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Trechos de O mau vidraceiro

Deusa gorda 

Engordara tanto que decidiram isolá-la num quarto, reforçando a cama. Em pouco tempo ultrapassou, mesmo de lado, a largura do umbral da porta, e já não podia sair. Levantava-se apenas para evitar as escaras, e caminhava dentro do quarto. Comia. Via televisão. Mais da metade do alimento da cidade ia para ela, apenas para ela. Decidiram cobrar ingresso para que os viajantes pudessem vê-la. Era como uma retribuição. Suportou calada o rosto dos estranhos em sua porta. Nessas horas, desligavam a televisão e tiravam os lençóis que cobriam seu corpo, para que ficasse bem visível. Deu certo. Um pequeno fluxo turístico começou. Reportagens foram escritas a seu respeito. Bateu o recorde de peso, ganhou um prêmio por isso. Mas um período de grande seca sobreveio. Secaram os arrozais e o lamento do gado sedento chegava até seu quarto. Não havia como alimentá-la. Começou a perder peso. Todos deixaram a cidade, mas não ela, pois não passava ainda pelo umbral, e mesmo que quebrassem a parede não sobreviveria ao esforço migratório. Ficou sozinha naquele lugar, com bastante água no quarto, alimentando-se da gordura que por tanto tempo acumulara. A tv já não funcionava. Ela fitava o teto, olhando a sombra se mexer. Nenhum ruído chegava, porque nada estava vivo. Então, um dia, levantou-se, como de costume, para evitar as escaras, e percebeu que estava tão magra que passaria facilmente pelo umbral da porta de seu quarto. Tinha aquela pele flácida dos muito gordos quando emagrecem. Tomou coragem e atravessou a linha mágica, e depois uma segunda, a da porta da frente, que a levou até a antiga rua da cidade fantasma. Ergueu os braços para o céu e ordenou chuva. As nuvens se formaram prontamente, em grandes maciços de chumbo, e choveu abundantemente na região. Então o gado se levantou do chão, onde estava morto, e a polpa dos frutos secos ficou úmida, e o pio dos pássaros mortos se fez ouvir novamente na galhada. Mas não permitiu que voltassem as pessoas, e a quem se aproximasse de sua cidade, tentando chegar em casa, a deusa gorda matava de longe, dos modos mais variados. 

 

Autorização 

Permite que sua imagem seja usada? Permito. Que sua voz seja ouvida? Permite que seus pensamentos se transformem em palavras? Que seu pau entre no corpo dela, dessa daí, permite? Permite que ela solte gemidos estridentes por causa disso? Permite a asma noturna? Que paguem dinheiro por seu trabalho? Permite a coruja? Que toquem tua pele? A água salgada nos olhos? Permito, permito. Permite que a luz inche tua pupila, que a bexiga se esvazie, permite uma expressão de alívio nessa hora, permite? Permite não saber por que, nem quando, nem onde, apenas que, apenas quê? Permite que com certeza, com certeza, que a luz se apague mas tão distante, permite que a todos os que conhece e ama e admire aconteça exatamente o mesmo? Permito. Permite debaixo da terra? Permito. Permite a decomposição? Permito. Permite uma pergunta, uma única pergunta? Permite aqui, permite quando? Permite essa merda? Uma esmola? Uma segunda chance? Um cigarro? Uma moeda? Permite que te julguem, dando nota? Permite que nunca? Permite o cachorro ganindo? Permite ouvir dizer, ouvir falar, cuspir na cara, gozar na boca, uma risada? Permite? Permito. Tem minha permissão para isso tudo. Que o sábio te explique, o poeta te metrifique, o cansaço te encha de sono? Permite uma rua? Permite a montanha? A ratazana? Permite o lajedo? Essa lua? Permito, permito. 

 

Minha montanha 

Esparramando a matéria que me faz vou acrescentando o que sou, porque penso que sou, ao que é e não sabe que é. E me espanto disso porque penso que me espanto, e recebo na cara o orvalho como a cusparada da distância. Asma. Nuvem, ontem. Tento engolir o ar. As gotas descem como venenos doces. Quero me deixar levar. Penso que afundaria no barro mais completo, circularia entre o pólo amargo e o pólo doce num sono perfeito. Na linha do Equador flutuaria – sonso e penso, cheio de mim ou de uma lava rio, já resfriada e pálida. Minha montanha. Seu esôfago de barro acolheria minhas pequenas diferenças? detalhes que só têm importância para mim? Ou, como um ouro puro e rancoroso, por mastigar a matéria mastigaria também seus nomes? Ou ainda, palmito insone, pai podre, tua autoridade é total silêncio? Quem me espera ali, o mosquito mais patético? Ainda assim o seu ferrão dói e contamina. Pois para mim, eu sei, só a poeira vã de um amor completo, dourado, que à montanha inteira recobriria como neve, ungüento, e guardaria, agasalhando um fogo íntimo na cratera, só um amor assim me serve. E seu chamado e compromisso, por ser maior que tudo – que as minhas mãos, inclusive – transforma-se no chão inteiro aonde piso. Minha montanha. Ali. Que pedra transparente. Que solidão, nós dois dueto, um grito só entrecortado na savana. Vê, leão, manada, a vida não a minha, mas o verbo amoroso enquanto lambe (são seus filhos). Traz às minhas mãos, não às mãos; ao coração, não ao meu, mas àquele asma, feito de fantoche e piche de folhagem, e carne, e carne. Vê como estão sólidas as sombras, que eram tinta, e pisa a tua sombra como a uma laje. E ama, como um último habitante de um último abrigo amaria. Minha montanha.


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