org. José Ramón Sánchez
trad. Rodrigo A. do Nascimento e Mariana Ruggieri
Blitzkrieg (apresentação)
Há poetas que ganham por pontos e poetas que ganham por nocaute. Há poetas passivos que esperam que uma correnteza os carregue e outros que fazem barulho e estardalhaço em meio à mais presunçosa delas. Como uma guerra relâmpago (Blitzkrieg), queremos colocar no Brasil a poesia cubana de hoje. Uma poesia que não entedia, porque fala a linguagem dos livros e do povo. Nocaute – porque não deixamos o desfecho da luta na mão dos árbitros corruptos do curral literário: os que te tiram da briga para entregá-la a alguém tão débil quanto eles. Em Cuba, sabemos que os boxeadores às vezes têm que cair de revés, contando até mil. Páginas que não desperdiçaria com a indiferença da correção lírico-insular. Batemos com tudo. Tão duro e tão rápido que o leitor dirá: “Se não é isso, não sei mesmo o que poderia ser a poesia cubana de hoje”. Outras versões dessa poesia são possíveis; esta se fecha em um punho, porque a mão que bate é a mão que acaricia. Se o PIB dos países dependesse do valor de alguns poetas, Cuba seria um país de primeiro mundo.
- R. Sánchez, Guantánamo, abril de 2017.
Oscar Cruz
Santiago de Cuba, 1979
A Mestrança
como teu nome indica, Daiana
és uma puta, mas não uma puta qualquer
domina como ninguém o sax e cuida
com esmero das meninas
nas tardes na zona a escutava soprar
para os homens que sustentavam seus encantos
uma noite, perto da minha casa, e cheia
do álcool que bebia aos domingos
Daiana me chamou: “Ei, rapaz
tens o sorriso e o descaramento do teu pai
tens o horror daquele grande filho da puta”.
não respondi
logo depois caímos na cama
ante meus olhos, abria as pernas em V
e esfregava com classe a fenda.
seu sexo de veludo se abria para mim como igreja
que começava a ser meu fundamento e minha envoltura:
“teu é o reino, dizia, recebe-o”.
apesar dos seus cinquenta, Daiana retinha
grandes traços de beleza, conservava
entre as pernas o encanto das ruínas.
suas tetas e nádegas eram duras
como são duras as nádegas e as tetas
de bonecas
penetrei em um Navio-Escola
que havia formado muitos homens.
uma Armada que anos antes
fazia as delícias de meu pai. “põe
no cu, dizia, põe rápido, caralho”.
minha cara de primeira comunhão a desatava.
eu a fazia explodir nesse quarto, mais
frequentado e barulhento que uma suja
terminal rodoviário de interior.
comecei a viver de suas aulas.
me ensinou esse sol do mundo imoral,
um sol escuro e destruído
em suas nádegas aprendi o caminho direito.
me comprava roupas e sapatos
e a mim se dirigia como a um chefe.
as meninas me chamavam de tio e eu era um não sei o quê
de quinze anos, que só sabia se masturbar.
seu tio, o iniciado, cuidava delas
para que a mãe fosse perfumada
ao trabalho.
logo me cansei de tudo isso.
“o corpo de uma puta é o bastante pra uma noite,
e se é ok, também pra uma outra,
mas não a acostume. Some daqui”,
disse meu pai
passaram-se muitos anos. nada fica
daqueles dias. apenas uma careta toda vez
que a saúdo: “boa noite, belezinha”,
e me passa para o quarto
a mais jovem das filhas.
Tramontina
INOX STAINLESS BRAZIL
tem Carmenza uma língua Tramontina
semelhante em qualidade às facas
que fazem no Brasil, sua língua está
pensada para o corte
mas nem sempre a dona foi assim
com apenas quinze anos se ordenou prostituta.
lavou e passou para a rua e na zona do Marimón,
foi a prima fodedora assoluta dos guardas
de Batista. prosperou e teve crédito com eles.
Logo se achou com um linheiro da United Fruit
Company. achou que era feliz e era
(tanto quanto o corno pode fazê-la).
anos depois,
o herói faleceu, e ela entregou seu amor
aos marxistas. três gerações de putas
a viram florescer. hoje é, para as meninas,
um modelo.
descaderada pela pica e pelos anos, Carmenza
dedica seus dias aos cortes. sua língua está
ocupada em cercar vidas alheias. sabe como
penetrar os interstícios. mostra nesse ofício
tanta habilidade como um maître açougueiro.
de noite,
costuma visitar uma Casa de Culto e prega
com paixão o Evangelho.
é o pouco que lhe resta
tratar de inculcar às novatas o valor
da sua teoria: “em lugares como este, o melhor
é ter um trampo e entregar-se ao Evangelho
pois uma passa a sua vida dando o cu
por dinheiro, e só o que consegue
é muita pica”.
O Bom Boneco
então menino meus pais me compraram um João-Bobo.
veja um boneco vazio de linguagem
que leva o contrapeso na base e que
socado com força em qualquer direção,
sempre termina por ficar de pé.
tinha um sorriso atroz e um olhar vazio.
passei muito tempo sentado
tentando derrubá-lo, mas nunca conseguia.
por mais que na cabeça o tenha socado
o rubro bonecão maquinava para ficar
de pé.
o jogo me tornou o Grande João-Bobo:
veja um sujeito vazio de linguagem,
que leva o contrapeso entre as pernas e que
socado com força em qualquer direção,
sempre termina por estar de pé.
isso não agrada aos mais velhos,
tão alegres e focados na arte de mandar.
sou para seu bem o Bom Boneco
se quiser comprovar como me endireito
soque minha cabeça.
linhadireta
ao menos cinco civis vieram
à última leitura de poesia
realizada por Oscar. o fato se deu
em uma livraria no centro de Santiago.
uma exposição de poemas porno-pop
que mancham a moral e os bons costumes
das pessoas decentes, culminou
em graves transtornos. os textos foram
destruídos por forças da OTAN
literária destas terras.
segundo porta-vozes, os ataques contra
comboios deste tipo de poemas
são frequentes nesta região do país.
o leitor insurgente
foi feito prisioneiro e transferido
para um campo de formação literária
onde já se encontrava J. R. Sánchez,
que causara semelhantes transtornos
na região de Guantánamo.
ambos serão submetidos
a duras penas que incluem:
o estudo rigoroso da obra de Lezama,
sonetos e elegias de Guillén e alguns
poemas liricoides, escritos por poetas
do Senado. (Informou a Agência EFE)
A Bela Poesia
rota da Bela Poesia Nacional,
semelhante à noite de São Silvestre
em Manaus, onde um barco carregado
com a high society internacional,
convidada para um bacanal sem precedentes
nos confins do Amazonas, naufraga
durante a noite, arrastando
os tripulantes à morte
nos meandros do rio.
hoje, enquanto leio com deleite sobre o sucesso,
tive a ideia de reunir em um grande barco
os membros mais notáveis
da Bela Poesia Nacional, como eco do naufrágio
ocorrido em Manaus, no ano de mil e novecentos.
trato de firmar estas ideias.
digo que os sujos poetas do Oriente
constróem desde já um barco
destinado a concretizar um holocausto
de grande luxo.
