entrar pro exército,
garotas todas grávidas e envergonhadas e que sabiam estar vagando por algum deserto, mesmo que a maioria delas,
a maioria de nós, não soubesse
o nome das serpentes do deserto, nem de mariposas como a Dusty
Silverwing, nem
sobre as tocas estreitas das corujas, ou o aroma persistente da artemísia,
quando a noite estava limpa, limpa como a gente sabia que ainda era.

Então, se ela fosse Medeia, quando as cartas dele chegassem
falando como quem não quer nada de encontros com outras garotas,
que não estavam grávidas,
decidiria que não resta mais escolha. Ela
o mataria, e mataria os filhos, e igual à Sacerdotisa
partiria para outro mundo, em sua carruagem tocada por dragões.

Ela desistiu do bebê. Sem remorso. Só os fracos têm
remorsos. Ela voou em sua carruagem com todo seu poder de dragona para Berkeley,
daí Nova York, então o Meio-Oeste, e finalmente esse Café
onde senta contando a lenda, não da tribo,
mas dela mesma, e a despeito do que os outros dizem, ela sabe
que a canção, que essa Dama Andante da Luz do Dragão
em busca da Lua Prateada canta,
é a lenda de pelo menos metade
da tribo.

Toque seu instrumento, Pistoleiro.
Aclame, Maximus.
Ascensão é queda, Dr. Paterson,
Oh, Amor, poeta caolho, aonde me leva agora? Ninguém
deveria
Estar na Casa da Mãe Solteira. Verdadeira Terra
Desolada.
Essas cartas, que não são cantos, que não são canções, vão para o Craig,
Cavaleiro da Luz do Colibri,
pro Jonathan que entende o mito da mulher que
“Dorme nas
Chamas”
Para o Homem de Aço, meu marido, que me ama nas noites em sua
invisível Capa
de Escuridão,
e para todas as mulheres, a outra metade da tribo,
pra Eva que se atreveu comer a maçã, eu escrevo essa carta
e eu também assino
Diane

A Dama da Luz.

(do livro Medea the Sorceress, 1991)
Tradução: Sabrina Lopes.

O Velho Jasão em San José

(Key, Key, What Bird Sings that Song?)
(Key, Key, que pássaro canta assim?)[2]

Lá vive ele, entre os chips de computador
e uma grande população vietnamita. Seu nome aparece
em aparelhos de som caríssimos mas eu duvido que seja
a sua
a família proprietária da empresa. Nem sei mais como se sobrevive
com cachorros azuis latindo para a lua. Eu imagino
Stone Key, onde preparam uns caranguejos deliciosos
e penso que poderia dirigir pela longa cadeia dos Keys,
conectadas por pontes que serpenteiam
que me dão alucinações, as grades irrompendo nos meus olhos,
querendo me chamar à água. Mas também me atraem
os lugares onde homens e mulheres se distorcem; como
poderia não aprender sobre imagens
no quarto escuro fotográfico de adolescência
na Califórnia?
Eu pensava que estava procurando a verdade
mas quando a encontrei eu fiquei tão horrorizada
que me encerrei neste quarto no Meio-Oeste
com muitas janelas, nenhuma cortina e sem a chave. Nenhuma
necessidade de sair de novo
para o mundo.
Eu me disfarço
reclamando da idade, ponho minha
máscara de velhinha para obter
credibilidade para minha vida neste quarto. Me protege
dos constrangimentos, as rejeições, os fracassos denegados
dos encontros sexuais.
É esta uma face
da estória. A outra, a verdade
terrível sobre o que as mulheres perdem
com a idade, os cachorros azuis que latem
para a lua,
– a raiva de Medeia quando Jasão arruma uma jovem –
enquanto os homens continuam suas aventuras;
ele mora em São José com sua esposa
e filhos, provavelmente até netos, e continua
tendo tudo.
As constelações viram,
dois leões nascidos
com apenas umas horas de diferença,
um destino de macho, outro de fêmea.
É esta a chave? A diferença entre duas vidas
que começaram entre as laranjeiras da Califórnia,
as folhas poeirentas contra a fruta dourada.
Ele as possuía, eu as comi.
Pode esta diferença ser a chave
de tantas estórias?

(do livro Jason the Sailor,1993)

Tradução: Miriam Adelman

Wakoski,  Medea the Sorceress, p.111

O verso é uma referência ao poema Sun (1963), do livro Emerald Ice: Selected Poems (Wakoksi, 1988). Nesta tradução, me vi obrigada a abrir mão do jogo que Wakoski faz com a palavra key – algumas vezes, “chave” (objeto concreto ou metafórico), outras vezes, em referência às pequenas ilhas próximas ao litoral do estado da Flórida que levam esse nome. E também empregada de forma autorreferencial, remetendo-se ao poema citado assim como  à toda a obra da poeta, na qual chave/ chaves são um elemento metafórico recorrente (agradeço a Sabrina Lopes por sua acertada insistência neste ponto).