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NOK NOGUEIRA

                                          Por Mauricio Salles Vasconcelos

 

          Nok Nogueira é o poetônimo de Emílio Miguel Casimiro, nascido em Luanda a 24 de dezembro de1983 – em plena guerra civil. Atua no panorama da Comunicação Social angolana como jornalista. É autor de quatro livros: Sinais de sílabas (2004); Tempo Africano (2006); Jardim de Estações e As Mãos do Tempo (2012). Neste último, observável é a mescla com a prosa, em uma disposição pouco tributária a acentos reconhecíveis da tradição poética africana escrita em português, no período pós-colonial.

          Montada em blocos compactos – frases em disposição narrativa, cesuradas numa concepção de linha/verso –, distribuídos em 5 seções – “Analogia”, “Transversalidade”, “Onomatopeia”, “Simetria” e “Evocação” –, sua reunião mais recente parece pulsar no extremo das menções a um legado local.  É o que pode se observar a partir de um toque evocativo e um campo simétrico de imagens, componentes de um conhecido tonus trabalhado entre o ativismo e a decantação da terra (algo que os autores dos anos posteriores à independência de Angola não deixaram de manter em seus projetos). Ainda que se perceba um metaforismo atribuível aos signos da territorialidade e da “construção nacional” (uma característica bem visível desde a formação moderna das literaturas continentais produzidas em português, nos primeiros anos do século XX), algo se acresce, dizendo respeito ao flagrante de uma condição presente, à contingência do espaço geopolítico globalizado em que o continente africano se vê confrontado após à descolonização.

Vibra, então, em As mãos do tempo um adensamento de foco, ocorrendo pela via da analogia – uma abertura imagética – quanto mais se sublinha a transversalidade – um alargamento de planos incididos sobre linguagem/modo de compor, concepção de mundo, em cruzamentos crescentes.  Intensificam-se os descaminhos, os desalinhamentos que uma sintaxe criada na modulação de um timbre deambulante, errático, acaba por imprimir no compasso de uma escrita configurada pelo movimento.

Torrencial e cotidiana, a marca do escrever se lança como fio indagativo, como que sinalizando uma grafia nova à altura de quem estabelece, por uma questão geracional e, também, pela sintonia com o ethos deste agora, uma outra relação com a história (e aquela da poesia).

 

          Senso de finitude e incorporação das variáveis de uma poética da busca criam um impactante elo. No fátuo e na força de tal demarcação, Nok Nogueira deixa à mostra os “caminhos nenhuns”, simultaneamente ao surgimento de uma conjunção de elementos que apontam, com certa voltagem documental, para uma via anônima, porém radicada na radiografia dos loci – avenidas, becos, atalhos, travessas/travessias, não-lugares – de dispersão e multiplicidade.

As interrupções e as reincidências, evidenciáveis nos pontos-cegos que o poema-prosa articula, fazem irromper uma ética enunciativa, tomada que é como linha-de-ação, gestada no auge da confrontação da vida diária e da descontinuidade quanto à pertença a uma coletividade/comunidade.

O poema reinstaura o sentido do tempo e do mundo quanto mais amplifica o desatrelamento a um programa, à adoção de uma postura unilateral. Justamente, num momento histórico em que a perda do fundamento, de uma sistematização ideológica para a mutação da política e da existência de todos, incita o imobilismo ou a alternativa de uma entrega generalizada aos valores em vigor (consumo, corporativismo, afiliação às formas propagadoras de hedonismo e poder, numa só fonte, finita e estagnada). Quando não se dá a reverência inoperante a alguma tradição.

Instiga, então, o tom declarativo, sempre intimizado, conduzido por NN, combinado com a via problematizadora que percorre seus blocos/fluxos poemáticos. Em plena sincronia com o contexto dos anos neomilenares, potencializam-se os agenciamentos autônomos de uma ressurgente socialidade, inseparável dos saberes diversificados (da estética à filosofia, da psicanálise aos campos simbólicos, das ciências aos ritos, como pensa Achille Mbembe) da africanidade. Predomina a mescla do múltiplo-contingente em tempo real, apreendido de modo não-sistêmico, contra-oficializado em relação aos ditames partidários e nichos institucionalizados.  O traço da transversalidade desponta para proposições de modos de vida polivalentes, reativados nas mais diferentes e impensáveis instâncias de politização.

O fazer inerente a As mãos do tempo não se aparta do sentido de posterioridade em relação a repertórios e procedimentos reconhecidamente “dados”, “datados”. Por sua vez, não deixa de encaminhar, da forma mais  ressonante, uma entoação da existência em comum/comunitária. É o que faz Nok N., numa revisita renovadora da modernidade drummondiana –  no que toca em especial ao “sentimento do mundo”, a “Mãos dadas” (poema nuclear do século XX ressignificado para o dia de hoje) –, bastante recepcionada, aliás, por poetas africanos de diferentes países desde o período das lutas anti-coloniais. Precisamente, quando insemina em seu crivo crítico, inerente à performatividade da escrita, a desmontagem do “vazio imagético” (Nogueira, 2012: 65), das “falsas identidades” em “um tempo quase/imaginário senão mesmo voltado para o pregão dum canto sofrível igual a nada” (Ibid.: 67)