O que conta
o que conta é estar parado ali,
à beira das grades.
os cães diante de ti latindo.
cães treinados na arte de matar.
cães welters com mais de treze quilos
(gostava de estar ali). as pessoas que vêm
a esses lugares são interessantes.
Gente desapegada com um rosto sem vida.
gente que vem por amor: amor aos sapatos,
amor às roupas, amor ao desastre;
e o desastre com sua força começava
a me interessar.
os cães em sua essência eram belos.
mais belos que meus pais,
mais belos que Deus. tinham rubras línguas
e uma forma masculina de babar.
senti que minha vida estava ligada àquela baba,
àquela forma desprezível de olhar.
então tirei duzentos pesos
e apostei no cão-bosta, um cão que nunca
tinha brigado e brigaria contra um
que somava dezesseis.
um cão invicto e secular como um governo.
começaram a se matar,
as bocas produziam rastros de sangue.
instantes de puro prazer.
cães que brigavam pelo possível
e o impossível do homem.
olhava as grades e via rostos brutais
de gente alienada, feliz.
gente apostando em um cachorro sem vida.
ao fim de vários minutos
o cão em que apostara ganhou.
subiu sobre o outro latia uma e outra vez.
carregaram-no como a um herói e voltamos
em multidão para casa. íamos calados.
ouvindo como riem, como falam
os que ganham.
esta tarde soube o que era um perdedor.
vi o cão derrotado em uma caixa
à beira do caminho.
que importa que tivesse ganhado dezesseis.
a glória nesses lugares dura pouco.
e isso é o que conta.
pouco amor ou pouca vida não é tão ruim.
o que conta é saber que apostou.
que veio com eles até aqui,
que veio com a multidão pra enfiar os dentes
na carne envelhecida do amor.
De contestação
olhando uma briga
entre Antonio Margarido
e Many Pacquiao, tomo
aulas de poesia.
cada porrada é um poema
colocado com precisão
na cara do latino.
cada poema leva dentro hematomas,
torsões, cortes.
o poema como festa dos golpes.
mais de meia hora se castigando
na arena diante de uma multidão
que satisfeita os contempla.
cada detalhe não persegue outro fim
que não a beleza.
além disso,
todo o conjunto é bonito.
mas é bom que estejamos advertidos :
sorri o ganhador, sorri. seus poemas cortam.
sorri o perdedor, sorri. seu sorriso corta.
ambos carregam em si a resistência
de anos inteiros sem abrigo.
é por isso
que lutas de boxe e meus poemas
dão no mesmo.
é por isso
que as putas preferem quem ganha.
eu, que sou um perdedor,
subo todo dia na lona
em busca de prazeres.
lá fora, como de costume, uma multidão
ansiosa por torsões e hematomas
me contempla.
minha tarefa é fazê-los sorrir.
eles, em sua desgraça, são bonitos.
que importa vencedor ou vencido.
ao fim da festa, algum filho da puta dirá
que foram brigas sem brilho.
Jamila Medina Ríos
Holguín, 1981
Sé kodyanmkika maré yanm/
A minhoca está no fruto
Atrás dos microfones
um coro de militares radicais
volveu à esquerda
– Grândola, vila morena –
e à direita
– Grândola, vila morena…
com a garganta rouca das madrugadas
Sob a azinheira não de/rramaram sangue
ninguém lembra que cantaram primeiro
com a cabeça jovem descoberta ao vento:
Partir é morrer / Como amar
É ganhar
E perder.
Nos grandes frigoríficos
as floristas tomaram perfiladas seus craveiros
com cuidado pelas hastes congeladas
riscadas a faca
…desde mil novecentos e sessenta e oito
No furor do povo
ninguém se deteve quando escutou
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Hoje a imagem do canhão engasgado
pela carne do craveiro
floresce em excesso persistente.
Mas os capitães de abril
calculando, com moderada alegria
a pequena grande duração da primavera
se adiantavam ao cancro
que se aninha na seiva verde-vinho-branco / dos frutos
– e cortavam seus cabelos.
Tu vieste em flor, eu te desfolhei
(Tu venías en flor, yo te deshojé).
Ovação
Entro no submundo dos torcedores de futebol
como nos portais do Inferno – é claro –
tem risos gritos fumaça de cerveja
e esse odor tão característico…
tem torneios:
os torcedores pedem-se as cabeças
ameaça-se violar o cabeça
ou a noiva do cabeça
de cada bando contrário.
Tremo
me pergunto quem será o cabeça do nosso bando
sei que a essa hora
nenhum striptease os tirará do exaspero
os colocará na linha
com o olho no gol
mas também sei que se perdêssemos
se fosse você o cabeça
esquecido de si
me violarão 1-2-3 mil vencedores
não olhando minha carne
senão as traves.
Maldito corpo de mulher
com essa forma de falsa cerca
rede encoberta
que não tem o valor da penetração em público.
Afinal de contas
o que é um gol senão uma violação
cem mil vezes aclamada
– sob o céu –
na garganta aberta do estádio.
Horto
O útero
– com toda a sua carga simbólica –
pinçado
por pernas engarçadas
de tesoura:
incomparável a um braço
com um belisco em um braço
inclusive incomparável à boca
uma mordida na boca
O útero
aberto a receber a medusa-umbrela
o biombo tentacular
como a espinha dorsal de algum peixe frio.
Com que fim uma mulher abre as pernas
diante da língua dura do espéculo
e coloca ALI uma cortina de ferro.
Acompanhada pela música do amolador de facas
a mulher afia a filigrana de sua loucura
sexar sexar sexar
fechar abrir serrar
a passagem da respiração
tencionar os limites do gozo
chegar à borda escura.
A mãe extraída da puta
com a extirpação do horto
a mulher-a erma-gema
aberta-diluída
a receber sem perigo a gosma
como um furo na areia.
Pela tarde – na tarde desmaiada –
quando o útero vai regressando à sua matriz
como um cesto tecido de molusco
mesmo sabendo que não pode exercitar os membros
a mulher se abre provocando a entrar.
Que descompassado o pulso do amante
quando penetra e cede
a seda vermelha do hímen.
Que despreocupado agora
– o pescoço torcido do útero
selada a boca fria –
seguro
de que não terão braços que o puxem.
Quando a língua da medusa começa
suas cosquinhas indefesas
o amante sorri ainda com a cabeça erguida
e pega dentro – amordaçando –
com o peixe-martelo/ com o peixe-serra / com a mão aberta.
Às portas do horto
quem se atreve a chamar
com esse baque surdo?
