Fernando Pessoa publicou apenas um livro de poemas em vida, Mensagem (1934). O restante de sua vastíssima obra é, portanto, póstumo. Por “vastíssima” se entenda a quantidade de 27 a 35 mil textos (os cálculos variam, principalmente devido a textos inacabados e aos possíveis agrupamentos de alguns), descobertos nos anos 1950, em seu famoso “baú”. O que não se entende, à primeira vista, são os motivos de tal obra haver permanecido inédita por tanto tempo (Pessoa morreu em 1935).
Há quatro motivos principais. O primeiro era a própria personalidade de Fernando Pessoa, que apesar de se relacionar com outros poetas da época (como Sá-Carneiro e António Botto), de publicar críticas em revistas literárias e mesmo a sua própria revista (Athena [com Ruy Vaz], Lisboa, 1924-1925), era um recluso, que não participava tão ativamente do meio literário português da época. O segundo, esse mesmo meio literário, ou melhor, a cultura portuguesa da época em geral, dominada pelo conservadorismo e pelo provincianismo, num país bastante atrasado em relação ao restante da Europa Ocidental, inclusive em termos sociais e econômicos: agrário, desindustrializado e com influência sufocante da Igreja Católica, que controlava praticamente todo o sistema de ensino. O terceiro motivo era o ambiente político. No contexto do reagrupamento e à reação da extrema direita europeia pós Revolução Russa, que levaria Mussolini ao poder já em 1924, Hitler em 1933 e Franco em 1936, houve um golpe militar em Portugal em 1926, liderado pelo general Carmona, que aboliu a Constituição liberal de 1911. Ele seria seguido pelo famoso e infame governo de Salazar, a partir de 1933, de inspiração claramente fascista. O quarto motivo foi o reflexo de tudo isso nas artes portuguesas em geral e na literatura em particular. A obra de Fernando Pessoa era, em inúmeros aspectos, moderna demais para seu próprio país (basta pensar nos poemas assinados por Álvaro de Campos).
Além da grande modernidade de parte importante de sua obra (vasta demais para ser apenas uma coisa), havia a questão do predomínio de outro conservadorismo (à esquerda) na poesia da época, dominada pela grande influência dos comunistas e sua exigência de uma arte “engajada”, de cunho sociopolítico. E isso a obra de Pessoa jamais foi.
O que não impediu que Pessoa escrevesse poemas, obviamente então desconhecidos, explicitamente antisalazaristas, modernos no uso de versos curtos, de palavras pouco “poéticas”, de rimas e metáforas incomuns, do tom satírico e de jogos de palavras (“salazar / sal e azar”) – provando mais uma vez, como se ainda necessário, que os comunistas, em arte (assim como na política) estavam errados: não é preciso ser conservador na forma (na verdade, ao contrário) para ser anticonservador no significado.
O Brasil pós-modernista, em comparação, era um país, apesar de tudo, muito mais moderno (numa relação, portanto, inversa à de hoje, em que Portugal é um país novamente sintonizado com a cultura europeia de seu tempo, enquanto o Brasil – na “vanguarda do atraso” – apodrece no pântano de sua própria estagnação). Foi, portanto, no Brasil pós-modernista que Fernando Pessoa começou a sair do verdadeiro anonimato, para não dizer indiferença, em que a modorra portuguesa da época (que duraria até a Revolução dos Cravos de 1975) o metera, como um imenso baú de silêncio envolvendo o grande baú de seus textos. A primeira edição de (parte) de sua obra foi feita pela Aguilar, no Rio de Janeiro, em 1960. E foi a partir dessa edição, muito lida e estudada a partir de então em Portugal, que Fernando Pessoa voltou de seu exílio interno.
Mas as consequências continuam. Por exemplo, o relativo desconhecimento, até agora, de seus poemas antisalazaristas.
António de Oliveira Salazar
António de Oliveira Salazar
António de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequência regular…
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Pica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…
Coitadinho
do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Este senhor tão cruel
É feito de maldade
Se um dia nos revoltarmos
A água avermelhar-se-á
O ar purificar-se-á
E sob a nossa alma
Fica só esperança
Oh, que nos liberte
Parece que nunca mais acaba.[1]
Mata os piolhos maiores
Mata os piolhos maiores
Essa droga que tu dizes.
Mas inda há bichos piores.
Vê lá se arranjas veneno
(Ou grande, ou médio e pequeno)
Para matar directrizes.
O rei reside em segredo
O rei reside em segredo
No governar da Nação,
Que é um realismo com medo
Chama-se nação ao Rei
E tudo isto é Rei-Nação.
A República pragmática
Que hoje temos já não é
A meretriz democrática.
Como deixou de ser pública
Agora é somente Ré.
E o Salazar, artefacto
E o Salazar, artefacto
De um deus de régua e caneta,
Um materialão abstracto
Que crê que a ordem é alma
E que uma estrada a completa.
Não há poesia nele
Ai, nosso Sidónio Pais,
Tu é que eras português!
Um materialão abstracto,
Vive na orgia do exacto
Manda o país penhorado
Por uma estrada melhor.
Dizem que o Jardim Zoológico
Dizem que o Jardim Zoológico
Tem sido mais concorrido
Por prolongada assistência
Atenta a cada animal.
Mas isso que é senão lógico
Se acabou
A concorrência
Porque fechou
A Assembleia Nacional.[2]
[1] Acessível em: https://prezi.com/wtkm1fg0gy4_/antonio-de-oliveira-salazar-fernando-pessoa/.
[2] Acessível em: https://zarpante.wordpress.com/2013/11/07/poemas-anti-salazaristas-de-fernando-pessoa/.