          Extratos de AS MÃOS DO TEMPO

Página Primeira
  ANALOGIA

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os dias não dizem o que vai em nós escrevem notícias forjam cantigas e esquecem-se
do que nos detém sobre o precipício de um velho edifício sonham plantar devaneios altaneiros e mantêm-nos num mesmo sentido que nos apela à interrogação das avenidas
nossas palavras são apenas detalhes de uma voz que em renúncia se ergue por entre
o silêncio de si mesma
antes um sentido traduzindo o que de mais ingente guardassem as rosas de algum quintal o que mais nos atrairá para a fronteira do medo e conhecermos o dedo o que nos leva
a temer e a fugirmos da voz clandestina que em nós evoca a contestação
hoje pensamos estender as mãos como instante de contida reverência que nos assalte ainda a memória e trazermos para berma do caminho a imagem outorgada de um dia que mais ninguém soubesse senão os pássaros que conhecem o sentido do voo
que nos arremessa livres para o vazio
como tristes ideais entregues ao capricho do vento que se insinua antes do nascer
da dúvida que trazemos associada às inquietações de um tempo envolta em nós
há uma ideia baralhando o conceito de firmeza na palma da mão um dia solícito e uma vara contida no índigo do caminho que mais ninguém vê são palavras são dias inteiros
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Página Segunda
TRANSVERSALIDADE

meu desejo é ainda caminhar por entre caminhos nenhuns tal como fazem os loucos
surdo e mudo torpe e molestado pela demência que em mim achasse e conviesse ao desvario que em mim morasse como se nunca houvesse dias nenhuns que me levassem ao destino dos atalhos de meus passos por dias e caminhos nenhuns em que nada
entendesse dos dias por nunca os ter sobre as mãos que refazem o tempo e a angústia atendo ao minuto à hora ao mês ao ano ao século em que me possa acolher diante
de mim sobre o escrutínio do tempo cuja fala ainda inusitada nos encontrasse ante

o juízo da esperança atirada como uma pedra jogada ao mundo para acalentar a sede que nos consome o cansaço e nos vai ancorando os passos que buscam as fendas
que quando seguidas nos dão a um dia entregue à aparência de um nada quando
e de um onde equidistante e ambivalente envolta em um amanhã irrelevante e infiel aguardo ainda absorto pela grata vontade de ver chegar a barca e primar pelos dias
em que não mais houver dias que me levem a esses caminhos que nada têm em
comum com o nada quando atordoados estávamos para além do cais em busca de palavras que nos pudessem ajudar a definir esses dias por caminhos ainda nenhuns
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Página Terceira
ONOMATOPEIA

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sou o instante que em ti se prorroga como as mãos construindo mil catedrais
em tua voz num hino abnegado à saudade dos templos sagrados e de um
tempo em nós outorgado ao voo das tristes gaivotas em céus longínquos
por terras nada fáceis de lá chegar e vejo a distância que me separa de mim
de um longe quase incomensurável partindo pesaroso pelos anos que já vivi
e que se estendem além do gesto da taça amarga que em fino trago parti
e dou comigo no silêncio da rua quedado em um espaço abandonado por quem
nunca fora a saudade razão para o estender de uma grata vontade de viajar
por entre os labirintos do vazio que se entende como uma voz milimétrica
jogada pelo sopro das guitarras em bailes em que se fala de um tempo e de
uma voz contida na ausência do vaguear das mãos que ousam estender-se
para além de um instante que em nada pudesse faltar à rua que canta
adormecida enquanto se faz nação
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Página Quarta
SIMETRIA

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falo desta terra de ninguém deste sentido análogo que por vezes sem conta
entreguei ao caminhar de um desconhecido mundo
falo de ti falo do mar que me enobrece da dor da voz da angústia que ainda assim
me remetem ao escalar da vida apesar da pedra jogada ao mundo apesar do que me absorve entre os mais ínvios caminhos da vida e vejo o dia como duas

possíveis visões o além e o porvir duas formas tão exóticas de aqui estar como
um instante de que fora também cúmplice diante da luz diante do ávido desejo
de ver o vale dos morros ao qual se encaminharam um dia as mãos e o tempo
descalce este chão esta terra este suplício de margem de guerra que eu vou
mais adiante de ti sou um antes visto por ninguém sou um quase eminente
sou uma voz ardente fervendo por entre o poente deste exílio de morte
uma palavra tangível por entre a terra em margem de silêncio
jogada ao precipício de uma vida em controvérsias sou um deus e um diabo inventando a triste ideia de renúncia ante a inverdade política de uma mentira
o esboço de um sonho construído entre um altar e um céu movediço
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Página Quinta
EVOCAÇÃO

 

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e vou pelas ruas desta cidade com os passos calculados para não ferir os
lençóis que tenho sobre os pés são também crianças lunáticas iguais a mim
são de tecidos vários e de palavras poucas pois com elas aprenderam
a esquecer suas próprias vidas e a conhecerem simples mente estas ruas que
as viram crescer e que agora as entregam às mãos de suas próprias idades
toda palavra é feita de terra é feita de mar é feita de guerra mas no amanhã ela
se desterra como as flores jogadas à multidão
como a voz do berrante em mãos errantes
como quem escuta ainda o vento quase em silêncio quase sem nada sentir
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Nok Nogueira