Tateando
corada
ao redor do bálano brilhante
– como o fígado cru
como o fígado vermelho –
retraindo-se
como uma anêmona assustada
a umbrela
no compasso
crava e mostra as varetas
lambe
e perde sangue
se acomoda
e morde.
Um corpo próprio
Navegando na internet/ rumo a meu blog
com vontade de me exibir e de exibir
meu fitness
faço o aquecimento/ abrindo windows
onde feministas revezam com starlets:
Linda Lovelace/ Belladona/ MoanaPozzi
Océane/ Katja/ Tabatha Cash
e outras morenas da velha guarda
concorrendo ao Hot d’Or
tomando chá através das persianas
com Marilyn Chambers y Annie Sprinkle de-casaco-aberto
destra em seus malabares/ com os acessórios
de toda boa sessão
de hidromassagem.
Antes dos dias de exame
que prisão concentrar-se!
Então sentadinha/ como a enguia elétrica
me dou electroshocks com fragmentos de pornô
e mando twitters a meus fãs
com o telégrafo do bairro.
Estou sozinha em cas/ ma
morta de abulia estou/ atrás da porta verde.
Tenho aqui meus remos/ meu dedal/ minhas ferramentas
na estação de bombeamento/ minhas irmãs de trânsito
: a nado as pedi emprestadas.
Se erro e engravido/ nas provas de campo
também pegam seus fórceps
e servem de parteiras
me ungindo também/ com seu gel gelado
para que o grumo escape tranquilinho.
Desde 1963/ com a medalha do anticonceptivo
desde 1971/ quando fechei com as 343 piranhas
para levar à rua (com seus óculos de luxo)
meu abortivo doméstico
eu me sinto liberada/ me sinto cidadã
me levanto de noite nos busões vazios
para ceder lugar ao motorista.
Palpo/antena/tentaculário
Calada ausculto em minha música tranquila
que sobressai ao caos
ao coice dos dedos succionados
pelo rosa sedento.
Na umidade que paz encontrar
no sombrio no atraso na véspera
da centopeia de palpos
que abandona tremendo o batistério
que secura a que se agarrar que ocosidades
em que embutir a ventosa:
um (a)braço que afinque para afocinhar pra cima
corpo pelos ombros apenas
mão calosa em colunata
e os tocos das pernas
cimabaixo
e atrás e à frente balançados sem rédea.
Se não dou pé se não encontro às cegas o interruptor
a alça: cumbuca ou co(r)no aberto à lambida
se não amordaço as cabanas da noite
ou enterro dedos no pelo…
não solto prenda
não regurgito o salto.
Raspando de colher
os abrolhos
as gemas enfiadas em uma água de rosas
mãos entrando o manancial
duro séculos
mas
quando recolhem-se
os apeiros do dia
não fico quieta em mim:
temendo o dano
a língua rasteja nas paredes do cérebro
buscando um dardo e uma cerração
a escavadura
o esconderijo no outro
que racha o peito
de quem explora.
Em esta gruta estive já
peguei os dedos acesos
da vespa do mar
e rosa em chamas o centro
e rosa em chamas as gemas
que se escondiam de cabeça
no manancial de tais.
Há uma língua de desejo
que trago quando vêm os golpes
de espuma
e o corpo cripta se levanta
como uma aranha uma cobra
emasculada com um pau
um vespeiro de terra.
Para ver-me calar para ver-me cair
baixaram as pontes giratórias.
Palpo-ícaro-antena
me estico outra noite
buscando as pontas dos pés
o meio das costas sem lavar
a erma-gema branda do crâneo.
Se acalmará o anemonário
atiçado
pela aurora de casquinados dedos
ou haverá de sombrear as pontas
e estender a palma
como Lady Lazarus
cortando-os cair?
Eu só digo
para cada palpo
um tentáculo.
José Ramón Sánchez
Guantánamo, 1972
Um cavalo de Troia no Caribe
Lute sua guerra você mesmo:
o aliado de agora
se tornará logo
seu pior inimigo.
(Disse Stephen Crane
que os mambises estavam
gratos aos gringos:
gente que monta bons cavalos
e sabe depreciar os negros).
Os ingênuos mambises não puderam controlar
a ajuda que recebiam,
e os ajudantes se tornaram
mais protagonistas que eles mesmos
Guantánamo era especial por suas condições,
mas se não fosse Guantánamo
tomariam qualquer coisa.
Guantánamo é prenda pelo nosso compromisso,
o preço por manter os espanhóis
afastados para sempre.
Fim do turismo açucareiro no Caribe.
Que busquem mulatas no Marrocos.
Deem uma volta depois, quando tiverem
o longo chicote do euro
que nos faz felizes.
Surpreendido uma vez, surpreendido duas vezes
Os heroicos mambises só podiam lutar
contra um inimigo evidente:
no fim das contas
não é fácil resistir a um cavalo tão bonito.
O nariz adunco do semita
O nariz adunco do semita
é o nariz adunco do poeta
que com o dinheiro (escasso)
dos (indecentes) poemas
comprou um relógio Casio F-91W
e um punhal preto sem marca
nas lojas de Caracas.
O bastante para ser devolvido ao Gitmo
com status de “combatente inimigo”,
de qualquer lado da cerca.
Sabia-se culpado pelo punhal e pelos poemas.
Não sabia que os Casio
identificavam ao Al-Qaeda.
Qualquer distorsão da obediência
(um punhal, um relógio, um maço indecente de poemas)
pode te vestir de condenado à morte.
O punhal em sua capa,
o Casio sem pilha,
o nariz adunco
buscando problemas.
A forma da baía
Larga e funda, como uma vagina usada milhares de vezes.
Na parte de cima, pescadores artesanais, peixes contaminados.
Na parte inferior, barcos de guerra, atum do bom.
Fluidez que não se fixa, nem obedece a tratados.
Indiscreto vaivém das águas que buscam o orgasmo perene.
Até que suba o mar e cubra o vale, será uma vagina disputada.
O que o mar permitiu, o mar tornará impossível.
A frontera é o mar, não a cerca com minas de um arrendamento.
O nascimento de uma prisão
E ao ficar sem recordações de infância,
que eram frouxas e escassas,
os presos muçulmanos impuseram sua agenda,
e não tive mais chance,
se queria manter ativa a escritura,
que os seguisse como um joturo a corrente
no tempo irreal da prisão
colonizado também por sua presa,
preso dos presos por um número infinito de anos,
tanto que Gitmo se converteu em prioridade absoluta:
até que o último deles se vá, ou morra,
não há motivo para escrever outra coisa.
Os poemas se formam coagulando
a obsessão de qualquer diferença.
Aquele que ativa a escritura
termina por fazê-la impossível.
Aquele que a faz impossível
o alega para não te abandonar à sorte com ela.
As recordações, famélicas, não cedem:
sempre há um prisioneiro a abolir.
Short Message
Poetas novatos como todos nós
os presos muçulmanos, apenas veem o que os rodeia.
Escrever significa menos libertar-se a si mesmo
do que indicar as boas condições da prisão.
Constrói-te uma prisão de palavras
e esquecerás com facilidade a prisão que te rodeia.
Se te convences a ti mesmo
não importa a pena dos demais.
E que poemas escrevem
os milicos que os vigiam?
Um poema chamado “Submarino”
e um poema chamado “Alimentação à força”.
[amorzinho estou bem: hoje arranquei com socos
a verdade de 1 sarraceno].
Ainda que ao poder convenha a prosa,
caso se pegue excitado rabisca uns versos.
Não é o mesmo gozar em um Nokia
que em copinhos de poliestreno.
They are very close
Ou estimula sua precocidade, ou perca a vergonha.
Uma visita a cada dois minutos não dá para mais.
Uma punheta interrompida é tão desagradável
quanto uma miragem no meio do deserto.
Qualquer dia a cada três minutos
minha munheca pode criar uma miragem.
Ao enxerido das miragens vou presentear
com o mais quente do deserto.
À olhada que cerceira corresponde
o líquido irrefreável do saciado.
Uma punheta mental não é impossível
para quem vive no deserto.
Mesmo um dry boarding bem administrado
pode acabar sendo atrativo:
a vida sexual é uma potência
que se alimenta do extravio.
Infinitas jornadas no Campo Delta
ou
Como ser um homem pleno
à base de punhetas, submarino e preces?
Dry boarding
Se alguém é capaz de se concentrar ao máximo
(mente em branco ou o pensamento te roubará o oxigênio)
poderá aguentar embaixo d’água por dois minutos.
E mesmo que um jato incessante seja pior
que uma massa estável de líquido
de algo lhe serivirá o treinamento.
Se alguém é capaz de evitar o contexto
não sofrerá a angustia de se asfixiar:
irá navegar convertido em submarino de si mesmo.
A apneia, ao livrar-nos do lastro
se parece à contemplação,
e ao dry boarding (se não te entregas à luta
que te roubará o oxigênio)
um exercício espiritual convulsivo
O crente morto no submarino é um mártir celestino.
Hunger Strike
Segundo seus inimigos, os presos muçulmanos
declaram-se em greve de fome
para chamar a atenção da imprensa.
Passar fome é uma condição da poesia.
O prisioneiro é um artista da liberdade.
Passar fome para obter a liberdade
é uma condição da poesia.
O prisioneiro é um artista da liberdade
se passa fome para obter a condição da poesia.
Passar fome para obter a poesia
é uma condição da liberdade.
É uma condição da liberdade passar fome
pela poesia. A poesia e a liberdade
não saciam a fome mas a utilizam.
O prisioneiro é um artista da fome
que obtém a liberdade (condicional) da poesia.
A liberdade (condicional) da poesia
é também um método de guerra assimétrica.
“Estou morrendo vivo”.
“Me amarram à força”.
“Parece que em Guantánamo
se está retrocedendo”.
“Não voltarei a comer
até que me devolvam minha dignidade”.
Se continuam fracasando seus poemas
pode levar sua greve ao próximo nível.
Viver é fingir que pode fazê-lo, mas sem sabê-lo.
O homem do deserto
Não se humaniza o homem do deserto.
Prendem-no e tiram-no todos os direitos,
Exceto o direito de ser “combatente inimigo”.
Os cuidados do homem do deserto
são os cuidados que dão aos loucos furiosos
e aos assassinos em série: correntes nas mãos
e nos pés, vigilância a cada três minutos,
isolamento, e trajes de condenado à morte.
Tal protocolo é o ápice
do humanismo cristão ocidental:
liberdade para lutar com qualquer recurso
as guerras convenientes.
O homem do deserto, superado,
Sobrevive no conforto de seu inimigo.
Guantánamo é a máxima atenção
que lhe podem oferecer: um milhão
de dólares anuais, e a conta subindo,
por um número de anos incalculável.
Quando todos formos “inimigos combatentes”
vão acabar tais requintes.
Danos colaterais
Estamos e não estamos aqui.
Somos e não somos deste lugar.
Sabemos que isto é uma base militar inimiga
em território livre de uma república que foi açucareira.
Vamos ao trabalho, acompanhamos
nossos familiares e aprendemos a ser
essa coisa impossível, esse trauma que os juízes
não podem resolver sem causar mais conflito:
um gitmo
(metade Cuba, metade Estados Unidos).
Uma espécie tão rara como o trol das lendas.
Aves migratórias em terra estéril
remendamos uma vida civil entre as armas.
O mesmo sentiriam as mulheres e crianças
das tribos nômades do deserto.
O deserto, como sempre, cresce.
O mundo é uma base militar inimiga.
Qualquer territorio é livre para ser conquistado.
Os danos colaterais seguem sem cortes.
Javier L. Mora
Bayamo, 1983
…
Ah, sim
No dia
do Grande Tédio
(na hora
da
degola
em que você
não
chegou)
tudo
que fiz
foi
passar
por este local
onde
SE LIMPAM
CALIBRAM
CHECAM
IGNIÇÕES –
A civil intervenção
Se é certo
que não estamos
mais do que
à entrada
(e não há
entrada mais que
a saída)
então
que faço aqui
onde
nada crio
nem projeto
nem esta débil linguagem
participa
de uma ideia
que
nunca
disse
eu.
Sala século XX: garbage
A
mão
de um obstetra
atirando
(cínica)
resíduos
de um feto
(amputado)
no lixo.
E ali
(como
no-e-xe-r-cí-c-io
de um mudo
que tenta
tagarelar)
o projeto
d
as
r-
evoluções.
Ideia escandina do projeto
O pensa mento
não
do que
um clássico ser ia
se a american air
ti vesse
cir
culação
turbas meu sonho
&
sim
turbas meu sonho
a al ma
(trê
mula & so zi nha)
sem tricórnio &
sem
pensão
em uma re de
velha
de ci
mento!
Estilo memorando
Como aquele velho e famoso dos Sacco e Vanzetti:
sair
e
ver
que fazer saltar
em algum
ponto
quando tudo
o mais
tudo o mais
(tudo
o
de
mais
não
tenha
funcionado.
Kurt Vonnegut today
presunto serrano
ou de parma
2 ovos para a tortilha
queijo branco conservado
queijo compacto –
etc.
mozzarella (quem sabe)
pimentas
cebola grossa
torradas
pão de centeio –
etc.
café serrano
ou lavazza
brioche (ou mesmo
panettone)
leite integral
manteiga –
etc.
spremuta d’aracia
cuor di mela (two packs)
frutas (da melhor
qualidade)
geleias –
gelatina
etc. etc.
etc.
(Parêntesis:
só nas novelas, onde com frequência existe algum projeto livre, vê-se outra coisa nesses feitos: uma experiência forte. Há ali outra extensão da realidade, apenas por nós vislumbrada. Então te disse: havia algo, apenas por nós vislumbrado…
e aqui está.)
O elemento óptico
Eu sempre me detive como Hemingway E.
ante o Atlantic Sea
ou como um Averróis só e arrependido
junto a uma quinta estranha em Marraquexe
olhando as favelas sinuosas
que se erguem em Morro’s Old Way
e serpenteiam firmes e aglomeradas sem espaço
asfixiando a pedra contra o muro
perto da avenida
acossado de febre e esplendor.
– Porca miseria – disse o peru.
– Porca miseria – disse o pato.
Certas lesões circulares são realmente difíceis
de estancar.
Colisões: sobre a expressão (prática) da origem das espécies e da teoria (econômica) da lei da seleção natural.
Um desses carros de aluguel para turistas.
Elas (três) olham pro condutor enquanto se excitam –
“Esse negro
é um branco de olhos azuis” – dizem.
Com a dura intensidade
com que se transfere um murro
na cabeça.
[…]que constituem algumas (re)flexões em torno do problema da natureza do resto no processo de reação entre um elemento e outro já fixados por Mendeleiév e a analogia implícita que se produz entre o resto e o espectador onde a lei que afirma (Mendeleiév) que as propriedades de todos os elementos são funções periódicas de suas massas atômicas ou corpo-subjetivas é necessariamente uma lei de posse
(EMBORA POSSA SER ESTE O POEMA:)
Um Mirage
é um avião francês tripulado por 1 só piloto individual de asa delta com uma longitude em geral de 15 metros aproximadamente e altura de 5,30 um peso líquido de 7600 kg e o máximo na decolagem de 17000 que alcança uma velocidade de operação de Mach 2,2 (ou seja: 2350 km/h) cujo teto de voo é de 17000 m (isto é: 56000 pés) e que finalmente desenvolve uma ascensão no ar de 83,3 m/s…
mirage (fr.): miragem…
número Mach: velocidade de um objeto com relação ao meio que o rodeia, dividida entre a do som e esse mesmo meio (1223km/h) e sob as mesmas condições. Por isso, uma velocidade de 1223 km/h seria designada como “Mach 1”. De modo que um avião que voe a March 2, p. ex., tem uma aceleração duas vezes maior que a do próprio som…
oh! a Stein!
un mirage é un mirage é un mirage…
Você foi, ao contrário (todo o tempo), muito mais rápida.
Legna Rodríguez Iglesias
Camagüey, 1984
Agora que você diz
lembro que desde ontem estou aqui sentada
nesse banquinho
com os cinco dedos esquerdos enfiados no shorts
acariciando os canhões
com os cinco dedos direitos apertando minha caneta
cheia de tinta
olhando insistentemente o caderno
sobre a escrivaninha
sem escrever nem uma palavra
zero palavra
zero pensamento
um escritor me disse que a minha poesia
era uma fórmula
algo parecido a dois mais dois
ou três mais três
mas eu tenho certeza
de que em todo caso
é algo mais parecido a cento e treze mais duzentos e doze
ou a duzentos e doze menos mil novecentos e oitenta e quatro
que é um ano muito famoso
porque esse é o nome de um livro
que eu não li
agora que você diz
lembro que esse livro
eu nunca li.
Te peço
que não interprete
a cena cultural
porque você saberia
que sou a cadela dócil da poesia cubana
a cadela sem osso
nem caldo
existem outros cachorros
sarnosos
mas menos estraçalhados
menos doídos
que eu
existem outros gatos também
te peço
que em paz me deixe
que tranquila me deixe
e sozinha
vou
desenterrar
o osso.
Trégua Fecunda
Sobre o túmulo do meu grandfather
tem flores nacionais
esse homem lutou em uma guerra
há mais de sessenta anos
uma guerra por liberdade
libertar-se do que prende
é a luta comum.
Sabia ler e escrever
com certa facilidade
mas não melhor que eu
foi uma tristeza
que quem fez a autópsia
deixou o marcapassos
no fundo do peito
agora sob as flores
tem um marcapassos me vigiando
O que esperava meu grandfather de mim?
Que eu semeasse uma flor nacional
no fundo do meu coração fecundo?
Que descanse em paz grandfather
já escrevi coisas grandfather
e essa é a melhor revolução
que farei.
O cemitério
Todos formavam um grupo de homens e mulheres revolucionários
nasceram a partir da segunda década do século vinte
para serem revolucionários em um país revolucionário
e amar seu país mais que a seus filhos
e amar seu país mais que a suas mães
e vê-lo desprovido de correntes
morreram a partir dos primeiros anos do séculos vinte e um
com a agonia revolucionária dos homens e das mulheres
que contemplaram orgulhosos o amor
foram enterrados em túmulos de cimento
que quando chove infiltram.
22
estou apaixonada por você como Sylvia Plath estava apaixonada por Ted Hughes
e não me importaria em encontrar a morte em você como Sylvia Plath encontrou em Ted Hughes
igual eu já encontrei a minha morte nos canavias na Sierra Maestra e em Villa Mariana
lugares onde talvez você também encontrou a morte uma morte mais interessante
que os poemas de Sylvia Plath unidos em um calhamaço aos poemas de Ted Hughes
lugares onde não se sabe de onde vem o vento nem para onde vai a chuva
chuvisco chuvisca chuvisco ouvi no canavial e entre os bambus de Villa Mariana
chuvisca chuvisco chuvisca entre as madressilvas dos corações das mulheres
um sem-número de palavras ameaçadas pelo calor do verão e mais
ameaçadas ainda pelo calor do inverno que é o mesmo calor do poema de Ted Hughes
estou apaixonada por você como um tigre infantil de um poema infantil para cachorros
ou como Sylvia Plath convertida em um cachorro vendo Ted Hughes convertido em um cachorro
agachado atrás das canas de um canavial em Cuba em pleno mês de verão
em pleno marxismo socialismo comunismo em pleno desfile dos trabalhadores
chuvisco chuvisca chuvisco repetem as canas apodrecidas consumidas feitas terra
igual já encontrei a minha morte e a morte é melhor que a terra sem você
11
minha alma está cheia de metáforas adquiridas de geração em geração
minha alma está cheia de símiles mais ou menos fascinantes que dão fé do agrado que há em mim
minha alma possui um grande hipérbato incrustado à direita que mede vários milímetros
e à sua esquerda igualmente incrustada uma onomatopeia palpável excedida
minha alma tem uma hipérbole relacionada à necessidade de afeto feminino e masculino
essa manhã decidi fazer uma obra de caridade para a minha alma e recolhi um saco do lixo
cheio de bonitos livros usados sobre ciências agrônomas veterinárias e matemáticas
o oxímoro e o paradoxo figuras lógicas da minha alma aumentaram suas latências
nada se compara a essa felicidade que para não cansar vocês experimento
ver minha alma desde fora cheia desses sintomas que me mantêm jovem
figuras de diálogo e patéticas figuras dialéticas e de ficção
tudo em um como esses pacotes de pequenos sabonetes de cheiro
que tanto agradam as famílias de mais de seis integrantes
00
já vi o que fui um ser humano bastardo com uns tantos vasos
vazios pode ser interessante e ir se tornando cada vez melhor já saí
passeando pela cidade capital de um país em estado transitório percorro
uma distância quilométrica tentando escapar aos perímetros urbanos já vi
o objeto em terreno ermo uma grua Asticar igualmente terminal
o qual não é de nenhum modo atraente ou objetivo correm tempos
de uma objetividade a todas as luzes intransigente há tratores caminhões
betoneiras escavadeiras inclusive um trem inclusive um tanque de guerra
cada um é um objeto jogado junto a outro com sua família sua placa
as gruas Asticar permanecem onde mesmo onde se não permaneceriam
não são animais em crise atirando-se pelos barrancos não são dentes de leão
esparramados ao vento um tapume me separa das gruas estou mais
que acostumada a me ver assim as gruas frente a frente se emparelham
o amor de que sou cúmplice sugere um mecanismo em estado
transitório a primeira grua Asticar que deixou de funcionar foi por falta
de lubrificação nos olharmos frente a frente é só um tipo de síndrome
Mc Donald contra Pollo Tropical
As mulheres que trabalham
lado a lado comigo
sempre comem fora.
O grupo é ímpar
mas mesmo assim
se divide em dois
umas entram no Mc Donald
outras entram
no Pollo Tropical.
Não sei onde come o manager
mas nunca o vi
atravessando portas
nem do Pollo Tropical
nem do Mc Donald.
As portas pelas quais
atravessa o manager
permanecem na sombra
de árvores antigas
ou arranha-céus.
Lado a lado comigo
vem mamãe
querendo atravessar
a porta do Mc Donald
para livrar-se da chateação.
Lado a lado comigo
vem papai
querendo atravessar
a porta do Mc Donald
para ficar chupando dedo.
Lado a lado comigo
vem um haitiano
pedindo dinheiro
e amor.
Empurro-o contra a porta
do Pollo Tropical
e o haitiano sai mais liso
do que quando entrou.
Empurro-o contra o Mc Donald
e o haitiano sai tenso
o branco dos seus olhos
leva salsa de tomate.
Me esqueço da importância
da poesia
e também da importância
da ciência
O Mc Donald se converteu
em um país natal.
As mulheres que nascem no Mc Donald
defendem sua idiossincrasia
e não entram no Pollo Tripical.
Da mesma formas as que nascem
no Pollo Tropical
defendem sua doutrina
e não entram no Mc Donald.
O manager não tem
doutrinamento
por isso é um homem
que triunfou.
Por mais que minha doutrina
seja a das esponjas
ainda não triunfei.
E por mais que me atraiam
certos tipos de portas
me impulsionando com força
até elas
com toda a intenção
de atravessá-las
ainda não triunfei.
Ainda posso ver
as populações
se movendo de um lado
a outro da rua.
Vejo-os do meu querido
país natal.
Como boa trabalhadora
eu também como fora
digo até amanhã
e atravesso a porta
de um Liquor Store.
Pablo de Cuba Soria
Santiago de Cuba, 1980
Mme de Asbaje
[Sonho de freira produz monstros]
De Don Luis são as viúvas, de Mallarmé as putas
deixa que as meninas girem o peão –
Sempre você, malandro –
Mas fica sozinha, exposta a seus iguais fica sozinha –
Ou questão de rimas –
Por velhacas, disse Superiora reclamando lhe um espaço –
– Ai Madre, é ele um náufrago entre suas linhas
de suas torres erguidas dei fé –
Castanhos seus pelos entre risos surgiam:
– Deem me essa flora para educá la no que o Verso –
Entre os buracos mais propícios se acumularam vozes:
Piramidal, fatal, medrosa de gazela –
– Calem! Calem!, que pa’depois é virgem –
– Amore mio, de que jeito? –
Até penetrar garganta até elevar lhe o tom
Entre lonas cai: com indicador o dedo
– É uma cidade sem alma, sem bruxas
era uma negra pelo demônio sacudida –
Em süave aparição mostrou se em pelo:
– Não sou digna de que entre na minha casa
mas uma palabra sua bastaria
Mallarmé malandro.
Hailey City, Idaho
[Antes de penetrar nos mares divinos]
Três, quatro, cinco libras de batatas
Por cinco versos pronvençais –
Três, quatro, cinco libras de batatas
from Hailey City, Idaho –
Uma infância entre tubérculos
ou eram negroes que pisavam forte –
«Pound potato», me chamavam
Eram negroes que falavam chinês
enlouqueciam as sereias com seus cantos –
Fui um homem feliz, sem dúvida –
Três, quatro, cinco libras de batatas
from Hailey City, Idaho.
A lume spento
[Napoleón entre os grandes]
Mais que Pound mais que Lezama mais que um negro
Napoleão sempre esteve entre os grandes
Ou seja
Napoleão sempre se rodeou de grandes –
O mesmo no bairro de San Trovasso
que com coroa de espinhos ou estrela na fronte
sempre se equiparou aos grandes –
Ai amor, daria o que Darío
por uma princesa adolescente sentada em minhas pernas
Seja na escadaria de Dogana ou nuna esquina Trocadero
em minhas pernas por amor de seu nome –
Vi o Messias elevar-se sob a noite de Eneias
Como Napoleão entre os grandes
sob a noite do mundo o vi elevar se –
Mais que Pound mais que Lezama
Tão grande como a de um negro entre os arianos –
Oh coroa de nardo entre as fêmeas –
Teria que mudar me de lado?
Escrever um final feliz?
Ou por acaso levantar a estola que cobre seus gemidos
para que em Sorge grasne o ganso? –
Onde San Vio se cruza com Il Canale grande nunca estive
pelo menos de corpo presente nunca estive –
Tampouco em Paris com aguaceiro, apesar de cheio –
«On, on, on», cruzaram os gansos para chamar a Salud –
Deveria atravessar para o outro lado
onde Letra é mais que o Corpo
onde Ela governa como uma única presença? –
«On, on, on», sempre entre os grandes
Mais que Pound mais que Lezama mais que um negro.
Res cantabile
Se depois que o cão nos mordeu o acariciássemos um pouco, canino na coxa esquerda, renunciando a toda ação, e fôssemos domar as nossas próprias forças para colocá las em seu espaço, descentralizado, mas centradas elas em si mesmas, sem necessidade de relações, poderíamos então repeti lo: «es klingt so wunderlich!».
Da oração do balbuciante dei fé, de sua descida matinal entre lavradores, sinal, também das formas que precedem a Matéria. Entre os cães de casa o acomodas, presa em língua morta.
Sou o touro que perdeu seus arreios, e vai de encontro a ti.
Sobre o conceito vulgar de Tempo
a Javier Marimón
Sabe o açougueiro das últimas vontades da rês, morta, esquartejada pela vontade do Tempo que jamais se antecipa ao açougueiro, mas sim o contém, para assim prefigurar as formas das reses vivas, anteriores (essas sim) ao Pensamento, que governou por decreto, por definição melódica, ou pelas extensões que sua língua alcança.
Das representações das reses alheias ao pensamento sabe o açougueiro: neva muito nos ouvidos. Ele está por dentro: pode intuí las, despedaçá las sabiamente até amputar lhes realidades (coices) de suas vontades últimas.
O conceito vulgar de Tempo assim o dita.
Troca de chapéus
[As dívidas de Baudelaire]
Sobre as marcas distantes do poema: esses pounds que deves (se acumulam) e um pesar de vísceras já histórico – O tal Charles: transhumante –
Até as parteiras o esvoaçar do inseto na primavera,
a troca de chapéus –
A chuva é sinal de que estamos, e as costureiras
cosem charcos que a cifra espreme – O quarto? Ah, sim, o mais barato – Mas deve três meses, o tal
Charles –
Minha família veio de longe para ver que agarram – Minha família, pessoas tão boas –
(Walter Benjamin, usurário confesso, alugava lhe chapéus)
Sobre as marcas próximas do poema: esses pounds que deves (cotinuas) e não pagas.
A criada
[Segundo Barthes por si mesmo]
Com o gato nos braços, mira ela a lente da câmera: “Faz uns dias, esqueci quantos, pediu lhe aumento de salário a meus pais” – Faz uns dias que não descansa: livros –
Dobra ela as colchas – “A fornada é meu tecido favorito”, diz – Dobra ela as colchas e morde a irmã um pedaço de torta: “Minha irmã mastiga os homens, assim de pouquinho os mastiga”, volta a falar e não tem hora para acabar, para quando a dobra –
Coleciona insetos e em pormenor os conta: «Averróes, Samsa, eu mesmo» – As patas – o ângulo: cada prega em seu lugar –
Com o gato em seus braços, faz uns dias saltou a taipa e voltou a dizer: me fascina.
Uma temporada em Realidades
[Alguns garantem que era polaca]
Estão em Auschwitz
tomando sol:
bronzeadas meninas
de leve peso –
Elí, Elí
que caiam
os bastardos de Cronos
que baixem as reses puxadas –
Mariah saiu do onze:
Fried potatoes, fried potatoes! –
Garantem que Venustas
miou muito
entre os neumas
Linguaruda ela
doida pra dar.
Daguerreótipo de cummings entre lilases
Os lilases, como conjugar um daguerreótipo do camarada cummings, garças tais bebendo nos canais e o chiar da serra, os metais – Como que pedes emprestada uma língua sem fumaça nem aldeias de lavradores que trabalham – Ainda que o mais próximo de uma aldeia são esses canais onde as garças bebem os dejetos – O máximo que possa com estes cegos, a barba que deixo e que não entendo – O mais próximo do que aspira o camarada cummings, em família – Ah a família: e ficando vá se (mudo) diante desse monte de leituras com as que pode apenas – Mas o havíamos tentado sem ser apenas: esperando o preço nas vendas, a colisão tonal do pensável, que pague as dívidas no tempo certo – E não o furte (não pode, não o querem) e quando eles chamam não respondes, porque não existem, porque jamais os nomeou – Só este daguerreótipo como se pensa um pensamento (a partitura do padre, quase cego), uma forma de vida entre as lilases – E deixa a barba, ainda que não entenda nada – Eu nunca entendi muito, certo, Alicia? – Eu nunca entendi muito e é que lhe invento – Aquele daguerreótipo sem conjugação possível, com garças bebendo, cummings, o chiar daquelas máquinas – Aquele daguerreótipo onde deixei (também) crescer a barba – Agora já está de regresso: só com as leituras que impunha o pároco, as declinações: um martelar de máquinas de oito horas – cummings camarada não sabe, você tampouco – Como se as garças deixassem de beber e voassem a um outro quadro mais frio, impessoal, onde envolto em peles (apenas um espasmo) cultivas lilases – Os regamos, Alicia, os regamos – Mas que fazer com as serras, com esse chiar de palavras para as quais um sentido havia que inventar lhes – Camarada cummings se pergunta – Os lavradores também, trabalhando nos canais – Mas que remédio, transvistas as partes: uma paisagem com garças e com lilases (inflexões desse idioma que lhe dão, o chiar dos metais) – Ou em outros termos, ou o que lhe roubou:
um daguerreótipo de país sem lilases, um daguerreótipo de garças que mudam a paisagem.
GoodBye GrandPa
[When I was a freshman]
Ao fim da letra jejuam os cães –
Será virtude de fêmeas ao estacionar Sentido
Canta da Sorda –
Em questão de entendimento tenho de sobra –
Goodbye GrandPa, chego tarde
no país permanece o ritornello
entre imagens dizem permanece –
(Em grasnido de ganso se criam amores)
Goodbye GrandPa
logo Francesca lhe dará as novas –
Ela é confiável, sua destreza com humidades o indica –
(Dorme calmamente entre as fêmeas)
– Beleza nunca foi fácil – anunciou Buxtehude
ao ascender
(«Enfie devagar», lhe disse Francesca)
com o olhos postos nos sóis.
Nota dos editores
Nocaute: seis poetas / Cuba / Hoje nasceu do nosso desejo de ver uma versão altamente expressiva e potente da poesia cubana contemporânea circulando no Brasil. Para muitos de nós, as pistas sobre os versos ali produzidos hoje variavam da imagem acachapada de uma poesia oficial, palaciana ou falsamente utópica a um total desconhecimento das vozes informadas e, por que não, subversivas, em plena atividade. Daí o convite a José Ramón Sánchez, poeta que realizou a seleção e encabeça a coletânea. Agitador cultural, José Ramón edita em conjunto com o também poeta Oscar Cruz a Revista Literária La Noria, publicada semestralmente pelo “Centro Provincial del Libro y la Literatura” de Santiago de Cuba. Com ele, assumimos que, como qualquer seleção, Nocaute não fugiria à arbitrariedade e à falsa sensação de totalidade, mas a sensibilidade e o engajamento do poeta mostraram que a escolha é também uma tomada de posição. O resultado, como verão, é instigante e provocativo.
Por isso, para nós, traduzir (e ler) estes poemas é uma maneira de nos aproximarmos deste imaginário tão particular que Cuba possui no panorama da cultura ocidental e, em especial, da América Latina. Ao longo do processo, fomos interpelados pela complexidade de vozes e por uma redefinição de perspectivas. Na tessitura dos versos emerge o cotidiano de quem habita a ilha, sua história e suas contradições, antes insondáveis ou mistificados. Pulsa ali o dia a dia de uma sociedade feita de experiências e memórias, longe das praças, avenidas e palanques, e que transcende seu próprio território para reverberar entre aqueles que falam com Cuba, mas estão em Miami, Paris, ou Richmond.
Como a introdução de José Ramón (Blitzkrieg) ataca, o interesse primeiro é pela poesia de qualidade, doa a quem doer. Não vale a pena a coleção se a intenção for agradar a tradição estabelecida e oficial, ou o a expectativa previamente construída pelo leitor, seja ele brasileiro ou cubano. Interessa ao organizador – assim como a nós das Edições Jabuticaba – a poesia que experimenta (com formas, com temas, com vozes e com problemas), a poesia que corre riscos e se impõe como poesia. É isto que fazem os poetas escolhidos. São a cara da melhor poesia cubana que cresceu nos anos oitenta, noventa e na franja dos anos 2000, um período conturbado de isolamento e precarização na ilha caribenha. Esta é uma Cuba que reconhece o peso de sua história e dos ecos que produz até hoje em nossos ouvidos, mas que nem por isso quer deixar de viver sua vida e buscar seus próprios caminhos.
Nesta coletânea, memória individual, tradição coletiva, banalidade do dia a dia, desejos e obsessões de cada um se misturam. As imagens criadas são tanto metáforas coletivas como gritos de sobrevivência e desafio. É difícil não ser pessimista no século vinte e um. Por isso, as imagens não emergem íntegras – são esboços, caricaturas, sombras. Os possíveis heróis se desfazem antes de cruzarem o batente de casa. Assim é com o poeta Oscar Cruz, que descobre na poesia um inadiável paralelo com o boxe: “que importa vencedor ou vencido. / ao fim da festa, algum filho da puta dirá / que foram brigas sem brilho.” Ou com sua prostituta, que se entregou aos guardas de Batista, e depois aos Marxistas, mas que concluiu que o “melhor / é ter um trampo e entregar-se ao Evangelho / pois uma passa a sua vida dando o cu / por dinheiro, e só o que consegue /é muita pica”.
Esta é uma poesia que conhece a sua história e lê o cânone ocidental, examina-os, parodia-os, para poder seguir o seu próprio caminho e não repeti-lo. Uma poesia que versa “sobre as marcas distantes do poema: esses pounds que deves (se acumulam) e um pesar de vísceras já histórico”, como diz Pablo Cuba de Soria. Uma poesia que cria ready mades cubanos, falando de aviões franceses, que protegem a ilha contra a belicosidade norte-americana, mas que levam Javier L. Mora a pensar em Gertrude Stein: “un mirage é un mirage é un mirage…”
É também a poesia de uma Cuba que não está contida em si mesma e se deixa influenciar pela poesia confessional de Sylvia Plath, mas que também encontra, em plena Miami, um microcosmo do seu país, dividido entre aqueles que querem ir ao Mc Donalds e os que preferem ir ao Pollo Tropical, como escreve Legna Rodríguez. Uma poesia que não hesita em ser questionadora e fazer o enfrentamento direto, falando de direitos das mulheres e criticando os abusos contra prisioneiros muçulmanos trancados na base americana de Guantánamo, como fazem, respectivamente, Jamila Medina e José Ramón.
A publicação é compacta. Os versos aqui presentes, no entanto, transbordam. Uma poesia complexa como a vida, que impressiona, quebra expectativas e não se presta a simplificações. Por isso mesmo, esperamos que Nocaute seja uma porta de entrada para que o leitor brasileiro parta em busca de outros poemas dos poetas aqui reunidos e, oxalá, de novos poetas. Ao final da luta (inglória?), que sejam atingidos com a mesma potência e fascínio com que fomos.
Rodrigo A. do Nascimento
Marcelo F. Lotufo
Biografias:
Oscar Cruz (Santiago de Cuba, 1979). Publicou Los malos inquilinos (Havana, 2008), Las posesiones (Havana, 2009), Balada del Buen Muñeco (Havana, 2013), Esto es SOLO LO PEOR (San José de Costa Rica, 2013), La Maestranza (Havana, 2013, San Juan, 2016). Traduziu El pequeño de Georges Bataille (Santiago de Cuba, 2010). É editor da revista La Noria. Vive em Santiago de Cuba.
Jamila Medina Ríos (Holguín, 1981). Publicou Huecos de araña (Havana, 2009), Ratas en la alta noche (México DF, 2011), Escritos en servilletas de papel (Holguín, 2011), Primaveras cortadas (México DF, 2012), Diseminaciones de Calvert Casey (Havana, 2012), Del corazón de la col y otras mentiras (Havana, 2013), Anémona (Santa Clara, 2013, Madri, 2016), Traffic Jam (San Juan, 2015), Para empinar un papalote (San José de Costa Rica, 2015). Vive em Havana.
José Ramón Sánchez Leyva (Guantánamo, 1972). Publicou Aislada noche (Havana, 2005), Marabú (Havana, 2012, Madri, 2016), El derrumbe (Havana, 2012). Editor da revista La Noria. Vive em Guantánamo.
Javier L. Mora (Bayamo, 1983). Publicou Examen de los institutos civiles (Havana, 2012). Traduziu El portero suplente y otros poemas de Matteo Fantuzzi (Santiago de Cuba, 2014). Vive em Santiago de Cuba.
Legna Rodríguez Iglesias (Camagüey, 1984). Publicou Tregua Fecunda (Havana, 2012), Mayonesa bien brillante (Matanças, 2012), El momento perfecto (Matanças, 2012), Chupar la piedra (Havana, 2013), La Gran Arquitecta (Havana, 2014), No sabe/no contesta (Havana, 2015), Hilo + Hilo (Leiden, 2015), Las analfabetas (Leiden, 2015), Chicle (Havana, 2016), Todo sobre papá (San Juan, 2016), Dame spray (Madri, 2016), Si esto es una tragedia yo soy una bicicleta (Havana, 2016), Transtucé (Richmond, 2017), Miami Century Fox (Nova Iorque, 2017), Mi novia preferida fue un bulldog francés (Madri, 2017). Vive em Miami.
Pablo de Cuba Soria (Santiago de Cuba, 1980). Publicou De Zaratustra y otros equívocos (Havana, 2003), El libro del Tío Ez (Miami, 2005), Rizomas (Lima, 2010), Inestable (Miami, 2011), Cantos de Concentración (Havana, 2016), Libro de College Station (Richmond, 2016), Gago mundo (Richmond, 2017). Dirige a editora Casa Vacía. Vive em Richmond.
Rodrigo Alves do Nascimento é professor de língua portuguesa formado pela Unicamp, onde estudou língua espanhola e literatura latino-americana. Atualmente é doutorando em literatura e cultura russa pela USP, com estudo sobre a dramaturgia de Anton Tchékhov.
Mariana Ruggieri escreve, traduz e está terminando o doutorado na área de teoria literária, na Universidade de São Paulo.
Traduções:
Os poemas de Oscar Cruz, José Ramón Sánchez, Javier L. Mora e Pablo de Cuba Soria foram traduzidos por Rodrigo Alves do Nascimento. Os de Jamila Medina Ríos e Legna Rodríguez Iglesias foram traduzidos por Mariana Ruggieri.